Gostava
de perceber Alexis Tsipras
José Manuel
Fernandes
12/7/2015,
OBSERVADOR
Um génio ou um
desastrado? Um reformista radical ou um revolucionário dissimulado?
Um estadista ou um populista? Alexis Tsipras não é fácil de
entender, o que não ajuda a ter confiança na sua palavra.
Um génio ou um
desastrado? Um reformista radical ou um revolucionário dissimulado?
Um estadista ou um populista? Alexis Tsipras não é fácil de
entender, o que não ajuda a ter confiança na sua palavra.
Quem é realmente
Alexis Tsipras? Um populista que soube aproveitar a onda do
descontentamento popular? Ou um estadista que teve a frieza de parar
à beira do precipício? Um pragmático que foi capaz de compreender
os limites do que podia obter dos credores? Ou um aprendiz de
feiticeiro que quase incendiou a Europa ao surpreendê-la com um
inopinado referendo? Um génio que manobrou e manipulou todos para se
tornar o líder incontestado da Grécia? Ou um oportunista que muda
de discurso conforme a audiência e em quem ninguém pode realmente
confiar? Um esquerdista que nunca se desligou das suas raízes
revolucionárias e anti-capitalistas? Ou antes um radical a caminho
de se converter num social-democrata?
Não falta, de
resto, quem coloque questões semelhantes na imprensa internacional.
Alexis Tsipras não é fácil de ler.
Não custa muito
compreender Yanis Varoufakis. É o típico intelectual radical, bem
instalado na vida e nos circuitos universitários – circuitos que,
de resto, este tipo de intelectual “anti-sistema” ocuparam quase
por completo –, vaidoso e tão seguro das suas certezas que, à
mesa das negociações, só pode esperar a capitulação do
adversário, não um acordo mutuamente benéfico. Para ele a política
não é uma missão, é um palco, e por isso fugiu cobardemente para
a sua luxuosa casa numa ilha grega na noite da crucial votação que
dividiu o Syriza. Com mais ou menos talento, como mais ou menos
cabelo, como mais ou menos arrogância, não faltam por essa Europa
fora figuras como Varoufakis. E também pelos Estados Unidos.
Mas Tsipras é
diferente. Por quem é, pelo seu passado, pela sua forma de actuar,
até pela vida que leva.
À primeira vista,
não é um ideólogo. Tem até fama de pragmático, pois quando,
ainda muito novo, negociou com o Governo o fim de uma greve
estudantil, aceitou um compromisso em vez de esticar a corta até ela
partir. Não se lhe conhecem livros, como os que Varoufakis escreve.
O que se lhe reconhece é a capacidade de gerar empatia e de conduzir
o eleitorado na direcção que mais lhe convém.
Mas quando vemos a
forma como ziguezagueou ao longo dos últimos meses, umas vezes
adoptando um discurso radical, outras vezes enviando para Bruxelas
propostas conciliatórias, o mistério adensa-se. Mais: percebe-se a
desconfiança que reina entre os parceiros europeus e os credores.
Devemos acreditar no Tsipras que provoca a Europa (e nela muito
especialmente a Alemanha) ou no Tsipras que se senta pacatamente à
mesa com Angela Merkel, todo sorrisos?
Dir-se-á: muitos
políticos, em todo o mundo, são igualmente incoerentes, ou
erráticos, ou capazes de discursos contraditórios em função das
plateias para quem falam (ainda este domingo os finlandeses tiveram
um discurso em inglês para a imprensa internacional, muito moderado,
e outro em finlandês para o seu eleitorado, muito mais radical). É
verdade: não é isso que distingue Tsipras. O que pode distingui-lo
é sabermos onde é que ele se situa politicamente, como evoluiu, se
é que evoluiu, desde os tempos em que a sua actual mulher – e,
leio no jornais, o seu principal esteio – o convenceu a entrar para
o partido comunista.
Ter sido comunista,
ou continuar a sê-lo numa das variantes em que a Grécia é fértil,
não é um detalhe. E também não é incompatível com um
comportamento que vemos como contraditório ou errático, mas porque
o olhamos pelas nossas lentes habituadas há muito a descartar a
natureza real dos partidos de matriz marxista-leninista, como era o
partido a que o jovem Tsipras aderiu nos seus tempos de líder
estudantil.
Uma coisa é o
radicalismo “chique” de Varoufakis, que está na moda e é visto
com a maior benevolência, quando não com algum encanto, pela
imprensa e pelos comentadores. Quem pode, realmente, temer o motard
que toca piano num apartamento com vista para a Acrópole?
