A Caixa de Pandora está aberta. E Pandora era grega. |
É
perigoso ficar já "farto" de falar da Grécia
JOSÉ PACHECO
PEREIRA 18/07/2015 - PÚBLICO
A
questão nunca foi conduzir bem ou mal as negociações, mas o facto
de, por imposição da Alemanha, se ter sempre decidido que não
havia acordo com os esquerdistas do Syriza.
Eu sei que está
toda a gente farta da Grécia, de ouvir notícias sobre a Grécia, de
falar da Grécia. O sistema mediático tem este efeito de rápido
cansaço e gera também a vontade de passar para outra coisa ou outra
causa. Para além disso, tudo parece já estar decidido e não vale a
pena chover no molhado. Vale, vale.
Depois há a
sensação de derrota dos filo-helenos, seja dos políticos
pró-Syriza, seja dos admiradores mais dos gregos do que do Syriza.
Todos partilham uma sensação incómoda porque mistura sentimentos
de traição, humilhação, derrotismo, impotência, tudo coisas
pouco amáveis para a auto-estima.
Ainda pior é ver a
alegria dos que, ao lado de personagens como Dijsselbloem, gozam a
sua vingança contra Varoufakis que, de todo não respeitava o
holandês pedestre, e contra os gregos que tiveram o arrojo de votar
“não”. Digamos que é o clube português dos fans de
Dijsselbloem, que festeja a vitória em artigos nos locais certos,
nas redes sociais e nos comentários, numa espécie de jogo de
futebol contra o clube português dos fans de Varoufakis, no qual,
imagine-se a brilhante inteligência, incluem… António Costa.
Senhor, perdoai-lhes
porque não sabem o que fazem. O problema é que sabem: querem
manter-se no poder e prosseguir um programa de revanche social e
política contra os que desde o 25 de Abril lhes roubaram o direito
natural de mandar.
É por isso que me é
inaceitável o argumento salomónico que muitos socialistas usam para
se justificar, atribuindo “culpas” ao governo grego e à
“Europa”, umas concretas e com alvo, as outras abstractas e
genéricas, como se o resultado final se devesse ao modo como os
gregos se comportaram nas negociações e não à recusa sempre
sistemática dos alemães e do Eurogrupo em negociar fosse o que
fosse, com o apoio dedicado dos socialistas. Os gregos podem ter
feito todas as asneiras possíveis, que isso não justifica o que se
passou. Mesmo os meses que durou isto tudo, não foram os meses
necessários para negociar qualquer coisa, mas os meses necessários
a colocá-los entre a espada e a parede e por fim vergá-los. Nunca,
jamais, em tempo algum, poderia ter sido de outra maneira, porque
nunca quem manda desejou que fosse de outra maneira.
Muitas das propostas
gregas logo de início eram bastante moderadas (recordam-se de como
os fans de Dijsselbloem disseram que os gregos tinham vergado como
Hollande…), mas a perigosidade evidente de um governo como o do
Syriza obter qualquer ganho de causa era inaceitável para governos
como o português e o espanhol, e era uma bofetada para os
socialistas colaboracionistas. A questão nunca foi conduzir bem ou
mal as negociações, mas o facto de, por imposição da Alemanha, se
ter sempre decidido que não havia acordo com os esquerdistas do
Syriza.
Os alemães e os
seus acólitos tinham um programa de humilhação, com um acordo que
foi afinal escrito pelo Syriza a branco, para eles o reescreverem a
preto. O acordo com a Grécia, na realidade um diktat, só tem uma
lógica: obrigar os gregos a engolir tudo o disseram que não
desejavam. Não tem lógica económica, nem financeira, tem apenas
uma lógica política de humilhação. Querias isto? Pois levas com
um não-isto. Foi assim que foi feito o chamado acordo.
E não me venham com
o argumento de “confiança”, por parte de governantes como
Merkel, Rajoy e Passos Coelho que apoiaram Samaras e a Nova
Democracia até ao fim, sabendo que apoiavam um governo corrupto e
oligárquico, coisa que o Syriza nunca foi acusado de ser. Esse
governo “confiável” literalmente evaporou centenas de milhares
de milhões de euros e permitiu que a Grécia, endividando-se até ao
limite, funcionasse como tapete rolante para reciclar a dívida dos
bancos franceses e alemães para os contribuintes europeus. E não me
falem de “confiança” face a um acordo-diktat em que ninguém
acredita, em que ninguém “confia” e que assenta no poder e no
cinismo.
