terça-feira, 14 de julho de 2015

Os calos pisados do Secretário de Estado da Cultura e um museu espezinhado / RAQUEL HENRIQUES DA SILVA / Director do Museu do Chiado demite-se em ruptura com a tutela

Director do Museu do Chiado demite-se em ruptura com a tutela
VANESSA RATO 08/07/2015 - 19:03 (actualizado às 20:45) / PÚBLICO

A uma semana da inauguração das novas instalações do MNAC-MC, a tutela quer revogar o depósito da Colecção SEC no museu.

O historiador de arte David Santos, à frente do Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado (MNAC-MC) há apenas um ano e meio, apresentou a sua demissão na manhã desta quarta-feira. Sai em ruptura total com a tutela a uma semana da inauguração das novas instalações do museu, uma ampliação dentro do Convento de São Francisco que duplicará o espaço expositivo e é aguardada desde meados da década de 1990.

Ao PÚBLICO, David Santos limitou-se a confirmar o seu pedido de demissão e a aceitação imediata deste pela Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC). Acusando apenas “incompatibilidades insuperáveis” com a tutela, o já ex-director recusou prestar quaisquer outras declarações.

A DGPC confirmou ao final desta tarde, em comunicado, ter aceite a demissão e anunciou que a direcção do museu será assegurada pelo sub-director-geral, Samuel Rego, até ser nomeado um novo director. Ao PÚBLICO e já ao início desta noite, Maria Resende, assessora de imprensa da DGPC, fez saber ainda que se tratou de uma decisão do próprio e que a direcção “estranha a atitude” de David Santos. Até ao momento, não foi possível obter uma reacção da Secretaria de Estado da Cultura (SEC).

Os motivos da saída num momento chave para a história do museu surgem esclarecidos na carta de demissão a que o PÚBLICO conseguiu acesso: pressões em torno do destino da vasta e importante colecção de arte contemporânea actualmente conhecida como Colecção SEC.

Composta por cerca de mil obras adquiridas pelo Estado a partir de 1975, a Colecção SEC integra trabalhos de nomes tão fundamentais como Júlio Pomar, Lourdes Castro, René Bértholo, Helena Almeida e Julião Sarmento, entre muitos outros artistas portugueses. Estava dispersas por várias instituições e organismos públicos – incluindo museus, gabinetes ministeriais e embaixadas –, até a 16 de Setembro de 2013 ser entregue ao MNAC-MC pelo actual secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier.

Destinava-se a suprir as mais graves lacunas – nas décadas de 1960 a 1980 – de um dos mais importantes museus portugueses, numa medida que se tornou efectiva a 5 de Fevereiro de 2014, com a publicação do despacho 1849-A/2014 em Diário da República.

Ficou pouco depois decidido que as obras de ampliação do museu abririam ao público com uma grande exposição em torno desse acervo. E, a uma semana da inauguração, é o que está ainda previsto. Mas o MNAC-MC poderá já não ser o destino último da colecção: a SEC decidiu entretanto revogar a sua própria decisão, podendo vir a dar outro destino à colecção.

Na carta de demissão que remeteu à DGPC, David Santos deixa por escrito como na última sexta-feira, 3 de Julho, foi “confrontado” pelo director-geral do Património Cultural, Nuno Vassallo e Silva, e pelo sub-director deste, Samuel Rego. Destes responsáveis terá recebido ordens directas para omitir de todos os materiais de divulgação qualquer alusão à afectação da colecção ao MNAC-MC.

Culminava assim um braço-de-ferro que terá começado em Abril último, data das primeiras indicações informais para alteração de materiais. A começar pelo título da mostra, que passou de Narrativa de uma colecção – o legado da Secretaria de Estado da Cultura ao MNAC-MC para Narrativa de uma colecção – Arte Portuguesa na Colecção SEC (1960-1990), título com que é apresentada no site da DGPC.

Essa alteração escamoteava a ideia de entrega da colecção ao museu. Mas a tutela pediu mais. E, após sucessivas recusas de David Santos, terá surgido na última sexta-feira a “ameaça” da retirada da colecção das mãos do museu com a revogação do despacho de 5 de Fevereiro de 2014. Uma “ameaça” efectivada depois do fim-de-semana, assumindo a forma de novo despacho que aguardará publicação em Diário da República mas que será efectivo desde 6 de Julho.

