Made in Germany caiu no
esgoto”
Das
Auto, 25 anos depois
TERESA DE SOUSA
04/10/2015 – PÚBLICO
1.O anúncio é
inconfundível. “Das Auto”. “O automóvel”. A voz masculina é
forte, quase intimidatória, avisando que não admite réplicas. No
geral, um carro alemão, seja ele VW, Audi, Mercedes ou BMW, é um
sinal de status, pelo menos fora da Alemanha. Quem não chega lá tem
de se ficar pelos franceses ou japoneses. É o equivalente ao fato
italiano ou ao luxo da Louis Vuitton. A poderosa indústria alemã
tem na indústria automóvel o espelho da sua qualidade, precisão e
fiabilidade, que faz da Alemanha o maior exportador mundial em valor
absoluto.
Psicologicamente, é
tremendo para os alemães sofrer um “percalço” desta natureza.
Para a admirada indústria alemã é um golpe na sua credibilidade.
Haverá outras marcas europeias com um “desfasamento” entre a
poluição nos testes e a poluição na estrada. Mas, pelo menos até
agora, nenhuma se tinha dado ao trabalho de produzir um software
deliberadamente destinado a enganar os reguladores. É como se
descobríssemos que a City de Londres andava a enganar os accionistas
e os investidores, falsificando números. A indústria financeira é
a marca da economia britânica como a indústria alemã é o símbolo
do seu poder económico. A marca vai sofrer danos irreversíveis
durante algum tempo para compensar aqueles que foram enganados
directa ou indirectamente no mundo inteiro. Não se trata apenas dos
carros em circulação, trata-se também dos efeitos poluentes
acumulados ao longo de anos, numa Europa que se autoproclama exemplar
nas políticas de protecção ambiental e que quer fazer delas um
factor de competitividade. Justamente, o que se vê com este exemplo
é que a globalização económica tornou muito mais dura a
concorrência mundial, criando a tentação (mesmo que indesculpável)
de “contornar” as leis.
2. Ambrose
Evans-Protchard, colunista do Telegraph, lembra que a VW não é caso
único na Alemanha. O CEO do gigante da engenharia Siemens foi
forçado a resignar em 2007, na sequência da revelação de um
escândalo de subornos a uma escala “épica” (40 milhões de
euros por ano, apresentados como parte do modelo de negócio”).
Outro caso que conhecemos bem é o da empresa de submarinos
(Ferrostaal) que vendeu dois a Portugal e seis à Grécia, ganhou os
concursos comprovadamente graças ao pagamento de luvas, proibidas
desde 1997 pela lei alemã. O caso já foi julgado na Alemanha e na
Grécia e encontrados os culpados. Há outros casos menos importantes
mas igualmente reveladores de uma “arrogância” alemã por vezes
extremamente irritante. Quem não se lembra do caso dos pepinos
contaminados com um produto químico que afectava a saúde pública?
As autoridades alemãs apressaram-se a apontar o dedo a Espanha.
Afinal, eram todos produzidos in loco.
Na própria Alemanha
os jornais não escondem a realidade e as suas consequências. “Made
in Germany caiu no esgoto”, escreve um jornal de Berlim. O mais
reputado jornal económico, o Handelsblatt, classifica o truque da VW
como uma “catástrofe para o conjunto da indústria alemã”, que
arrasa a campanha promovida pelas grandes marcas, da Audi à BMW
passando pela VW e pela Mercedes, para convencer os americanos de que
o diesel já não era poluente mas, pelo contrário, a melhor maneira
de cumprir os requisitos impostos à emissão de poluentes. A própria
VW tinha assumido o compromisso de ser o construtor automóvel mais
verde do mundo em 2018. Conseguiu empréstimos da ordem dos 4 mil
milhões de euros no BEI (Banco Europeu de Investimento) justamente
para financiar projectos de investigação na área da “energia
limpa”, escreve o site Politico-Europe. E não vale sequer a pena
cair na tentação de culpar a América, a cuja indústria este
desaire dá jeito. Os EUA têm regras muito estritas em matéria de
emissão de poluentes e, sobretudo, aplicam-nas com mão de ferro,
ignorando se os visados são grandes ou pequenos e aplicando multas
colossais.
