O
jornalismo contra a falta de transparência
Editorial / PÚBLICO
/ 3-10-2015.
Demorou mais de dois
anos, depois de vários pedidos recusados, mas o PÚBLICO teve enfim
acesso ao “dossier Crivelli”, que reúne toda a informação
sobre o polémico caso que envolve um quadro deste mestre da
Renascença italiana. Mas só perante uma ordem do Supremo Tribunal o
Governo acedeu a mostrá-lo. Percebe-se. Nele está o parecer de um
advogado, até hoje mantido em segredo, que desmonta ponto por ponto
as falhas do então secretário de Estado da Cultura (SEC). Este
autorizou que o quadro saísse do país, para venda, apesar das
restrições que obrigavam à sua permanência em Portugal. Isto sem
documentos a anular tais restrições nem a justificar a decisão
tomada. Apenas uma carta, e assinada pelo chefe de gabinete do SEC.
Isto ajuda, pelo menos, a clarificar perante a opinião pública um
processo que não findou e onde foram violadas quatro instâncias da
lei. Uma vitória do jornalismo sobre a falta de transparência.
Francisco
José Viegas violou quatro instâncias da lei
O
Supremo Tribunal deu ao PÚBLICO acesso ao “dossier Crivelli”.
Setecentas páginas sobre a polémica venda da “Virgem portuguesa”.
Entre violações da lei e a impotência da administração pública,
escreve-se uma história que dificilmente terá final feliz
Vanessa Rato /
3-10-2015 / PÚBLICO
O Governo manteve em
segredo um parecer de Sérvulo Correia sobre as falhas do gabinete de
Viegas e as violações à lei que representam. A sua falta de
imparcialidade, de proporcionalidade e de ponderação favoreceram
Pais do Amaral e lesaram o Estado
O documento que
regista o momento- chave do hoje polémico “caso Crivelli” não é
sequer um despacho, apenas a cópia de uma carta: “O Estado,
através do organismo competente, e por força dos constrangimentos
orçamentais com que se depara, não irá exercer o direito de
preferência sobre a obra de pintura intitulada ‘Virgem com o
Menino e Santos’ (...). Nessa decorrência informa-se (...) que foi
deferido o pedido de exportação definitiva n.º 218/2011 (...).”
Foi através desta
carta, datada de 19 de Junho de 2012 e remetida para uma das suas
moradas de Lisboa, que o conhecido empresário Miguel Pais do Amaral
ficou autorizado a vender no estrangeiro uma pintura única,
protegida por lei e desde 1970 impedida de deixar Portugal. Como
anexo, o empresário recebeu o único documento de facto assinado em
todo o caso pelo então secretário de Estado da Cultura, Francisco
José Viegas: o formulário-passaporte que permitia à “Virgem
portuguesa” atravessar a fronteira em direcção à galeria
JeanFrançois Heim, em Paris, onde tinha uma oferta de compra
declarada em 3,4 milhões de euros.
Viegas assinou esse
formulário, idêntico a centenas de outros, a 18 de Junho de 2012. A
carta, datada do dia seguinte, já foi assinada por Rui M. Pereira, o
seu chefe de gabinete. Viegas nunca chegou sequer a despachar, ou
seja, nunca chegou sequer a formalizar devidamente a decisão. O hoje
extinto Instituto dos Museus e da Conservação (IMC), que tinha o
processo em mãos, soube da resolução a 22 de Junho, quando, por
simples protocolo, recebeu uma cópia da carta dirigida a Pais do
Amaral. Um ofício desde logo manchado por pelo menos um erro
grosseiro: autoriza uma “exportação” quando o pedido de venda
era para um país-membro da União Europeia, requerendo apenas uma
“expedição”.
Erro à parte, a
autorização terá deixado estarrecidos os funcionários do IMC:
representava um volte-face absolutamente inesperado no caso — nove
meses antes, Rui M. Pereira, o mesmo chefe de gabinete de Viegas,
dera ao instituto ordens para preparar o processo administrativo de
conversão da antiga inventariação da obra numa classificação de
acordo com a lei patrimonial em vigor.
