Ah,
o jornalismo!
ANTÓNIO GUERREIRO
17/07/2015 – PÚBLICO
A
crise e o declínio dos jornais e do jornalismo foram já longamente
diagnosticados. Neste campo devastado, não há se não precárias
sobrevivências.
É certo que se deu
um certo triunfo do jornalismo para além da morte dos jornais e há
hoje uma “jornalização” generalizada. Mas este novo jornalismo
de massas, com mais produtores do que consumidores, instantâneo e
hipertélico (isto é, ultrapassando os seus próprios fins), já
nada tem a ver com a ideia de constituição de uma esfera pública
racional. A actual jornalização intensiva está para o jornalismo
como a estetização — o mais poderoso factor de anestesia — está
para a arte. Confrontados com a torrente imparável de factores
externos que configuraram uma nova paisagem, os jornais (e todo o
jornalismo) perderam a capacidade de autocrítica ou recalcaram-na,
seja porque gerir o quotidiano sob as novas condições já é uma
tarefa complicada, seja porque o pecado original da profissão é a
boa-consciência. Os jornais, diga-se a verdade, nunca foram muito
dados ao exercício autocrítico e só em circunstâncias
excepcionais cederam a ele. Essa falta acabou por se tornar uma marca
identitária e adquiriu uma dimensão monumental. Os jornais não só
não se criticam a si próprios (fazem-no certamente em privado, mas
isso não é o mesmo que emergir publicamente com um desejável e
necessário ethosautocrítico), como seguem o tácito acordo de não
se criticarem uns aos outros. Na verdade, eles não se criticam,
nenhuma crítica vem do interior do campo jornalístico, mas não
falta quem o faça, no exterior. Criticar o jornalismo e mostrar
muita desconfiança relativamente a tudo o que se passa nesse campo é
um desporto de massas. Nem sempre as razões são fundamentadas, mas
instalou-se e generalizou-se esta convicção: jornalistas e
políticos, ou melhor, políticos e pessoas que escrevem em jornais,
pertencem à mesma classe, funcionam segundo a mesma lógica e falam
a mesma linguagem. Alguém, com instrumentos conceptuais, saberá
analisar esta lógica mediática que resulta na uniformização e na
asfixia do pensamento (na televisão, os painéis de
políticos-comentadores e comentadores-ideólogos são uma caricatura
grotesca desta situação). O cidadão intelectualmente menos
sofisticado, esse, passa logo ao desdém por aqueles que não fazem
outra coisa se não “aparecer”: na televisão, nos jornais, na
rádio, em todo o lado. Não há apenas uma linguagem política, há
uma oligarquia de “mediáticos” que colonizou a esfera pública
para a tornar dócil e inofensiva. O campo político e o campo
jornalístico celebraram núpcias e os políticos instalaram-se nos
media, numa grande confraternização. O resultado está à vista:
uma endogamia político-jornalística. E o jornalismo ficou reduzido
a uma encenação de pluralismos (e um acesso por quotas e
representatividades), tal como a democracia se tornou uma política
Potemkin. A mesma linguagem é partilhada por uns e outros. É uma
doxa que atinge o seu grau nauseabundo nos “painéis” dos debates
televisivos. Um modesto exemplo: como é que a palavra “reforma”
circula hoje com frequência na esfera pública para designar, muitas
vezes, o que é da ordem da contra-reforma? Porque os políticos
anexaram essa palavra e encontraram, no meio jornalístico, as
condições de fraca consciência crítica da linguagem que permitem
repercuti-la acriticamente. E das palavras passa-se às frases
(maldita fraseologia!) e das frases aos grandes enunciados (maldita
ideologia!): o jornalismo é uma ressonância do discurso político e
de outros discursos. E sê-lo-á, inevitavelmente, se não for, em
primeiro lugar, uma crítica da linguagem.
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