A
fraude pós-eleitoral
Rui
Ramos
8/10/2015, OBSERVADOR
António
Costa era candidato a primeiro-ministro. Caso os portugueses
quisessem um governo liderado por António Costa teriam certamente
posto o PS à frente. Não puseram.
Ao princípio,
pareceu um devaneio de noite eleitoral, inspirado pelo desespero da
derrota. Entretanto, converteu-se numa política fria e cínica:
António Costa, depois de sujeitar o PS a um desaire nas urnas,
parece agora inclinado a comprometer os socialistas na aventura de um
governo com comunistas e neo-comunistas. Dir-me-ão: é só uma
estratégia negocial. Ao admitir formar governo com apoio do BE e do
PCP, Costa pretende apenas aumentar a sua margem de manobra perante a
coligação, ou então obrigar o PCP e o BE a mostrarem que não
estão verdadeiramente disponíveis. Mesmo que seja isso, António
Costa está a pôr em causa a democracia portuguesa tal como saiu dos
confrontos de 1974-1976 e se desenvolveu durante quarenta anos.
Em primeiro lugar,
Costa já negou a tradição, sempre respeitada desde 1976, de que em
Portugal quem fica à frente vence as eleições e tem um mandato
para governar. No dia 4 de Outubro, os portugueses escolheram entre
quatro principais soluções de governo: a da coligação PSD-CDS, a
do PS, a do BE e a do PCP. A maior parte escolheu a coligação
PSD-CDS. É bom lembrar: a coligação ganhou as eleições com mais
de seis pontos percentuais à frente do PS, e com quatro vezes a
percentagem de votos do BE e cinco vezes a do PCP. António Costa era
candidato a primeiro-ministro: foi assim que participou nos debates e
apareceu nos cartazes. Caso os portugueses quisessem um governo
liderado por António Costa teriam certamente posto o PS à frente.
Não puseram, e, portanto, não queriam. Ao negociar com PCP e BE,
Costa está a admitir impor aos portugueses, através de uma
chapelada parlamentar, um governo que os portugueses rejeitaram nas
urnas. Talvez a Constituição não o impedisse, mas à luz da
tradição política nacional e das expectativas dos eleitores seria
um autêntico golpe de Estado. Outros regimes portugueses praticaram
fraudes eleitorais: vai este inaugurar as fraudes pós-eleitorais?
Costa argumenta que
uma “maioria de esquerda” é equivalente à “maioria da
direita”. Não é. A aliança entre o PSD e o CDS é junta dois
partidos democráticos; a aliança entre o PS, o PCP e o BE juntaria
um partido democrático e dois partidos que rejeitam tudo aquilo que
define a democracia portuguesa. O PCP e as forças políticas que
constituem o BE têm como ideal as antigas ditaduras comunistas, e
entre si admitem a saída de Portugal do Euro e da Nato, o repúdio
da dívida pública, a reversão das privatizações e a
nacionalização da banca.O PS foi o partido que em 1974-1977 liderou
a luta por uma democracia pluralista de tipo ocidental, ao lado do
PSD e do CDS e contra o PCP e a extrema-esquerda agora escondida no
BE. O PS não é apenas um partido de “esquerda”, mas um partido
da “esquerda democrática”, da mesma maneira que o PSD e o CDS
não são apenas partidos de “direita”, mas da “direita
democrática”. A direita democrática não se define apenas contra
a esquerda, mas contra o salazarismo, da mesma maneira que a
esquerda democrática não se define apenas contra a direita, mas
contra o comunismo. O facto de o PS, o PSD e o CDS serem partidos
democráticos, incompatíveis com as correntes anti-democráticas de
direita e de esquerda, tem este efeito: conforme o governo é
dirigido pelo PS ou pelo PSD, as políticas públicas podem mudar,
mas o regime não. A alternância entre esquerda e direita
democráticas faz-se assim sem dramas. A partir do momento em que o
PS deixasse de fazer fronteira com a esquerda que recusa a democracia
pluralista e a integração europeia, tudo seria diferente. Votar no
PS significaria o quê? Votar pela permanência no euro, ou pela
saída do euro? Ninguém teria a certeza.
Não haja dúvidas:
um governo dos derrotados de 4 de Outubro, que incluísse partidos
que negam os fundamentos da actual democracia, provocaria uma imensa
revolta no país. E tudo isto, para quê? Para que António Costa,
depois de uma derrota inesperada, possa manter o lugar de
secretário-geral do PS, do qual depende a sua sobrevivência como
político profissional. É essa a única razão. Para defender o
lugar, Costa precisa de chegar ao congresso do PS como primeiro
ministro. Com esse fim, está disposto a sacrificar tudo e todos.
Assim acabam os partidos, e assim acabam também os regimes.
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