Outra coisa bem
diferente é ser um revolucionário determinado a construir um tipo
de sociedade radicalmente diferente. Anti-capitalistas há muitos –
mas revolucionários só os que, adoptando esta ou aquela variante,
continuam a seguir a utopia da sociedade sem classes. É Tsipras um
desses? É a sua influente mulher? É o seu estilo de vida modesto,
num pequeno apartamento num bairro humilde de Atenas, um sinal do
ascetismo do militante revolucionário? Ou tudo isto é apenas uma
efabulação sem sentido?
Aconteceu-me estar a
ler, por estes dias, um livro do escritor cubano Leonardo Padura,
recentemente distinguido com o Prémio Princesa das Astúrias. Era
daqueles que estava na estante à espera de uma oportunidade e,
quando peguei nele, não imaginava que acabaria a pensar em Tsipras.
“O homem que gostava de cães” conta-nos a história do
assassinato de Trostski por um agente estalinista, um episódio bem
conhecido da historiografia da mais trágica utopia do século XX.
Até aqui nada de novo, a não ser o indiscutível talento de Padura
que nos faz regressar apaixonadamente a um caso sobre o qual
julgávamos saber tudo. Só que acontece que o livro não fica por
aí. O que nele também se retrata é como a utopia comunista
transforma as pessoas e como o marxismo-leninismo serviu para
justificar tudo, incluindo os maiores crimes, em nome de um ideal
supremo.
As voltas e
reviravoltas a que assistimos no Syriza não seriam estranhas a quem
tivesse seguido as voltas e reviravoltas dos partidos comunistas na
década de 1930, ou de 1940, ou de 1950. Havia sempre uma
justificação. Tal como houve sempre um “doublespeak”, essa
forma de tornar o discurso num mero instrumento para justificar
qualquer coisa e o seu contrário, como Orwell descreveu de forma
genial em “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro”.
Eu sei que os tempos
são outros e que a Europa da segunda década do século XXI tem
muito pouco a ver com a Espanha, a Alemanha ou a Rússia da terceira
década do século XX, onde decorre uma parte da acção do livro de
Padura. Mas quando olhamos para a forma como Alexis Tsipras manobrou
ao longo dos últimos meses, e sobretudo das últimas semanas,
ficamos na dúvida se foi apenas incompetência e arrogância, ou se
todas as reviravoltas a que assistimos – e a primeira, é bom não
esquecer, ocorreu logo no final de Fevereiro, quando aceitou
continuar dentro do memorando que antes abjurara – não foram
apenas guiadas pelo desejo de manter-se no poder, e de reforçar esse
poder.
Qualquer político
sabe a importância que tem estar no poder – mas ninguém levou tão
longe como os comunistas a arte de, sendo uma minoria, o conquistar e
conservar. É isso que Tsipras está a fazer? É isso possível
porque a Grécia é o país da Europa onde até mais tarde comunistas
e anti-comunistas lutaram de armas na mão, numa guerra civil que
prolongou a II Guerra Mundial?
Para ser sincero,
não creio que Tsipras seja a encarnação moderna dessa herança
política. O meu instinto inclina-se mais para que é um radical a
caminho da social-democracia. Por isso gostava de o conhecer melhor,
mais de perto. Para tentar perceber se apenas deseja um caminho
diferente para uma Grécia dentro do euro, ou se ainda acredita que,
usando sabiamente o poder, pode ir caminhando para uma sociedade sem
classes sem assustar a classe média. No fundo, se é um reformista
radical ou se é um revolucionário (a palavra pode parecer estranha
nos dias que correm, mas em 2009, numa entrevista que me deu, o nosso
pacato Francisco Louçã reconheceu, a custo, que ainda era o que
sempre fora, isto é, um revolucionário).
Faz toda a
diferença, quando se faz um acordo que implica um mínimo de
confiança, saber quem se tem do outro lado da mesa. Neste caso,
perceber se temos apenas alguém inexperiente e errático, ou alguém
para quem a dissimulação está no coração da forma de fazer
política. Ler Padura ajuda a perceber até onde pode ir a
dissimulação – no meu caso, ajudou-me a recordar o que se pode
fazer quando se acredita que os fins justificam todos e quaisquer
meios e que as regras de pouco valem.
Depois de tudo o que
aconteceu, antes do Syriza e com o Syriza, os líderes europeus
confiam pouco nos gregos e têm razões para isso. Sem perceber quem
é realmente Alexis Tsipras, eu confiaria ainda menos, mesmo que
agora ele acabe por assinar o que lhe puserem à frente.
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