“Apesar de discordar da instrução superior, assumi o compromisso de alterar o subtítulo da nossa exposição […] na condição de que o texto de apresentação da exposição pudesse esclarecer tratar-se de uma mostra baseada numa colecção integrada desde Fevereiro de 2014 no MNAC-MC”, escreve David Santos na sua carta. Para o historiador de arte, uma vez alterado o título, eram esses textos “de carácter autoral” que “garantiam o sentido programático da exposição inaugural da histórica ampliação do MNAC”.

“A obliteração de parte fundamental dessa justificação iria destituir de sentido a curadoria e dignidade institucional dessa programação”, esclarece ainda este responsável. Para concluir: “Entendi que, para me manter fiel aos meus princípios, não restava outra alternativa que não a apresentação da minha demissão.”

Aos 43 anos, David Santos estava a meio da comissão de serviços de três anos com a qual transitou da direcção do Museu do Neo-Realismo, de Vila Franca de Xira, que assegurava desde 2007. Na altura da sua tomada de posse, em entrevista, o PÚBLICO questionou-o sobre o momento em que assumia o cargo, após a demissão de muitos nomes de topo na Cultura, o seu antecessor no cargo, o também historiador de arte Paulo Henriques, e a directora-geral do Património Cultural, Isabel Cordeiro. Com que expectativas assumia aquele cargo? “Com a convicção de que é sempre possível contornar as dificuldades”, respondeu então. “Plenamente consciente das dificuldades que o país e o sector atravessam”, David Santos dizia acreditar que “há sempre possibilidade de encontrar vias alternativas.”

Referia-se a dificuldades financeiras e logísticas.   

Os calos pisados do Secretário de Estado da Cultura e um museu espezinhado
RAQUEL HENRIQUES DA SILVA 14/07/2015 - PÚBLICO

No próximo dia 15 de Julho, ficarei à porta do ex-Governo Civil e recusar-me-ei a participar na inauguração da tão ansiada ampliação do Museu do Chiado.

A Colecção SEC- Secretaria de Estado da Cultura foi sendo constituída a seguir à Revolução de 1974 para apoiar os artistas, em época de total paragem do mercado. Ao tempo, Fernando Pernes impulsionara, no Porto, a criação do CAC – Centro de Arte Contemporânea no Museu Nacional de Soares dos Reis, embrião do MNAM – Museu Nacional de Arte Moderna, ao qual, desde 1980, foram disponibilizadas obras daquela colecção em crescimento.

Estas decisões foram reiteradas mais tarde, através de sucessivos protocolos. A situação manteve-se mesmo quando, sob a direcção de Vicente Todolí, o Museu de Serralves, sucessor do MNAM, definiu a sua orientação programática: Museu de Arte Contemporânea (desde 1968) e não de Arte Moderna (desde 1900) vocacionado para o contexto internacional, abrindo uma inédita dimensão de coleccionismo em Portugal. Por isso, a Col. SEC raramente foi utilizada nas actividades centrais de Serralves e muitas das suas obras, entre elas algumas da maior relevância, encontram-se em gabinetes no Palácio da Ajuda e na Presidência do Conselho de Ministros. Serralves não tem espaço para as acolher e a nenhum director, do passado e do presente, elas interessaram, a não ser excepcionalmente.

Entretanto o MNAC - Museu do Chiado, reinaugurado em 1994, foi reafirmando a missão que o criara em 1911 (“representar os artistas vivos”). Mediante o apoio de artistas e coleccionadores, os acervos foram sendo completados até 1960, e adquiriram-se obras de artistas em actividade desde 1990. Mas a grande lacuna, para que o Museu represente a arte portuguesa dos séculos XIX a XXI, manteve-se em relação às décadas de 1960 a 1980, exactamente aquelas que a Col. SEC melhor representa.

