O
óbvio
JOÃO MIGUEL TAVARES
23/07/2015 - PÚBLICO
Quando
surgir enfim o dia claro, em que toda a gente comece a ver o óbvio,
não terei certamente lugar nos jornais.
Eu sou um
frequentador — e um apreciador — das caixas de comentários dos
meus textos, o que só se justifica por uma mistura de masoquismo e
vaidade.
Por um lado, admiro
quem se dá ao trabalho de reflectir sobre o que escrevo, por outro,
tenho sempre à minha disposição um vasto leque de críticas e de
insultos, sempre úteis para testar argumentos e domesticar o ego.
Após a publicação do meu último texto — A realidade é de
direita —, houve uma crítica que me tocou particularmente, não
tanto pelo seu acinte mas pela sua exactidão. Um leitor afirmou no
site deste jornal que eu era uma “criança de jardim-de-infância”,
que gasta o seu tempo a escrever “banalidades sem qualquer valor
intelectual” e a “dizer numa coluna do Público o que qualquer
idiota de café é capaz de dizer”.
Este leitor está
certíssimo. Eu próprio me interroguei, durante muitos anos, porque
continuava a escrever nos jornais quando as minhas opiniões eram
absolutamente óbvias, destituídas de qualquer sofisticação ou
originalidade particular, sendo basicamente compostas, como muito bem
viu o leitor, por um conjunto de banalidades sem valor intelectual
que qualquer idiota de café é capaz de produzir. Assaltado durante
imenso tempo por tal dúvida, acabei por encontrar uma resposta
apaziguadora e clarificadora num texto que George Orwell publicou em
1946, intitulado In Front of Your Nose, que me parece muito útil
citar aqui.
Escreveu Orwell: “Na
sua vida pessoal, a maior parte das pessoas é bastante realista.
Quando se está a planear o orçamento semanal, dois mais dois são
invariavelmente quatro. A política, pelo contrário, é uma espécie
de mundo subatómico ou não-euclidiano, onde é bastante fácil a
parte ser maior do que o todo ou dois objectos estarem em simultâneo
no mesmo local. Daí os absurdos e as contradições que ocorrem, e
que em última análise se justificam pela secreta convicção de que
as opiniões políticas de cada um, ao contrário do orçamento
semanal, nunca terão de ser testadas contra a sólida realidade.”
Foi a partir desta
premissa que George Orwell cunhou, nesse mesmo texto, uma das suas
frases mais populares: “To see what is in front of one’s nose
needs a constant struggle.” Em português: “É preciso uma luta
constante para vermos o que está em frente do nosso nariz.” Ora,
se não há dúvida de que eu só escrevo sobre o que está em frente
do meu nariz, vocês não imaginam a quantidade de gente que tem uma
enorme dificuldade em lidar com os seus narizes. Embora os cafés
portugueses estejam, de facto, cheios de idiotas, como notou o leitor
e muito bem, a triste verdade é que eles não passam o tempo todo a
dizer o óbvio — os idiotas portugueses passam o tempo todo a negar
o óbvio.
Se a política em
Portugal fosse utilizada para discutir em detalhe as reformas que são
necessárias para o país progredir, eu estava tramado. Não sei o
suficiente sobre isso. Só que em Portugal a política serve para
discutir se essas reformas são mesmo necessárias — e isso é tão
óbvio, que eu safo-me. Se a política servisse para mudar a
realidade que existe, eu estava tramado. Mas como ela serve para
discutir a existência da realidade, isso é tão óbvio, que eu
desenrasco. Quando surgir enfim o dia claro, em que toda a gente
comece a ver o óbvio, não terei certamente lugar nos jornais. Só
que convém esperar sentado: 70 anos depois de In Front of Your Nose
ainda há imensas pessoas que continuam a não vislumbrar o
frontispício da sua penca. E o azar delas é a minha sorte.
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