Os
Velhos do Restelo interpelam a Europa
Paulo de Almeida
Sande / 21-7-2015 / OBSERVADOR
Uma vaga levantou-se
sobre a União Europeia e a zona euro nas últimas semanas. Vaga tão
poderosa que em pouco tempo plantou um anátema contra a integração
europeia numa parte da opinião pública
Uma vaga levantou-se
sobre a União Europeia e a zona euro nas últimas semanas. Vaga tão
poderosa que em pouco tempo plantou um anátema contra a integração
europeia numa parte da opinião pública: no Reino Unido, por
exemplo, as sondagens passaram da clara vitória do Sim (à
permanência na União) de há poucos meses para uma (ligeira)
vantagem do Não.
Vaga tão poderosa
que, por outro lado, levou a uma estranha proposta por parte do
Presidente francês: se por um lado tem sentido reforçar o
funcionamento das instituições e aprofundar a integração, por
outro, a ideia de um governo da zona euro limitado a um conjunto
reduzido de países é, perdoe-se-me a expressão, um perigoso
atentado ao espírito da construção europeia, aos seus valores
fundadores, à visão de uma Europa unida, alargada, inclusiva, do
Atlântico aos Urais (nem tanto, claro) um dia expressada por João
Paulo II.
Conhecem-se as
razões: a proposta de acordo com a Grécia e a primeira admissão
explícita da saída de um país do euro. De entre tantas sentenças
definitivas das últimas semanas, saliento três: A zona euro está
ferida de morte. Pertencer ao euro é mau para Portugal. A Alemanha
perpetrou um “acto de punição” contra a Grécia.
Primeiro: a zona
euro está ferida de morte e é uma questão de tempo até se
fragmentar. Ora a notícia da sua morte, citando de novo Mark Twain,
é francamente exagerada. O euro não vai desaparecer – agora que a
Grécia se mantém na moeda única, pelo menos –, nem pode
desaparecer, sob pena de o mesmo suceder à União Europeia. Já
expliquei os mecanismos nestas páginas, por exemplo na recente
crónica-ficção O Fim do Euro: se algum país sair, os mercados, os
rivais comerciais (já para não falar nos inimigos), apercebem-se
que a zona euro é reversível e que as instituições europeias são
incapazes de proteger as economias mais endividadas. A confiança
esfuma-se, como em 1993 e em 2010, com sucessivos ataques
especulativos. As taxas de juro da dívida pública de países como
Portugal sobem a pique e, em rápida sucessão, o Sul abandona a
eurolândia. O fim do euro chega pouco depois.
Com o fim do euro,
também o mercado interno tem os dias contados. Deixem o euro em paz,
escrevi há alguns meses: “não é possível um mercado interno com
união aduaneira, a funcionar correctamente – e durante muito tempo
–, num ambiente de distintas moedas. Não é possível na União e
não foi nunca em parte alguma do Mundo. É bom que os detractores do
euro pensem nisso quando pensam nisso: sem moeda única, não há
mercado interno”.
E sem mercado
interno, a União Europeia não existe. Triste fim de um sonho, ou
rejubilação triunfante de quem defenda o seu fim, preferindo um
país com fronteiras, barreiras alfandegárias, proteccionismo,
desvalorização cambial permanente, inflação, défice e falta de
competitividade. Um país pobre como Portugal nos anos 1980, antes da
União, ou entre 1926 e 74, com contas públicas equilibradas e
miséria, ouro nos cofres e analfabetismo, mortalidade infantil,
imigração “a salto”, a apagada e vil tristeza de tempos
cinzentos, a 1ª República, etc.
Em segundo lugar,
vem a ideia de que pertencer ao euro é mau para Portugal e para os
restantes países deficitários. O argumento é respeitável. Vale a
pena ler o excelente artigo de Nicolau Santos: os países
periféricos, diz, estão condenados a definhar economicamente se
ficarem no euro, porque “as condições essenciais para a
existência de uma moeda comum implicavam a livre circulação de
trabalhadores e capitais, a flexibilidade de preços e salários, a
coordenação dos ciclos económicos e um mecanismo federal que
compensasse os choques assimétricos“. Ora, diz Nicolau, “nunca o
pensamento dominante na Europa admitiu (…) a existência de fundos
que permitissem compensar os tais choques assimétricos”. Em vez
disso, escreve, os pensadores desse tal pensamento dominante – a
Alemanha e os que alinham com Merkel e Schäuble – preferem aplicar
aos Estados do Sul “programas punitivos de austeridade”, visão
que, conclui, “não é compatível com uma zona económica
integrada, onde há diferentes estruturas produtivas e onde os
choques externos têm consequências completamente diferentes que ou
são compensadas por via de transferências ou agravam cada vez mais
as desigualdades no interior da União”. Alternativas, pois, ou a
expulsão da moeda única (sic) ou um “lento mas inexorável
definhamento”.
