sábado, 25 de julho de 2015

Cavaco no “Castelo”. E nós na Terra./ José Manuel Fernandes


Cavaco no “Castelo”. E nós na Terra.
José Manuel Fernandes
24/7/2015, OBSERVADOR

Pedem-nos maiorias absolutas mas abjuram coligações. Pois é, mas com esta Constituição e este sistema proporcional de eleição dos deputados, teremos cada vez mais governos de coligação. Habituem-se

Não sei quantos portugueses seguiram a série televisiva dinamarquesa “Borgen”. Não sei se foram mais ou menos do que aqueles que acompanharam a série americana “House of Cards”. A primeira retrata os bastidores da política num pequeno país europeu, a Dinamarca, a segunda na capital do mais poderoso país do mundo, os Estados Unidos. Mesmo sabendo que é difícil superar o maquiavelismo das intrigas de Francis Underwood, o implacável congressista que não olha a meios para chegar à Casa Branca, para a nossa educação política é porventura mais útil seguir as aventuras e desventuras de Birgitte Nyborg, uma política centrista que, sem violentar os seus princípios, faz com naturalidade acordos à esquerda e à direita para governar ou ser oposição.

Quarta-feira, quando escutava a mensagem de Cavaco Silva, imaginei que ele gostaria de estar, como Birgitte, no Palácio de Christiansborg, esse local que os dinamarqueses conhecem como “o Castelo” (é esse o significado da palavra Borgen) e onde trabalham, lado a lado, os três ramos do poder. É lá que está o Parlamento, lá que fica a sede do Governo, lá que deliberam os juízes do Supremo Tribunal. Não porque “o Castelo” tenha melhores vistas ou melhores aposentos do que o seu Palácio de Belém – mas porque a realidade e tradições políticas retratadas naquela série televisiva estão mais próximas do que ele parece desejar para Portugal do que as que têm sido regra nos nossos 40 anos de democracia.

Na verdade, também eu gostaria que fosse mais fácil fazer em Portugal aquilo que é comum naquele país nórdico: os partidos chegarem a acordos de governo ou, pelo menos, a acordos que permitem uma governação minimanente estável. Em Portugal pensar assim suscita logo uma chuva de protestos. A regra é: ou há maioria absoluta de um partido, ou espera-se que o maior partido governe em minoria. Tudo o resto, sobretudo à esquerda, parece uma coisa do outro mundo. Mas não é. Pelo contrário, e a culpa até é da nossa tão venerada Constituição.

De facto, é lá que se estabelece que o nosso sistema eleitoral tem de ser proporcional, o que, ao contrário dos sistemas maioritários (como o do Reino Unido), não favorece a existência de maiorias absolutas. Por isso, sem grande surpresa, nas 13 eleições legislativas realizadas em 40 anos de democracia, apenas três produziram maiorias absolutas de um só partido: as duas protagonizadas por Cavaco Silva e a de José Sócrates em 2005. Qualquer delas foi obtida em circunstâncias que podemos considerar excepcionais.

Ao mesmo tempo, a nossa democracia também revelou dificuldade em gerar governos de coligação maioritários. Até à legislatura que agora vai terminar, nunca um governo de coligação chegara ao fim do seu mandato completo. É uma novidade, mas a verdade é que, de todos os governos minoritários em que tantas vezes se apostou, também só um completou o seu mandato, o primeiro de Guterres.

Não devia pois ser “natural” preferir, como sucede em alguns sectores políticos, os governos minoritários. Mais: devíamos sim olhar para a Europa, como fez o Presidente, e notar que em 26 dos 28 países da UE têm governos com apoio maioritário no Parlamento e 23 desses governos são de coligação. Mais: que dos governos de coligação, 14 têm três ou mais partidos.

Mesmo assim, todos temem um impasse para depois das eleições de Outubro. Primeiro, porque parece pouco provável que o PS ou a coligação consigam uma maioria absoluta. Depois, e esse é o ponto que quero contestar, se parte do princípio que PS, PSD e CDS não se podem entender. Isso é considerado “contra-natura”, não faltando até quem considere uma aliança desse tipo, ou um governo de “bloco central”, o pior dos caminhos.