É uma exibição
brutal de poder, que coloca a Grécia a ser governada de Bruxelas e
Berlim, por gente que vai decidir os horários das lojas ao domingo,
quem pode ter uma farmácia, como funcionam as leitarias e as
padarias, e quem pode conduzir ferrys para as ilhas. Mas há mais:
são revertidas decisões constitucionais de tribunais gregos e, como
em Portugal se fez, mudanças legais para acelerar despejos,
expropriações, falências e para retirar aos trabalhadores direitos
sindicais e de negociação.
Depois há Schäuble,
mas isso é outro nível das coisas, aquelas que vale a pena
discutir. O que é que se assistiu nos últimos dias? Várias coisas
que já são seguras e outras que estão em desenvolvimento.
Comecemos pelas
“regras”. Como se sabe os gregos foram acusados de violar as
“regras” do euro, e uma fila de pequenos governantes limitados
enchiam a boca com as “regras”. Ora se há processo que violou
desde o início as “regras” da União foi o modo como foi
conduzido o caso grego. Nenhuma das três instituições europeias, o
Conselho, o Parlamento e a Comissão assumiu o seu papel neste
processo, substituídas por uma entidade informal, o Eurogrupo, e
dentro do Eurogrupo pela palavra e posições alemãs que sempre
decidiram o que se fazia e o que não se fazia.
A União Europeia
não são os dezanove, a que se podia subtrair um, a Grécia, ficando
dezoito. São vinte e oito, o que significa que nove estados que não
têm o euro como moeda ficaram de fora. Um deles foi o Reino Unido,
completamente marginalizado de uma discussão que foi muito mais
longe do que apenas a política monetária do euro, mas foi um dos
mais importantes momentos da história política da União. Mais:
algumas decisões tomadas no Eurogrupo implicam fundos comunitários
sobre os quais o Reino Unido também tem direitos, e ninguém se deu
ao trabalho de telefonar a Cameron para o envolver nas discussões e
nas decisões. A marginalização do Reino Unido é um grave
precedente para o referendo que se vai realizar sobre a pertença à
União Europeia.
Isto significa que o
Conselho, que reúne os chefes de governo da União, com euro ou sem
euro, e o Parlamento, cujo protagonismo os europeístas gostam tanto
de exaltar, assistiram sem qualquer papel à crise grega. O mesmo se
pode dizer da Comissão sempre subalternizada pelos alemães e os
seus aliados como pouco fiável na dureza que queriam impor aos
gregos. A Comissão, depositária dos Tratados, assistiu à violação
desses mesmos Tratados pela Alemanha e o Eurogrupo, sem pestanejar
ou, se pestanejou, como alguns afirmam, ficou por aqui. Aliás a
marginalização da Comissão é institucionalizada no acordo imposto
à Grécia, que implica a participação obrigatória do Fundo
Monetário Internacional, uma instituição de fora da União, com
quem passa a partilhar o “controlo” do resgate. Esta foi, mais
uma vez, uma imposição alemã.
Não, eu não sou
salomónico. Reconheço que os gregos cometeram muitos erros, mas
recuso-me a colocar esses erros no mesmo patamar do que lhes fizeram.
E o que lhes fizeram, uma mistura de vingança e humilhação, mostra
bem o que a “Europa” hoje é. De há algum tempo para cá, já
sabíamos o que ela estava a deixar de ser, a Europa dos fundadores,
construída a favor da paz e pela solidariedade.
Hoje não foi a
senhora Le Pen que foi dizer aos eleitores que devem ser egoístas se
são ricos e submissos se são pobres. Foram Passos Coelho e Cavaco
Silva, em Portugal, foi Rajoy em Espanha, foi Dijsselbloem na
Holanda, foi Merkel na Alemanha, foram partidos e governantes como os
antigos Verdadeiros Finlandeses, que até há pouco tempo eram
esconjurados pelos europeístas e agora são eles que dão o tom à
“Europa”.
Os estragos deste
egoísmo não vão desparecer e um dia virão bater à nossa porta.
Não é difícil imaginar como. Também nós esperamos “crescer”
nos próximos anos com os fundos comunitários, uma dádiva dos
países que são contribuintes líquidos, ou seja, dos contribuintes
alemães. Só por ingenuidade é que nós pensamos que o mesmo
argumento que é usado para os gregos não pode virar-se contra nós.
Não fazemos parte dos “preguiçosos” do sul? Por que razão um
honesto e trabalhador operário especializado numa fábrica da
Renânia-Vestfália vai ter que pagar dos seus impostos para esses
portugueses que “vivem à nossa custa” quando um seu companheiro
alemão da Pomerânia ganha metade do que ele ganha?
A Caixa de Pandora está aberta. E Pandora era grega.
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