Os
calos pisados do Secretário de Estado da Cultura e um museu
espezinhado
RAQUEL HENRIQUES DA
SILVA 14/07/2015 - PÚBLICO
No
próximo dia 15 de Julho, ficarei à porta do ex-Governo Civil e
recusar-me-ei a participar na inauguração da tão ansiada ampliação
do Museu do Chiado.
A Colecção SEC-
Secretaria de Estado da Cultura foi sendo constituída a seguir à
Revolução de 1974 para apoiar os artistas, em época de total
paragem do mercado. Ao tempo, Fernando Pernes impulsionara, no Porto,
a criação do CAC – Centro de Arte Contemporânea no Museu
Nacional de Soares dos Reis, embrião do MNAM – Museu Nacional de
Arte Moderna, ao qual, desde 1980, foram disponibilizadas obras
daquela colecção em crescimento.
Estas decisões
foram reiteradas mais tarde, através de sucessivos protocolos. A
situação manteve-se mesmo quando, sob a direcção de Vicente
Todolí, o Museu de Serralves, sucessor do MNAM, definiu a sua
orientação programática: Museu de Arte Contemporânea (desde 1968)
e não de Arte Moderna (desde 1900) vocacionado para o contexto
internacional, abrindo uma inédita dimensão de coleccionismo em
Portugal. Por isso, a Col. SEC raramente foi utilizada nas
actividades centrais de Serralves e muitas das suas obras, entre elas
algumas da maior relevância, encontram-se em gabinetes no Palácio
da Ajuda e na Presidência do Conselho de Ministros. Serralves não
tem espaço para as acolher e a nenhum director, do passado e do
presente, elas interessaram, a não ser excepcionalmente.
Entretanto o MNAC -
Museu do Chiado, reinaugurado em 1994, foi reafirmando a missão que
o criara em 1911 (“representar os artistas vivos”). Mediante o
apoio de artistas e coleccionadores, os acervos foram sendo
completados até 1960, e adquiriram-se obras de artistas em
actividade desde 1990. Mas a grande lacuna, para que o Museu
represente a arte portuguesa dos séculos XIX a XXI, manteve-se em
relação às décadas de 1960 a 1980, exactamente aquelas que a Col.
SEC melhor representa.
Sintetizando: a Col.
SEC nunca chegou a ser componente fundamental das estratégias
coleccionistas da Fundação de Serralves – em que a arte
portuguesa é integrada em contextos internacionais – e tornou-se
decisiva para o âmbito nacional do Museu do Chiado. Este é o
entendimento dos especialistas e de direcções sucessivas dos dois
museus e fundamenta o Despacho de Fevereiro de 2014, do actual
Secretário de Estado da Cultura, determinando a afectação da Col.
SEC à Direcção Geral do Património Cultural com incorporação no
Museu do Chiado, embora mantendo em vigor os protocolos de depósito.
A partir de então, os organismos e serviços que dispõem de peças
da Col. SEC passaram a reportar ao Museu do Chiado. Assim aconteceu
com o Museu de Serralves no que respeita a empréstimos e exposições,
mesmo as internas, ou a necessidades de conservação e restauro.
Estas questões são tratadas com cordialidade pelos respectivos
serviços, a mesma que existiu no início da preparação da
exposição com que o Director do Museu do Chiado, David Santos,
propôs ao SEC inaugurar o novo espaço do Museu, em instalações
anexas do ex-Governo Civil de Lisboa: exactamente uma exposição de
mais de 100 obras da Col. SEC, de relevantes artistas da segunda
metade do século XX, para clarificar, junto dos públicos
interessados, quanto aquela Colecção permite ampliar as narrativas
sobre a arte portuguesa. O SEC aprovou e apoiou, mesmo quando o
Conselho de Administração (CA) de Serralves pretendeu que os
protocolos antes celebrados impediam a cedência das obras ao Museu
do Chiado por mais de seis meses e, sobretudo, que a Colecção SEC
fosse referenciada pela sua nova tutela. Foi-se de cedência em
cedência até que, a oito dias da inauguração da exposição, o
Director do Museu recebeu ordens para retirar qualquer menção ao
Despacho de 2014 e, portanto, à incorporação da Colecção no
Museu do Chiado, mesmo nos textos que, no catálogo, explicitam o
porquê da opção da Exposição no novo espaço. Simultaneamente o
SEC declarava que iria alterar o Despacho que assinara em 2014 e
fundamentara o programa do Museu para o seu espaço de ampliação.
Conhece-se o
resultado: David Santos demitiu-se, a co-curadora Adelaide Ginga
recusou continuar a montagem, perante a censura sobre as opções
curatoriais, o Museu está a ser gerido por um subdirector da DGPC e
vieram dois técnicos de Serralves que infelizmente aceitaram fazer
uma exposição em instituição alheia sem que tivessem sido
convidados.
Urge perguntar o
essencial: como justifica o SEC que o Despacho que assinou em 2014
seja agora substituído, embora constituindo a razão de ser da
exposição que o Museu preparou com seu pleno conhecimento e
anuência?
Quanto ao Presidente
do CA de Serralves, saberá ele que a Col. SEC nunca foi, não é,
nem será uma componente significativa do programa de actividades do
Museu? Porquê insistir num direito de posse, justificando-se com
protocolos que, como tudo na vida, devem actualizar-se? Ou entende
ele que os quadros que só queria emprestar ao Chiado durante seis
meses, devem permanecer nos corredores e gabinetes do Palácio da
Ajuda ou na residência do Primeiro-Ministro, como acontece hoje com
Paula(s) Rego, Jorge Martins, Cabrita Reis e bastantes mais, alguns
com problemas de conservação?
Finalmente: que
governantes são estes que retiram o apoio a um Director que antes
nomearam, a meio da sua comissão legal, desempenhada com
reconhecimento dos pares e dos públicos do museu, e, no dia em que
aceitam a sua demissão, dão ordens à segurança do Museu para lhe
vedarem o acesso ao seu gabinete?
Bem longe da
cordialidade que caracterizou sucessivos CA de Serralves, o actual
Presidente disse ao Público que “não gosta que lhe pisem os
calos”. Por isso telefonou a Passos Coelho que ordenou obediência
ao SEC. Há sempre quem goste e consinta que lhe pisem os calos.
Pessoalmente, vou
assumir o direito à indignação: no próximo dia 15 de Julho,
ficarei à porta do ex-Governo Civil e recusar-me-ei a participar na
inauguração da tão ansiada ampliação do Museu do Chiado. Espero
que muitos façam o mesmo, especialmente os artistas da Col. SEC que
terão, naquele espaço, uma representação permanente. Mas para que
tal corra bem é preciso que seja o Museu do Chiado a fazê-la, com a
sua excelente equipa, e não técnicos de museu alheio, submetidos a
obediência sem direito a fala.
Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Representante das Universidades no Conselho Nacional de Cultura –
Secção Museus
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