Sintetizando: a Col. SEC nunca chegou a ser componente fundamental das estratégias coleccionistas da Fundação de Serralves – em que a arte portuguesa é integrada em contextos internacionais – e tornou-se decisiva para o âmbito nacional do Museu do Chiado. Este é o entendimento dos especialistas e de direcções sucessivas dos dois museus e fundamenta o Despacho de Fevereiro de 2014, do actual Secretário de Estado da Cultura, determinando a afectação da Col. SEC à Direcção Geral do Património Cultural com incorporação no Museu do Chiado, embora mantendo em vigor os protocolos de depósito. A partir de então, os organismos e serviços que dispõem de peças da Col. SEC passaram a reportar ao Museu do Chiado. Assim aconteceu com o Museu de Serralves no que respeita a empréstimos e exposições, mesmo as internas, ou a necessidades de conservação e restauro. Estas questões são tratadas com cordialidade pelos respectivos serviços, a mesma que existiu no início da preparação da exposição com que o Director do Museu do Chiado, David Santos, propôs ao SEC inaugurar o novo espaço do Museu, em instalações anexas do ex-Governo Civil de Lisboa: exactamente uma exposição de mais de 100 obras da Col. SEC, de relevantes artistas da segunda metade do século XX, para clarificar, junto dos públicos interessados, quanto aquela Colecção permite ampliar as narrativas sobre a arte portuguesa. O SEC aprovou e apoiou, mesmo quando o Conselho de Administração (CA) de Serralves pretendeu que os protocolos antes celebrados impediam a cedência das obras ao Museu do Chiado por mais de seis meses e, sobretudo, que a Colecção SEC fosse referenciada pela sua nova tutela. Foi-se de cedência em cedência até que, a oito dias da inauguração da exposição, o Director do Museu recebeu ordens para retirar qualquer menção ao Despacho de 2014 e, portanto, à incorporação da Colecção no Museu do Chiado, mesmo nos textos que, no catálogo, explicitam o porquê da opção da Exposição no novo espaço. Simultaneamente o SEC declarava que iria alterar o Despacho que assinara em 2014 e fundamentara o programa do Museu para o seu espaço de ampliação.

Conhece-se o resultado: David Santos demitiu-se, a co-curadora Adelaide Ginga recusou continuar a montagem, perante a censura sobre as opções curatoriais, o Museu está a ser gerido por um subdirector da DGPC e vieram dois técnicos de Serralves que infelizmente aceitaram fazer uma exposição em instituição alheia sem que tivessem sido convidados.

Urge perguntar o essencial: como justifica o SEC que o Despacho que assinou em 2014 seja agora substituído, embora constituindo a razão de ser da exposição que o Museu preparou com seu pleno conhecimento e anuência?

Quanto ao Presidente do CA de Serralves, saberá ele que a Col. SEC nunca foi, não é, nem será uma componente significativa do programa de actividades do Museu? Porquê insistir num direito de posse, justificando-se com protocolos que, como tudo na vida, devem actualizar-se? Ou entende ele que os quadros que só queria emprestar ao Chiado durante seis meses, devem permanecer nos corredores e gabinetes do Palácio da Ajuda ou na residência do Primeiro-Ministro, como acontece hoje com Paula(s) Rego, Jorge Martins, Cabrita Reis e bastantes mais, alguns com problemas de conservação?

Finalmente: que governantes são estes que retiram o apoio a um Director que antes nomearam, a meio da sua comissão legal, desempenhada com reconhecimento dos pares e dos públicos do museu, e, no dia em que aceitam a sua demissão, dão ordens à segurança do Museu para lhe vedarem o acesso ao seu gabinete?

Bem longe da cordialidade que caracterizou sucessivos CA de Serralves, o actual Presidente disse ao Público que “não gosta que lhe pisem os calos”. Por isso telefonou a Passos Coelho que ordenou obediência ao SEC. Há sempre quem goste e consinta que lhe pisem os calos.

Pessoalmente, vou assumir o direito à indignação: no próximo dia 15 de Julho, ficarei à porta do ex-Governo Civil e recusar-me-ei a participar na inauguração da tão ansiada ampliação do Museu do Chiado. Espero que muitos façam o mesmo, especialmente os artistas da Col. SEC que terão, naquele espaço, uma representação permanente. Mas para que tal corra bem é preciso que seja o Museu do Chiado a fazê-la, com a sua excelente equipa, e não técnicos de museu alheio, submetidos a obediência sem direito a fala.


Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Representante das Universidades no Conselho Nacional de Cultura – Secção Museus

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