sexta-feira, 2 de outubro de 2015

O jornalismo contra a falta de transparência / Francisco José Viegas violou quatro instâncias da lei



O jornalismo contra a falta de transparência
Editorial / PÚBLICO / 3-10-2015.

Demorou mais de dois anos, depois de vários pedidos recusados, mas o PÚBLICO teve enfim acesso ao “dossier Crivelli”, que reúne toda a informação sobre o polémico caso que envolve um quadro deste mestre da Renascença italiana. Mas só perante uma ordem do Supremo Tribunal o Governo acedeu a mostrá-lo. Percebe-se. Nele está o parecer de um advogado, até hoje mantido em segredo, que desmonta ponto por ponto as falhas do então secretário de Estado da Cultura (SEC). Este autorizou que o quadro saísse do país, para venda, apesar das restrições que obrigavam à sua permanência em Portugal. Isto sem documentos a anular tais restrições nem a justificar a decisão tomada. Apenas uma carta, e assinada pelo chefe de gabinete do SEC. Isto ajuda, pelo menos, a clarificar perante a opinião pública um processo que não findou e onde foram violadas quatro instâncias da lei. Uma vitória do jornalismo sobre a falta de transparência.


Francisco José Viegas violou quatro instâncias da lei

O Supremo Tribunal deu ao PÚBLICO acesso ao “dossier Crivelli”. Setecentas páginas sobre a polémica venda da “Virgem portuguesa”. Entre violações da lei e a impotência da administração pública, escreve-se uma história que dificilmente terá final feliz

Vanessa Rato / 3-10-2015 / PÚBLICO

O Governo manteve em segredo um parecer de Sérvulo Correia sobre as falhas do gabinete de Viegas e as violações à lei que representam. A sua falta de imparcialidade, de proporcionalidade e de ponderação favoreceram Pais do Amaral e lesaram o Estado

