A
caminho da partilha da Síria?
Se
a Síria explodir, fará explodir toda a região, avisavam analistas
em 2011
Jorge Almeida
Fernandes / 4-10-2015 / PÚBLICO
A Síria ainda
existe? Não é uma pergunta retórica. A “antiga” Síria está
internamente fracturada e dividida em áreas de influência por
potências externas, o que torna difícil imaginar como as
“diferentes partes se poderão voltar a fundir numa peça única”.
Agora que, com os refugiados e os bombardeamentos russos, a guerra
síria volta ao centro do tabuleiro geopolítico, é útil revisitar
a questão, mas pelo “lado de dentro”.
Os ocidentais, e
sobretudo os media, somaram desde 2011 erros de percepção sobre o
que se passava em Damasco. Logo após a eclosão dos primeiros
protestos, analistas que conheciam a radical diferença entre o Cairo
e Damasco repetiram os avisos sobre o risco de a Síria se vir a
fracturar violentamente segundo linhas étnico-religiosas e não em
termos de ditadura-democracia. Não foi mais um fracasso das
“primaveras árabes”. Foi muito diferente: uma “guerra
sectária, de todos contra todos”, que se transformou num conflito
regional, entre sunitas e xiitas, pela hegemonia no Médio Oriente,
envolvendo também o “grande jogo” entre Washington e Moscovo.
“Se a Síria explodir, fará explodir a região”, profetizou em
Abril de 2011 o analista turco Mehmet Ali Birand. É uma tragédia
que já terá feito mais de 250 mil mortos e milhões de deslocados e
refugiados — e não há bons cenários de saída.
O regime sírio,
para lá de uma implacável ditadura, representava a hegemonia de uma
comunidade minoritária, os alauítas (12% da população), num país
esmagadoramente sunita. E, de resto, povoado por outras minorias.
Seguiu-se outro erro de percepção, de que muitos líderes árabes
partilharam: a certeza de que Assad “cairia dentro de três meses”.
Em 2012, o emir do Qatar prometeu ir celebrar em Damasco o fim do
Ramadão. Esqueciam uma dimensão: para os alauítas, no poder desde
1963, a rendição é uma questão existencial — não é só a
perda dos privilégios, mas também o medo de extermínio. Por isso
Assad sobreviveu.
O cenário da
partilha
Pouco depois, em
Maio de 2013, o jornalista Ben Hubbard apontava no New York Times a
existência de três Sírias: “A bandeira negra da jihad flutua em
grande parte do Norte. No centro do país, as forças governamentais
e os milicianos [xiitas libaneses] do Hezbollah combatem contra os
que ameaçam a sua comunidade. No Nordeste os curdos constroem uma
zona autónoma ligada aos curdos do Iraque, [visando criar um Estado
próprio].”
Assad era apoiado
pelo Irão e pela Rússia. A rebelião sunita, dominada por bandos
jihadistas rivais, era financiada e armada pelos sauditas, pelos
emirados e pela Turquia — que passou de amiga a inimiga de Assad.
Faltava ainda chegar a “quarta Síria”, o grande terror do Estado
Islâmico (EI) e a sua expansão no Iraque.
Grosso modo, o
Governo de Assad controlará hoje 30% do território, contra mais de
40% dominado pelo EI e 15% pelas outras forças rebeldes. Mas Damasco
controla a maioria da população. “Dos 18 milhões de habitantes
que ainda vivem na Síria, 12 milhões estão em áreas controladas
pelo regime, contra 2 a 2,5 milhões pelo EI, o equivalente por
outros grupos islamistas e 1,5 milhões pelos curdos”, escreve o
geógrafo francês Fabrice Balache, especialista da Síria.
A fractura da Síria
arrastou a disputa entre potências externas pela influência.
Segundo o Instituto de Estudos de Segurança Nacional (INSS,
israelita), o eixo central do país — de Damasco a Homs e Alepo,
tal como a fronteira libanesa — está sob influência iraniana. O
Nordeste está sob domínio curdo, cuja influência é duramente
disputada pela Turquia. Israel vigia o Sueste sírio e o Sul do
Líbano. Nas áreas ocupadas por vários grupos jihadistas, a Arábia
Saudita e os emirados exercem a sua influência.
É neste quadro que
a Rússia joga. Tem na Síria a sua única base naval no Médio
Oriente, Tartus. Teme que a desintegração do país leve à sua
perda de influência. Mas se os alauítas acabarem a apostar numa
partilha do país, Moscovo apoiaria o seu intento de conservar a
“Síria útil”, ou seja, a costa mediterrânica, incluindo
Damasco, Homs e Latakia, coração do “país alauíta”. É também
interesse vital do Irão manter o acesso ao Líbano.
O exército de Assad
tem acumulado derrotas, sofre de falta de homens, de “fadiga” e
deserções. Nos últimos meses, a hipótese de uma ofensiva
jihadista sobre Damasco deixou de ser uma fantasia. Um dos grupos
rebeldes, Jaysh al-Islam, financiado pelos sauditas, ocupou posições
nos arredores da capital.
O grande obstáculo
a um acordo é que as várias potências envolvidas no conflito têm
interesses contraditórios entre si. O Irão continua a ser o inimigo
principal para sauditas.
Frisa o analista
libanês Bachir El Khoury que o destino da Síria oscila entre a
resolução do conflito e a partilha do território, de facto ou
negociada, de modo a parar a tragédia. “Penso que estamos a
caminho de uma partilha da Síria”, escreve Balache. “Organizase
um plano de paz, constata-se que não há reconciliação possível
e, por fim, esgotadas todas as soluções diplomáticas, passa-se a
uma partilha de facto do país, cada campo mantendo as posições
adquiridas.”
Uma partilha poderá
não desagradar a Assad e aos jihadistas. Mas como aceitar um
reconhecimento do “califado” do EI? É uma “linha vermelha”
para a comunidade internacional, dos EUA à Rússia, de Riad ao
Cairo. A questão do EI está inexoravelmente no centro da agenda
síria. O que faz de novo trazer à cena a inevitabilidade de uma
aliança americana “realista” com a Rússia e o Irão para
erradicar o “califado”. O “realismo” consiste em contornar a
questão de Assad e fazer uma “aliança com um diabo para derrotar
outro mais perigoso”.
A jogada russa
Terá sido algo
exagerada a valorização da iniciativa russa de lançar
bombardeamentos na Síria, numa jogada de antecipação perante os
EUA, “explorando o vazio deixado pelo Ocidente” ou a
“ambivalência” americana perante Assad. Terá Putin querido
reforçar o estatuto de Moscovo, mostrando que é um actor
incontornável no Médio Oriente? Ou terá agido, como outras vezes,
por razões pessoais e de política interna?
Os primeiros
bombardeamentos foram reveladores: não incidiram sobre o EI, mas
sobre outros grupos rebeldes. A área escolhida revela o intento de
proteger Assad e o território por ele dominado. Trata-se de retirar
a iniciativa a Washington? Será, inesperadamente, a antecipação de
um cenário de partilha? Terá mudado a equação síria? A sua
lógica não é ainda clara, mas não suscitará a simpatia dos
Estados sunitas, como a Arábia Saudita e o Egipto, com que Moscovo
tem, em vão, tentado negociar.
Uma nota final: este
texto é apenas uma chamada de atenção para a infinita complicação
da cena síria. O leitor poderá ficar perplexo. Mas perplexo quanto
à Síria esteve sempre quem assina esta inconclusiva análise.
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