Nicolau Santos, como
outros, reconhece que falta à Europa um mecanismo federal
(redistribuição via transferências do orçamento da União) que
compense os choques assimétricos. E como isso não faz parte do
“tal” pensamento dominante, as desigualdades na zona euro
agravar-se-ão cada vez mais. E é preferível sair. Em vez de
lutarmos pela mudança desse “tal” pensamento dominante, se é
que existe, é melhor sair do euro, acabar com ele e pelo caminho com
a União Europeia. Nem os 150 mil milhões de investimento público e
privado gerado em Portugal pelos fundos estruturais abalam esse
raciocínio, não se explicando em lado algum como é que, fora da
zona euro, fora do mercado interno, fora da União, as desigualdades
deixarão de se agravar; há muito que a crença na desvalorização
cambial como solução para um crescimento sustentado, para além de
uma recuperação pontual, me parece quase do domínio do irrealismo
mágico.
Mas há mais:
estudos referidos por De Grauwe (em Economics of Monetary Union,
Oxford), um dos grandes especialistas mundiais de integração
monetária, provam que, na sequência dos choques assimétricos numa
união monetária – com perda de rendimento dos cidadãos de uns
países/regiões e ganhos noutros –, a redistribuição faz-se mais
através da partilha do risco pela via dos mercados financeiros do
que por transferências automáticas do orçamento (do Estado federal
numa Federação, do orçamento da União na Europa). A partilha de
risco entre os Estados americanos através do mercado tem um
resultado que é quase o dobro da feita pela via do orçamento
federal; e devolve ao Estado afectado quase 50% do rendimento
perdido. Esse valor, na união monetária europeia, é de apenas 15%!
Ou seja, para fazer
frente aos choques assimétricos na zona euro, a Europa precisa de
mais integração dos seus mercados financeiros, assunto aliás em
agenda, a começar pelos mercados de capitais. Não consta que o
“tal” pensamento dominante tencione opor-se. Isso não significa
que não seja necessário aumentar o orçamento da União para também
permitir uma maior partilha de risco pela via das redistribuições
automáticas. Mas é um caminho viável e possível, como é
enfrentar… o “tal” pensamento dominante.
Em 3º lugar, talvez
a melhor ilustração dos preconceitos em que vogamos, a popular
ideia de que a Alemanha levou a cabo um “acto de punição” da
Grécia, comprometendo uma reputação laboriosamente (re)construída
nas últimas décadas, como afirmou Habermas, um dos mais
respeitados, ilustres e sabedores pais da Europa, filósofo do espaço
público europeu.
Em Portugal evoca-se
a paz de Versalhes de 1918 e o perdão da dívida alemão no pós-2ª
guerra, como se o incomparável se pudesse comparar, mesmo que
ilustrativa ou simbolicamente. Mas há um discurso insustentável: é
dizer que a Alemanha manda na União, espécie de ditadura germânica
à 4º Reich, mas também que a Grécia permanece no euro contra a
sua vontade; que manda no Banco Central Europeu mas desgosta do
“quantitative easing” em curso e de muitas das intervenções de
Draghi; que manda na zona euro mas nunca quis a união bancária tal
como já existe, e muito menos a que se perspectiva; que é a dona
disto tudo, mas é contra resgates aos países do euro, como o
português, reestruturações das dívidas, como na Grécia sucedeu e
vai voltar a suceder. A Alemanha manda na União mas aceita tudo o
que não quer. Porquê? Porque beneficia com a sua participação
nela? Mas não é esse o objectivo de todo e qualquer membro da União
Europeia? Afinal, em que ficamos? Com a crise de 2008/10, só as
economias nacionais tinham capacidade para rapidamente acorrer às
dificuldades de alguns países, como a Irlanda, Grécia ou Portugal.
E a mais rica de todas elas, a Alemanha, vinha à cabeça. Tal como
lidera as contribuições para os fundos estruturais que, ao
contrário dos programas de resgate, não são empréstimos mas
verdadeiras dotações: até 2013 a Alemanha pagou mais 339 mil
milhões do que o que recebeu da União.
O euro não acabou,
nem vai acabar. Pertencer ao euro tem custos, obriga a sacrifícios,
não é fácil para os países mais débeis, obrigados a partilhar
uma moeda forte, sem controlo da respectiva política monetária e
cambial: mas a escolha é entre esses sacrifícios agora, entre
aceitar o desafio do crescimento e caminhar no sentido da
convergência económica e do desenvolvimento (para o que é
importante equilibrar as contas públicas e proceder a verdadeiras
reformas), ou resignarmo-nos à “apagada e vil tristeza” de
antanho em que julgávamos ser livres e soberanos e mais não éramos
do que os pobres conformados que convinha às grandes potências que
fossemos.
“Ó glória de
mandar, ó vã cobiça/desta vaidade a quem chamamos Fama!/ A que
novos desastres determinas/ de levar estes Reinos e esta gente?(…)
Que famas lhe prometerás? Que histórias?/Que triunfos? Que palmas?
Que vitórias?”.
Como o velho de
aspecto venerando que das margens baixas do Restelo assim interpelou
a saga lusa, respeito quantos hoje têm dúvidas sobre a nossa
capacidade de construir o futuro em União. Em paz.
Mas porque somos
europeus, para que fama e vitórias nos recompensem, para que os
povos da Europa – meu amor, meu odiado e ameaçado amor – não se
deixem tragar sem piedade pelas forças obscuras que de tantos lados
os ameaçam, continuaremos a conversar com os que descreem sobre o
caminho mais certo. E a combater os mitos que os tolhem.
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