O documento que regista o momento- chave do hoje polémico “caso Crivelli” não é sequer um despacho, apenas a cópia de uma carta: “O Estado, através do organismo competente, e por força dos constrangimentos orçamentais com que se depara, não irá exercer o direito de preferência sobre a obra de pintura intitulada ‘Virgem com o Menino e Santos’ (...). Nessa decorrência informa-se (...) que foi deferido o pedido de exportação definitiva n.º 218/2011 (...).”
Foi através desta carta, datada de 19 de Junho de 2012 e remetida para uma das suas moradas de Lisboa, que o conhecido empresário Miguel Pais do Amaral ficou autorizado a vender no estrangeiro uma pintura única, protegida por lei e desde 1970 impedida de deixar Portugal. Como anexo, o empresário recebeu o único documento de facto assinado em todo o caso pelo então secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas: o formulário-passaporte que permitia à “Virgem portuguesa” atravessar a fronteira em direcção à galeria JeanFrançois Heim, em Paris, onde tinha uma oferta de compra declarada em 3,4 milhões de euros.
Viegas assinou esse formulário, idêntico a centenas de outros, a 18 de Junho de 2012. A carta, datada do dia seguinte, já foi assinada por Rui M. Pereira, o seu chefe de gabinete. Viegas nunca chegou sequer a despachar, ou seja, nunca chegou sequer a formalizar devidamente a decisão. O hoje extinto Instituto dos Museus e da Conservação (IMC), que tinha o processo em mãos, soube da resolução a 22 de Junho, quando, por simples protocolo, recebeu uma cópia da carta dirigida a Pais do Amaral. Um ofício desde logo manchado por pelo menos um erro grosseiro: autoriza uma “exportação” quando o pedido de venda era para um país-membro da União Europeia, requerendo apenas uma “expedição”.
Erro à parte, a autorização terá deixado estarrecidos os funcionários do IMC: representava um volte-face absolutamente inesperado no caso — nove meses antes, Rui M. Pereira, o mesmo chefe de gabinete de Viegas, dera ao instituto ordens para preparar o processo administrativo de conversão da antiga inventariação da obra numa classificação de acordo com a lei patrimonial em vigor.
A ordem foi manuscrita a 16 de Setembro de 2011 no verso do ofício de dois dias antes em que Pais do Amaral insistia numa célere resolução do pedido de expedição que entregara a 14 de Junho desse ano. Com a ordem ficava implícita a recusa a Pais do Amaral. E abriam-se os procedimentos de transformação do único Crivelli de Portugal num Tesouro Nacional, o mais alto escalão de protecção dada pelo Estado a bens do património móvel.
Não seria um processo especialmente difícil ou controverso. Primeiro porque em 2007, ao comprar a obra, Pais do Amaral estava ciente das restrições a ela associadas desde 1970. Depois, porque a hipótese de conversão em Tesouro Nacional já antes fora equacionada. E, por último, porque havia consenso entre especialistas em arte e património. Afinal, estava em causa uma pintura rara e extraordinária, datada de 1487 e assinada por um dos mestres da Renascença italiana: Carlo Crivelli, representado em alguns dos melhores museus do mundo e o autor da famosa Anunciação da National Gallery, com a qual a “Virgem portuguesa” partilha uma inscrição característica, a frase “libertas ecclesiastica” escrita na base do pequeno pódio sob os pés de Maria.
Avançou-se para a conversão. Mas em vão. A decisão final ficaria a aguardar despacho de Viegas — que entretanto autorizou a venda da obra no estrangeiro. Uma decisão repentina e minada de falhas.
Em todo o processo, não há, por exemplo, um documento em que o então secretário de Estado faça cair as protecções legais a que a pintura estava sujeita e que pediam desclassificação em Diário da República. Em todo o processo não há também um único documento em que a decisão de venda seja justificada. Dois passos obrigatórios, neste caso. A sua inexistência representa uma violação da lei. Motivo pelo qual, um ano depois, a 18 de Junho de 2013, o actual secretário de Estado, Jorge Barreto Xavier, pode revogar a autorização atribuída pelo seu antecessor no mesmo XIX Governo Constitucional.
À época, Barreto Xavier recusou detalhes sobre as bases desse gesto de contornos inéditos. A 2 de Julho de 2013, na Assembleia da República, limitou-se a aludir a um “erro”, dizendo que “havia aspectos de ordem procedimental que podiam ter sido desenvolvidos de outra forma” pelo gabinete de Viegas. Nessa altura — e até hoje —, foi mantido em segredo um parecer informalmente pedido a Sérvulo Correia, um dos maiores especialistas portugueses em direito administrativo e o presidente da comissão que, em 2001, redigiu a Lei de Bases do Património Cultural.
O documento em que este especialista desmonta ponto por ponto as falhas do gabinete de Viegas tem 15 páginas. Está apenso ao complexo “dossier Crivelli”, que o executivo de Pedro Passos Coelho tem mantido fechado e a que o PÚBLICO teve acesso por ordem do Supremo Tribunal mais de dois anos volvidos sobre o primeiro de vários pedidos de consulta sucessivamente recusados pelo Governo, apesar de indicações da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos e do Tribunal Central Administrativo fazendo saber não existirem fundamentos para vedar acesso à informação.