A ordem foi
manuscrita a 16 de Setembro de 2011 no verso do ofício de dois dias
antes em que Pais do Amaral insistia numa célere resolução do
pedido de expedição que entregara a 14 de Junho desse ano. Com a
ordem ficava implícita a recusa a Pais do Amaral. E abriam-se os
procedimentos de transformação do único Crivelli de Portugal num
Tesouro Nacional, o mais alto escalão de protecção dada pelo
Estado a bens do património móvel.
Não seria um
processo especialmente difícil ou controverso. Primeiro porque em
2007, ao comprar a obra, Pais do Amaral estava ciente das restrições
a ela associadas desde 1970. Depois, porque a hipótese de conversão
em Tesouro Nacional já antes fora equacionada. E, por último,
porque havia consenso entre especialistas em arte e património.
Afinal, estava em causa uma pintura rara e extraordinária, datada de
1487 e assinada por um dos mestres da Renascença italiana: Carlo
Crivelli, representado em alguns dos melhores museus do mundo e o
autor da famosa Anunciação da National Gallery, com a qual a
“Virgem portuguesa” partilha uma inscrição característica, a
frase “libertas ecclesiastica” escrita na base do pequeno pódio
sob os pés de Maria.
Avançou-se para a
conversão. Mas em vão. A decisão final ficaria a aguardar despacho
de Viegas — que entretanto autorizou a venda da obra no
estrangeiro. Uma decisão repentina e minada de falhas.
Em todo o processo,
não há, por exemplo, um documento em que o então secretário de
Estado faça cair as protecções legais a que a pintura estava
sujeita e que pediam desclassificação em Diário da República. Em
todo o processo não há também um único documento em que a decisão
de venda seja justificada. Dois passos obrigatórios, neste caso. A
sua inexistência representa uma violação da lei. Motivo pelo qual,
um ano depois, a 18 de Junho de 2013, o actual secretário de Estado,
Jorge Barreto Xavier, pode revogar a autorização atribuída pelo
seu antecessor no mesmo XIX Governo Constitucional.
À época, Barreto
Xavier recusou detalhes sobre as bases desse gesto de contornos
inéditos. A 2 de Julho de 2013, na Assembleia da República,
limitou-se a aludir a um “erro”, dizendo que “havia aspectos de
ordem procedimental que podiam ter sido desenvolvidos de outra forma”
pelo gabinete de Viegas. Nessa altura — e até hoje —, foi
mantido em segredo um parecer informalmente pedido a Sérvulo
Correia, um dos maiores especialistas portugueses em direito
administrativo e o presidente da comissão que, em 2001, redigiu a
Lei de Bases do Património Cultural.
O documento em que
este especialista desmonta ponto por ponto as falhas do gabinete de
Viegas tem 15 páginas. Está apenso ao complexo “dossier
Crivelli”, que o executivo de Pedro Passos Coelho tem mantido
fechado e a que o PÚBLICO teve acesso por ordem do Supremo Tribunal
mais de dois anos volvidos sobre o primeiro de vários pedidos de
consulta sucessivamente recusados pelo Governo, apesar de indicações
da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos e do Tribunal
Central Administrativo fazendo saber não existirem fundamentos para
vedar acesso à informação.
Em três volumes
No Palácio Nacional
da Ajuda, à guarda da Direcção-Geral do Património Cultural
(DGPC), o “dossier Crivelli” são três volumes pretos numerados
de I a III. Contêm despachos, ofícios, pareceres, cópias de cartas
e emails,
cópias de notícias
e de actas. São cerca de 700 páginas que vão dando conta da
imbricada narrativa em torno da “Virgem portuguesa”. Desde que
Pais do Amaral a comprou por um milhão de euros aos 22 herdeiros de
Caetano de Andrade Albuquerque Bettencourt até à actualidade, com a
peça em paradeiro incerto e avaliada em dez vezes mais: entre 9 e
10,4 milhões de euros.
Foi a 4 de Junho de
2013 que o PÚBLICO deu a notícia da saída da obra do país. Esse
momento faz parte das cronologias das autoridades patrimoniais
portuguesas, bem como a informação de que nesse mesmo dia Barreto
Xavier solicitou à DGPC a obtenção de um parecer jurídico sobre a
situação e “consequente decisão que eventualmente ainda se
coloque”.
