quarta-feira, 22 de julho de 2015

A linha vermelha da China


A linha vermelha da China
22 jul 2015 / Edicao Publico Lisboa / Análise Carlos Gaspar

Não há nada nos clássicos do marxismo-leninismo que possa orientar a direcção do Partido Comunista da China sobre como responder a uma crise dos mercados financeiros
Em três semanas, entre 12 de Junho e 4 de Julho, as bolsas de Xangai e de Shenzhen caíram 30 por cento, perderam três triliões de dólares (ou 18,6 triliões de Renminbi) e provocaram um momento de pânico na direcção do Partido Comunista da China, forçado a intervir decisivamente para travar os riscos de colapso dos mercados financeiros.

A intervenção das instituições oficiais nos mercados começou por uma redução das taxas de juro, acompanhada pela injecção de 470 mil milhões de Renminbi no sistema bancário, prolongou-se com a proibição aos accionistas de referência e aos chefes de empresa de vender acções, acompanhada pelo compromisso dos fundos estatais em investir 120 mil milhões de Renminbi na aquisição de títulos, e culminou com a ordem de suspender as transacções de títulos da maioria das empresas cotadas, acompanhada pela intervenção do banco central na compra de acções. Desse modo, a direcção do Partido Comunista disciplinou o mercado: o pânico parou a tempo e a ameaça de colapso passou a ser, na fórmula do Goldmann Sachs, uma “correcção rápida e furiosa”, que fez as bolsas perderem o que tinham ganho nos últimos meses e regressar aos níveis, aparentemente mais realistas, de Março deste ano.
O tema das relações entre o Partido Comunista e as crises financeiras é irresistível. Marx jogava, com sucesso, na bolsa de Nova Iorque, mas não teorizou sobre a regulação dos mercados. Lenine não deixou nada escrito sobre a linha correcta para conter o pânico dos investidores ou sobre o modo de submeter as bolsas à vontade do Partido.
Estaline julgou que a Grande Depressão era a crise final do capitalismo e fez a reputação da União Soviética valorizando as virtudes da sua imunidade à instabilidade do capitalismo financeiro. Mas não há nada nos clássicos do marxismo-leninismo que possa orientar a direcção do Partido Comunista da China sobre como responder a uma crise dos mercados financeiros, por uma boa e simples razão: nenhum dos teóricos de referência imaginou ser possível um modelo de comunismo capitalista.
O “socialismo com características chinesas” é um “socialismo de mercado” e, como tal, tão ou mais vulnerável do que as “democracias de mercado” às oscilações bruscas e às flutuações misteriosas do capitalismo financeiro. À partida, as respostas socialistas e as respostas democráticas às crises não devem ser diferentes e, na fase inicial, as instituições chinesas recorreram a medidas convencionais para restaurar a confiança dos investidores — incluindo os 90 milhões de pequenos investidores chineses. Mas, numa fase posterior, perante a persistência dos “comportamentos irracionais”, o Partido recorreu a medidas excepcionais de intervenção estatal que revelam os limites das afinidades entre o regime chinês e os seus primos capitalistas, cuja capacidade (crescente) de inovação neste domínio está circunscrita pelo Estado de direito. Essa questão é séria em si mesma, mas também porque está em causa o sentido da evolução política chinesa, na luta entre duas linhas — a linha negra que quer regresssar ao estatismo nacionalista e proteccionista e a linha vermelha que quer continuar a linha da liberalização e da abertura inaugurada por Deng Xiaoping.
A crise confirmou, desde logo, a necessidade de reformar o sistema financeiro na China. O último relatório do Banco Mundial sublinhava a urgência de “reconfigurar o papel do Estado” para travar os investimentos improdutivos e os excessos de endividamento num sistema bancário com uma regulação demasiado fraca. Por outro lado, a acumulação das dividas dos governos provinciais e das entidades empresariais, que somam 280% do produto interno bruto, revelam uma vulnerabilidade acrescida do modelo de capitalismo de Estado chinês, onde a dívida cresce duas vezes mais depressa do que a economia. Por último, segundo as previsões dos planificadores chineses, os ritmos de crescimento tendem, naturalmente, a diminuir para se aproximarem dos 7% anuais, uma mudança que marca o fim de um ciclo excepcional.
Nenhum desses problemas é inesperado, tal como a quebra nas bolsas era previsível, mais tarde ou mais cedo. Nesse sentido, não há nenhuma razão para rever as avaliações sobre a restauração gradual da posição internacional da China como uma grande potência, que representa o essencial do programa do regime comunista.
Porém, não é evidente quais são as consequências da crise para a luta entre as duas linhas. A crise tanto pode servir para demonstrar os malefícios do capitalismo e a interferência de “forças estrangeiras hostis” que querem derrubar o regime comunista na China, como para sustentar a urgência de modernizar o modelo do comunismo capitalista para o tornar mais competitivo, mais aberto e mais responsável, quer no domínio social, quer no domínio ecológico.
O Presidente Xi Jinping e o primeiro-ministro Li Keqiang querem dar mais força ao mercado, ao mesmo tempo que resistem à liberalização política, os seus adversários internos querem dar mais força ao Estado e inverter a liberalização económica. Os primeiros reconhecem
a necessidade de manter a estabilidade internacional para a China poder continuar concentrada no seu processo de modernização, os seus adversários entendem ter chegado o momento de demonstrar o poder acrescido da China para impor a sua hegemonia regional.


Na China, a linha negra é o autoritarismo nacionalista e proteccionista e a linha vermelha a combinação entre o regime comunista, a modernização do sistema capitalista e a abertura externa: se a primeira prevalecer, a transição internacional vai acelerar.

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