A economia alemã
assenta numa base industrial muito competitiva e isso mudará pouco.
Mas a grande indústria, apesar de tecnologicamente avançada,
continuará a queixar-se das regras abstractas definidas em Bruxelas
ou em Berlim, que afectam a concorrência num mercado cada vez mais
global. Quando a chanceler decidiu (sem consultar nenhum parceiro
europeu) pôr fim à indústria nuclear depois de Fukushima para dar
lugar a energias limpas, a indústria protestou, dado o preço mais
baixo da energia nuclear (a França que o diga), também em nome da
competitividade externa. Não se trata de tirar conclusões
demagógicas. Trata-se de compreender que, num mundo globalizado onde
a economia europeia tem de concorrer pela qualidade com as economias
emergentes que avançam na escala de valor acrescentado e mantêm uma
mão-de-obra barata, a fraude corre o risco de ser generalizada para
contornar as regras. Mais difícil mas mais produtivo seria encontrar
outras formas de mobilidade mais ecológicas, alterando os hábitos e
incluindo algum sacrifício. Mas isso pode ser mais impopular do que
a fraude que comprime o preço e melhora a velocidade.
Finalmente, há
fábricas da VW no mundo inteiro, incluindo em Portugal, onde
representa 1,4 por cento das exportações nacionais e tem um efeito
multiplicador na indústria adjacente. Não vale a pena pensar que
esta débacle não nos baterá à porta com um impacte que pode ser
muito negativo. A economia mundial está em franca desaceleração,
graças às fracas performances das economias emergentes. A retoma
europeia é frágil, a deflação ainda não está debelada, e o
mundo arde à nossa volta com uma sucessão de crises que é preciso
encarar.
3. Celebrou-se
ontem, em Frankfurt, o 25º aniversário da reunificação alemã
(3 de Outubro de 1990) com a presença dos seus principais
protagonistas (Kohl, Gorbatchov e George Bush). Na véspera da
integração dos seis Lander da antiga RDA na RFA nem toda a gente
estava pelos ajustes, na rica e tranquila Alemanha Ocidental a gozar
os frutos do seu milagre económico, preferindo uma transição
prolongada e ignorando uma das palavras de ordem mais gritadas nas
manifestações: “Se o marco não vem até nós, vamos nós até ao
marco”. Foi o caso de Oskar Lafontaine, na altura líder do SPD,
contra a vontade de Willy Brandt que percebeu imediatamente, como
Kohl, que a reunificação era imparável. O SPD teve uma das suas
maiores derrotas nas primeiras eleições da Alemanha unificada.
Vinte cinco anos depois ainda há diferenças entre o leste e o
ocidente quanto a salários ou pensões mas a integração foi um
êxito. A Alemanha renasceu como uma grande democracia que não
esquece o seu passado e que é de novo a grande plataforma económica
do continente mas ainda à procura do seu novo destino europeu, às
vezes com relutância outras deixando-se cair na tentação da
arrogância. Merkel foi exemplar na crise dos refugiados, lembrando
que ela testa os fundamentos da verdadeira Europa. Quer liderar
também pelo “exemplo moral”, embora os alemães não pareçam
gostar desta nova ambição da chanceler. “O Grexit era uma coisa
virtual nos jornais”, diz a investigadora Ulrick Guérot, para
acrescentar: “Os refugiados estão aqui, são pessoas de carne e
osso, não é uma questão elitista, é uma questão da sociedade”.
Ontem, Berlim anunciou que tenciona propor o prolongamento por mais
um ano da presença da NATO no Afeganistão, incluindo 850 soldados
alemães que ficaram no terreno com a missão de instruírem as
tropas locais. O motivo prende-se com Kunduz, perdida para os talibã,
obrigando os americanos a intervir em força. Também nesta frente, a
mais difícil de todas, a Alemanha faz a sua caminhada. O escândalo
da VW pode ensinar-lhe alguma coisa sobre os outros, e a guerra na
Síria talvez lhe mostre que nem tudo se pode reduzir ao défice e à
dívida.
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