Sérvulo Correia foi
contactado “com urgência” pelo Estado três dias depois.
Respondeu a 14 de Junho com o documento intitulado “Bases para uma
decisão” em que desmonta quatro “vícios de legalidade” no
caso, “qualquer dos quais constituindo de per se fundamento
bastante para a revogação”.
Viegas não podia
autorizar a expedição de uma pintura protegida sem antes pôr termo
a esse estatuto. “Não é juridicamente pensável a saída
definitiva de um bem cujo regime continua a ser de obra de arte
inventariada”, lê-se no documento. É um dos pontos. Outro diz
que, ao abrigo da Constituição e do Código de Procedimento
Administrativo, Viegas estava também obrigado ao princípio da
imparcialidade, que manda que sejam considerados todos os interesses
relevantes. “Ora, não se encontram quaisquer vestígios (...) do
empenhamento na identificação sistemática e completa dos
interesses públicos”, nem “qualquer tentativa de apuramento de
quais os ‘prejuízos graves’ (...) que resultariam da expedição
definitiva do quadro”, prossegue o documento. Explicitando: “O
manifesto défice de ponderação (...) gera violação da lei por
ofensa ao princípio da proporcionalidade.” Depois, houve ainda uma
violação da lei “por erro de direito” quando se assumiu que,
caso o Estado não autorizasse a saída da obra, ficava obrigado à
sua aquisição. Não era assim. Mais: no momento da decisão, o
gabinete de Viegas estava correctamente informado por um parecer
jurídico pedido à hoje procuradora-geral adjunta do Tribunal
Central Administrativo Raquel Vicente da Rosa. Esse parecer fornecia
o enquadramento legal para a interdição da saída da peça de
Portugal sem que o Estado ficasse obrigado à aquisição. Indo
contra este e outros pareceres que tinha em mãos, Viegas estava
obrigado por lei a fundamentar a sua decisão. Não o fez. “O vício
de forma por falta de fundamento do acto administrativo gera a sua
invalidade”, conclui Sérvulo Correia.
Foi com base nestes
dados que Barreto Xavier revogou o acto do seu antecessor. Uma medida
tomada no limite dos prazos legais: a 18 de Junho de 2013 cumpria-se
um ano sobre o momento em que Viegas autorizara a saída — era o
último dia em que o processo podia ser revertido. E foi — abrindo
uma complexa demanda internacional pelo regresso da obra cujos passos
foram também mantidos em segredo pelo Governo. Um caminho cheio de
avanços e recuos, becos sem saída e indecisões. Sem qualquer
solução confortável à vista.
No “dossier
Crivelli”, é claro o empenho da DGPC na resolução positiva do
caso. Ao longo de 2013 e 2014 multiplicam-se os esforços de
localização da obra no sentido de um seu posterior regresso ao
país. Percebe-se que houve momentos em que todas as hipóteses
pareciam esgotadas. Mas houve também momentos em que o caso poderia
ter sido resolvido. Ficou em suspenso — à espera de decisão da
tutela.
Foi assim a 9 de
Outubro de 2013, data do ofício através do qual a então
directora-geral do Património Cultural, Isabel Cordeiro, propunha ao
gabinete de Barreto Xavier um conjunto de medidas executórias que
nunca foram tomadas. A primeira consistia na instauração de uma
acção contra Pais do Amaral por crime de desobediência nos termos
do Artigo 348 do Código Penal. Um artigo que prevê uma pena de
prisão de um ano ou 120 dias de multa na versão simples do crime,
mas que a DGPC propôs na versão qualificada: dois anos de prisão
ou 240 dias de multa.
Durante o processo
de averiguações desenvolvido até então, Pais do Amaral fora o
primeiro interpelado pela DGPC no sentido de apurar o paradeiro da
obra. Segundo se pode ler em vários documentos, Pais do Amaral
falhou prazos legais de resposta, não apresentou à DGPC
documentação sobre a circulação internacional da pintura, nem
comprovativo da venda no estrangeiro, declarou-se ainda incapaz de
apontar o novo ou novos proprietários.
( …)
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