Um
partido também pode falir ideologicamente
Pedro Sousa Carvalho
09/10/2015 - PÚBLICO
Foi
numa noite bem passada a negociar um Orçamento, que nasceu o embrião
da reforma do Estado.
Ir à Soeiro Pereira
Gomes e pedir um entendimento entre socialistas e comunistas que
envolva um governo estável e que cumpra com as regras do euro é
como ir a uma loja vegetariana e pedir para aviar um belo naco de
carne. Não existe. Não se vende. E mesmo que se vendesse seria
intragável e os socialistas teriam de pagar um preço tal que iriam
à bancarrota. À bancarrota ideológica e à bancarrota moral e
ficariam falidos politicamente. Sem créditos para voltar a pedir ao
seu eleitorado, que é moderado, o voto nas próximas eleições,
sejam elas quando forem.
Não se trata de
diabolizar o PCP, que até desempenha um papel importante de
fiscalização dos sucessivos governos no Parlamento. É verdade que
os partidos mudam com os tempos: quem diria há umas décadas que os
comunistas iriam escolher um teólogo e um ex-padre para ser
candidato a Belém? É verdade que Raul Castro já desbravou o
caminho divino ao dizer: “[Se o Papa Francisco] continuar a falar
assim, um dia destes vou recomeçar a rezar e regressarei à Igreja
Católica.”
Para o caso de poder
estar a ser injusto com o PCP, ainda me dei ao trabalho de ir folhear
o programa eleitoral da CDU e ver se mais alguma coisa tinha mudado
face aos últimos 40 anos. Nas primeiras páginas defende que quer
“uma nova política que rompa com a conivência e subserviência
face às orientações da União Europeia, com a renegociação da
dívida e a libertação da submissão ao euro e da NATO”. Desisti.
Continuam a defender as nacionalizações na banca e na energia, a
reposição de todos os cortes e o aumento de todos os rendimentos,
salários, subsídios, prestações e pensões, tudo de uma só
assentada. E como é que se paga isso tudo, sem o país ir à
bancarrota? Por obra e graça do Espírito Santo. Pode ser que o
ex-padre candidato presidencial interceda a favor das nossas finanças
públicas.
O pior para António
Costa é que não basta fazer um acordo com o PCP para garantir uma
maioria no Parlamento; também precisa do Bloco de Esquerda. Um
governo PS, PCP e Bloco? Quem é que ficaria com a pasta das
Finanças? Mariana Mortágua? Yanis Varoufakis ao pé de Mortágua é
um economista moderado.
A António Costa
resta um único caminho que é o de se entender ou fazer de conta que
se entende com a coligação de direita. Aliás, o acordo de governo
que foi assinado esta semana pelo PSD e CDS-PP foi feito quase à
medida de um entendimento com o PS e das quatro reivindicações que
foram feitas pelo secretário-geral no discurso de derrota na noite
eleitoral. Quando António Costa pede para se “virar a página da
austeridade e da estratégia de empobrecimento”, a coligação
responde com “a reposição gradual do poder de compra e o combate
à pobreza”. Quando o líder dos socialistas reclama “defesa do
Estado social”, o PSD-CDS repete “defender e reforçar o Estado
social”. Quando o secretário-geral do PS pede para se “relançar
o investimento na ciência e na inovação”, Passos e Portas
respondem com “um modelo assente no crescimento do investimento
privado e na inovação”. E quando Costa fala em “assegurar o
respeito pelos compromissos europeus e internacionais de Portugal”,
está a mostrar que do Largo do Rato mais depressa se chega à São
Caetano à Lapa do que à Soeiro Pereira Gomes.
Num país onde nunca
houve um Orçamento do Estado chumbado em democracia, António Costa
poderá viabilizar as contas da coligação à maneira de Ferreira
Leite ou à moda de Passos Coelho. Quando Manuela Ferreira Leite
viabilizou o primeiro Orçamento com José Sócrates minoritário,
tapou os olhos, não quis saber o que lá estava e viabilizou-o em
nome do interesse nacional. Achou, e bem, que os custos de não o
viabilizar seriam superiores aos de ter de aceitar esta ou aquela
medida com a qual não concordava. António Costa também poderá
optar pela maneira Passos Coelho que, quando era líder da oposição,
e antes de viabilizar o segundo e último Orçamento de José
Sócrates minoritário, exigiu contrapartidas.
Foi nessa negociação
do Orçamento para 2011 que Eduardo Catroga e Teixeira dos Santos
passaram uma noite em claro e, já madrugada adentro, nasceu aquilo
que seria o primeiro embrião da reforma do Estado. Foi desse
encontro, imortalizado no Blackberry de Catroga, que nasceu o
Conselho Superior das Finanças Públicas de Teodora Cardoso. Foi
esse acordo que possibilitou a reestruturação do sector público
administrativo e das empresas públicas. Foi nessa altura que se
decidiu fazer o levantamento dos institutos e dos organismos da
administração central, local e regional que seriam fundidos ou
extintos. Foram Teixeira dos Santos e Catroga que combinaram
renegociar as concessões e as PPP que davam lucros astronómicos ao
sector privado. E obrigar o Estado e a empresas públicas a pagar aos
fornecedores em 60 dias para não asfixiar a tesouraria das empresas
privadas. Aventou-se também pela primeira vez a possibilidade de se
baixar a TSU paga pelas empresas, caso as condições orçamentais o
permitissem. Uma bandeira que ainda hoje PS e PSD carregam.
Tudo isto foi
conseguido através da negociação de um único Orçamento do
Estado, na casa de Catroga, às tantas da madrugada. Imagine-se o que
se conseguiria se todos os Orçamentos tivessem de ser negociados,
com responsabilidade e bom senso.
Sem comentários:
Enviar um comentário