O meu argumento é o oposto: não vejo motivos para que não se negoceie em Portugal com o mesmo espírito de compromisso que podemos apreciar nos enredos ficcionais de Borgen. Depois das eleições, os dinamarqueses fazem a sua mercearia, mas entendem-se, e isso é o que importa. É também por isso que o apelo de Cavaco é o de alguém que gostaria de reproduzir em Portugal hábitos políticos como os vivenciados no “Castelo”. Ou em quase todas as outras capitais. Mas vamos a argumento por argumento.

O primeiro argumento contra a possibilidade de um acordo alargado é o que parte da retórica dos partidos e das suas juras que nunca se entenderão com os adversários. Eu dou o desconto devido a essa retórica: é conversa para mobilizar os eleitores, não é uma jura irrevogável. Correspondem ao seu desejo (a maioria absoluta), podem não corresponder à sua futura realidade (terem de governar sem essa maioria)

O segundo argumento é que os programas dos principais partidos são demasiado diferentes para ser possível encontrar uma plataforma comum de Governo. É um argumento com uma parte de verdade e uma parte de mentira. A parte verdadeira é que tudo indica que a coligação e o PS se apresentarão às próximas eleições com visões claramente alternativas de como fazer Portugal regressar ao crescimento. É bom que assim seja e é um distanciamento dos tempos em que as campanhas se faziam apenas com base em listas de promessas e mais promessas. Mas uma clarificação daquilo que separa os partidos até pode acabar por facilitar as negociações: é mais difícil “trocar” promessas do que, sabendo onde se está, saber até onde se pode ir, quais as “linhas vermelhas” que não se podem ultrapassar, e fazer aí acordos que não são “capitulações” ou “traições”, são apenas compromissos razoáveis. Para além disso, todos sabem que, por mais diferentes que digam ser, tanto o PS como a coligação têm a sua margem de manobra muito limitada pelas regras europeias e pelo Tratado Orçamental. É por isso que ambos sabem que terão de reformar a Segurança Social, e que só devem fazê-lo com um acordo alargado. Só não se entende porque acham que podem entender-se neste tema tão delicado mas têm posições irreconciliáveis em tudo o resto.

O terceiro argumento é que uma derrota implicará sempre a queda das actuais lideranças. Logo instabilidade e dificuldade em negociar seja o que for. Ora gostava de saber por que raio de estranho hábito ou escondida lei uma derrota eleitoral deve implicar a imediata remoção das lideranças. Isso não aconteceu nos primeiros anos da nossa democracia, isso não é regra nas outras democracias europeias. Mas é uma triste prática corrente nos grandes partidos portugueses. Não poderiam estes dar sinais de mais civilidade e responsabilidade? Creio que sim. Só isso.

Falta o argumento oculto, o que ninguém assume: uma grande coligação poderia, em tempos difíceis como vão continuar a ser os nossos, permitir o crescimento de partidos populistas, à esquerda ou à direita. Esse risco é verdadeiro, e é importante que tanto Passos como Costa tenham consciência dele. Mas a melhor terapia não é adiar as reformas complicadas que necessitam de acordos alargados e de estabilidade política – é falar verdade aos portugueses. Não criar ilusões. Sublinhar que podem existir caminhos diferentes para a recuperação, mas que não haverá milagres. Nem cá. nem na Europa ou nas regras europeias.

Eu sei que há inconvenientes em soluções de governo demasiado abrangentes (Karl Popper, numa conferência que fez em Portugal em 1988, defendeu mesmo que os sistemas eleitorais proporcionais, por exigirem muitas vezes governos de coligação, são desaconselháveis), tal como conheço todos os fantasmas que a simples ideia de um “bloco central” suscita. Mas Cavaco Silva tem razão quando, por assim dizer, se imagina no “Castelo” e defende que aprendamos qualquer coisa com a cultura política nórdica revelada numa série como Borgen.


A campanha eleitoral é o tempo da competição e da luta pelo voto dos eleitores. O tempo que vem a seguir tem de ser o tempo da responsabilidade. E se quisermos continuar com esta Constituição e este sistema proporcional de eleição dos deputados, então é altura de entendermos que vamos ter cada vez mais governos de coligação. E menos partidos a olharem apenas para o seu umbigo e a pensarem que as políticas só são boas quando são eles a aplicá-las.

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