Erdogan
e a sua “guerra em duas frentes
Jorge Almeida
Fernandes / 28-7-2015 / PÚBLICO
Cedeu a Turquia à
pressão norte-americana para integrar a guerra contra o Estado
Islâmico (EI), tirando as conclusões do recente acordo nuclear
entre Washington e Teerão? Ou o volte-face da estratégia turca, ao
bombardear o EI, é uma cortina de fumo para impedir a criação de
uma área autónoma curda na Síria? Ou imaginou o Presidente Tayyip
Erdogan uma “manobra magistral” para impor a sua supremacia após
o fiasco nas eleições legislativas de 7 de Junho? Talvez um pouco
de tudo.
O acordo é
aparentemente vantajoso para Washington e Ancara. Os americanos
precisam simultaneamente do Irão e da Turquia para combater o EI. E
têm o desígnio de atenuar a linha de fractura entre sunitas e
xiitas e também de equilibrar, a seu favor, a influência de uns e
de outros.
O acordo de Viena
sobre o nuclear reforçou o estatuto do Irão e enfraqueceu Ancara,
que tem acumulados reveses estratégicos desde há três ou quatro
anos. A Turquia foi durante décadas o aliado indispensável no
flanco sul da NATO. Tem-se afastado da aliança ocidental, provocando
a desconfiança americana. Entretanto, o acordo com o Irão, aliado
de facto dos americanos no combate ao EI, desvalorizou o peso e a
margem de manobra de Ancara. Será uma primeira razão da
“rectificação” da estratégia turca.
Ao autorizar os
Estados Unidos a utilizar as bases aéreas de Incirlik e de
Diyarbakir, os turcos obtêm em troca a promessa de criação uma
zona de exclusão aérea, o que muito lhes interessa. A justificação
formal da no-fly zone é proteger da aviação síria os rebeldes
amigos da Turquia ou dos americanos. Ancara tem outro interesse. É
um meio para impedir que os curdos sírios da União Democrática
Curda (PYD), estreita aliada dos curdos turcos do Partido dos
Trabalhadores do Curdistão (PKK), consolidem uma área
territorialmente contígua junto da fronteira turca, ligando o
Curdistão sírio ao iraquiano. É uma obsessão estratégica de
Ancara.
Para os EUA, juntar
o Irão e a Turquia na aliança antiEI — de que nenhum dos dois faz
formalmente parte — é uma vantagem importante. Dado que Ancara e
Teerão têm objectivos políticos opostos na questão síria, os EUA
poderão reforçar a sua margem de manobra.
Mas americanos e
europeus têm de gerir um problema complicado. Se a Turquia se lança
numa “guerra em duas frentes” — contra o EI e os curdos —,
todos sabem que a sua prioridade são os curdos. Ancara não declarou
guerra ao jihadismo, mas a “todas as ameaças terroristas”.
Escreveu o diário Sabah, dirigido pelo genro de Erdogan, que o braço
armado do PYD “é mais perigoso do que o Daesh” [EI]. Para
Ancara, o EI é uma ameaça passageira que se dissipará quando o
regime de Assad cair. Ao contrário, os curdos estão para ficar.
Atacar bases do EI
na Síria e servir-se disso para atacar o PKK no Iraque não é uma
ideia que agrade a americanos, europeus e países vizinhos que não
querem mais um foco de conflito armado. Os curdos são amigos
tradicionais de Washington e aliados eficazes na guerra contra o EI.
Será o primeiro ponto de fricção entre turcos e americanos.
A política interna
No plano da política
interna o quadro propicia teses conspirativas. Sublinham analistas
que Erdogan e o seu primeiro-ministro, Ahmet Davutoglu, têm a noção
de que o seu Governo, depois de perder o rumo no campo diplomático,
ficou encerrado num impasse no plano interno quando as eleições de
Junho retiraram a maioria absoluta ao seu Partido da Justiça e do
Desenvolvimento (AKP).
Explica o analista
turco Ömer Taspinar, investigador da Brookings Institution e
colunista do diário Zaman, que Erdogan “matou três coelhos de uma
cajadada”: renovar as relações com Washington; fazer guerra ao EI
para poder atacar o inimigo que quer eliminar, o PKK; e criar
condições para restabelecer a sua primazia na cena política turca,
através de eleições antecipadas.
As eleições de
Junho tiveram três efeitos. Puseram em xeque o plano de Erdogan para
impor um regime presidencialista à sua medida. Fizeram entrar em
força no Parlamento o partido pró-curdo de Selahattin Demitras —
Partido Democrático dos Povos (HDP) — e criaram a necessidade de
formar um governo de coligação, o que confirmaria o sistema
parlamentarista.
Entretanto, seis
anos de negociações entre o Governo e o PKK — uma iniciativa de
Erdogan — parecem ter chegado ao fim e ameaçam um regresso da
violência. É um círculo vicioso: o AKP deixou de ter força para
impor um acordo aos nacionalistas turcos, enquanto o PKK, graças ao
combate contra o EI, se terá tornado demasiado forte para o AKP com
ele poder negociar, resume o analista Mustafa Gurbuz.
Demitras acusa
Erdogan de “arrastar o país para uma guerra civil”, a fim de
reconquistar a sua maioria absoluta através de um “clima
nacionalista e militarista, dando a impressão de querer travar uma
luta conjunta contra o terrorismo”.
O cenário de
eleições antecipadas no Outono é tido como muito provável.
Erdogan apareceria como “homem providencial” e “protector da
nação”. O HDP ficaria fora do Parlamento e Erdogan voltaria a
sonhar com o presidencialismo.
O bombardeamento de
24 de Julho tem, assim, muitas facetas. De momento, permanecemos no
domínio da especulação, porque há demasiados jogadores com
interesses contraditórios e desígnios escondidos. Para perceber um
pouco mais teremos de esperar que, finalmente, mostrem o seu jogo.
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