Em três volumes
No Palácio Nacional da Ajuda, à guarda da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), o “dossier Crivelli” são três volumes pretos numerados de I a III. Contêm despachos, ofícios, pareceres, cópias de cartas e emails,
cópias de notícias e de actas. São cerca de 700 páginas que vão dando conta da imbricada narrativa em torno da “Virgem portuguesa”. Desde que Pais do Amaral a comprou por um milhão de euros aos 22 herdeiros de Caetano de Andrade Albuquerque Bettencourt até à actualidade, com a peça em paradeiro incerto e avaliada em dez vezes mais: entre 9 e 10,4 milhões de euros.
Foi a 4 de Junho de 2013 que o PÚBLICO deu a notícia da saída da obra do país. Esse momento faz parte das cronologias das autoridades patrimoniais portuguesas, bem como a informação de que nesse mesmo dia Barreto Xavier solicitou à DGPC a obtenção de um parecer jurídico sobre a situação e “consequente decisão que eventualmente ainda se coloque”.
Sérvulo Correia foi contactado “com urgência” pelo Estado três dias depois. Respondeu a 14 de Junho com o documento intitulado “Bases para uma decisão” em que desmonta quatro “vícios de legalidade” no caso, “qualquer dos quais constituindo de per se fundamento bastante para a revogação”.
Viegas não podia autorizar a expedição de uma pintura protegida sem antes pôr termo a esse estatuto. “Não é juridicamente pensável a saída definitiva de um bem cujo regime continua a ser de obra de arte inventariada”, lê-se no documento. É um dos pontos. Outro diz que, ao abrigo da Constituição e do Código de Procedimento Administrativo, Viegas estava também obrigado ao princípio da imparcialidade, que manda que sejam considerados todos os interesses relevantes. “Ora, não se encontram quaisquer vestígios (...) do empenhamento na identificação sistemática e completa dos interesses públicos”, nem “qualquer tentativa de apuramento de quais os ‘prejuízos graves’ (...) que resultariam da expedição definitiva do quadro”, prossegue o documento. Explicitando: “O manifesto défice de ponderação (...) gera violação da lei por ofensa ao princípio da proporcionalidade.” Depois, houve ainda uma violação da lei “por erro de direito” quando se assumiu que, caso o Estado não autorizasse a saída da obra, ficava obrigado à sua aquisição. Não era assim. Mais: no momento da decisão, o gabinete de Viegas estava correctamente informado por um parecer jurídico pedido à hoje procuradora-geral adjunta do Tribunal Central Administrativo Raquel Vicente da Rosa. Esse parecer fornecia o enquadramento legal para a interdição da saída da peça de Portugal sem que o Estado ficasse obrigado à aquisição. Indo contra este e outros pareceres que tinha em mãos, Viegas estava obrigado por lei a fundamentar a sua decisão. Não o fez. “O vício de forma por falta de fundamento do acto administrativo gera a sua invalidade”, conclui Sérvulo Correia.
Foi com base nestes dados que Barreto Xavier revogou o acto do seu antecessor. Uma medida tomada no limite dos prazos legais: a 18 de Junho de 2013 cumpria-se um ano sobre o momento em que Viegas autorizara a saída — era o último dia em que o processo podia ser revertido. E foi — abrindo uma complexa demanda internacional pelo regresso da obra cujos passos foram também mantidos em segredo pelo Governo. Um caminho cheio de avanços e recuos, becos sem saída e indecisões. Sem qualquer solução confortável à vista.
No “dossier Crivelli”, é claro o empenho da DGPC na resolução positiva do caso. Ao longo de 2013 e 2014 multiplicam-se os esforços de localização da obra no sentido de um seu posterior regresso ao país. Percebe-se que houve momentos em que todas as hipóteses pareciam esgotadas. Mas houve também momentos em que o caso poderia ter sido resolvido. Ficou em suspenso — à espera de decisão da tutela.
Foi assim a 9 de Outubro de 2013, data do ofício através do qual a então directora-geral do Património Cultural, Isabel Cordeiro, propunha ao gabinete de Barreto Xavier um conjunto de medidas executórias que nunca foram tomadas. A primeira consistia na instauração de uma acção contra Pais do Amaral por crime de desobediência nos termos do Artigo 348 do Código Penal. Um artigo que prevê uma pena de prisão de um ano ou 120 dias de multa na versão simples do crime, mas que a DGPC propôs na versão qualificada: dois anos de prisão ou 240 dias de multa.
Durante o processo de averiguações desenvolvido até então, Pais do Amaral fora o primeiro interpelado pela DGPC no sentido de apurar o paradeiro da obra. Segundo se pode ler em vários documentos, Pais do Amaral falhou prazos legais de resposta, não apresentou à DGPC documentação sobre a circulação internacional da pintura, nem comprovativo da venda no estrangeiro, declarou-se ainda incapaz de apontar o novo ou novos proprietários.

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