Intervenções
a pedido. Lembram-se?
Teresa de Sousa /
2-10-2015 / PÚBLICO
1. Há quase dois
anos, quando a crise ucraniana teve início, Angela Merkel telefonou
a Obama para lhe dar conta da sua mais recente conversa com Putin.
Resumiu-a numa frase: ele move-se num mundo que não é o nosso. Os
meses seguintes provaram que a chanceler tinha razão. O Presidente
russo mostrou até onde poderia ir a sua política revisionista da
ordem internacional, ignorando as fronteiras de um Estado soberano,
ocupando a Crimeia e criando uma situação de conflito intermitente
no Leste da Ucrânia. Putin fez jus à sua máxima preferida: a maior
tragédia do século XX foi o desmantelamento da União Soviética.
Houve um sobressalto na Europa quando se percebeu que o “estrangeiro
próximo” da Rússia podia vir a incluir antigas repúblicas
soviéticas que hoje pertencem (ou querem pertencer) à NATO e à
União Europeia. Merkel entendeu a agressão à Ucrânia como uma
ameaça à segurança europeia e agiu em conformidade. As sanções
foram unanimemente aplicadas e unanimemente renovadas. A NATO
reforçou alguns dos seus dispositivos militares nos países da linha
da frente.
2. A guerra na
Síria, com centenas de milhares de mortos e milhões de refugiados,
cristalizou a tragédia das Primaveras Árabes num cenário de
horror. O Presidente americano quis evitar a todo o custo uma
intervenção militar contra Damasco, que chegou a estar em cima da
mesa quando Bashar al-Assad ultrapassou a “linha vermelha” que
ele próprio traçara: a utilização de armas químicas contra os
opositores do regime no Verão de 2013. Nessa altura, foi Putin que o
“salvou” de uma intervenção que não desejava, negociando a
destruição do arsenal químico sob vigilância internacional.
Depois das duas guerras de Bush e das suas consequências, o
Presidente americano só em última instância considera a
possibilidade de uma intervenção militar e, muito menos, de regime
change. A brutal entrada em cena do Estado Islâmico, primeiro no
Iraque e depois na Síria, obrigou-o a olhar para o conflito de outra
maneira. Criou uma coligação para bombardear o território ocupado
pelo Estado Islâmico, mas a ideia de colocar “botas no terreno”
não entra em nenhum dos seus cenários. Tentou apoiar as facções
mais moderadas da oposição a Damasco mas os resultados têm sido
muito lentos.
3. Para a Rússia,
pelo contrário, a entrada em cena do Estado islâmico foi vista como
a melhor oportunidade para salvar o regime de Damasco, alargar a
influência no Médio Oriente e desafiar directamente os EUA. Falou
na ONU na segunda-feira, duas horas depois de Obama, para defender
uma “coligação” contra o Estado Islâmico como a que se
constituiu “contra Hitler” e incluindo Damasco. Já tinha
deslocado aviões e armamento militar para a capital síria.
Bastaram-lhe 24 horas para desencadear uma operação militar
alegadamente contra o Estado Islâmico, que falhou comprovadamente o
alvo, bombardeando a oposição a Assad. Uma hora antes do início da
operação avisou os Estados Unidos para manter “os seus aviões em
terra”. Na quarta-feira anunciou que a intervenção militar fora
“a pedido” do Governo de Damasco, uma fórmula que faz tocar
campainhas na nossa memória. Em 1979, a União Soviética invadiu o
Afeganistão “a pedido” de Cabul e as coisas correram muito mal
para Moscovo (a fórmula já tinha sido usada em Budapeste, Berlim ou
Praga nos anos 50 e 60). Até onde vai a sua escalada na Síria é
ainda uma interrogação.
4. Os títulos da
imprensa da imprensa americana são quase todos para “desancar”
em Obama, responsabilizando a sua “inacção” pelo avanço de
Putin. As análises mais meticulosas ajudam a perceber que as coisas
podem ser um pouco diferentes, incluindo na equação os limites do
poder russo. Moscovo lançou duas intervenções militares em menos
de 18 meses, numa altura em que a economia russa está a ser
fustigada pelas sanções e pelo preço do petróleo. “O papel
militar da Rússia pode revelar-se bastante limitado”, diz Ian
Black, especialista no Médio Oriente, no Guardian. Sobretudo se for
uma intervenção prolongada. Gideon Rachman, no Financial Times,
lembra que foi a invasão do Afeganistão que deu início ao declínio
do poder soviético. “Putin está a começar mais uma aventura
militar antes de acabar a anterior”. Thomas Friedman, no New York
Times, escreve que o Presidente russo “subiu a uma árvore” da
qual pode ser difícil de descer, a não ser com uma proposta
americana para se sentar à mesa das negociações.
Seja como for,
americanos e europeus enfrentam uma situação extremamente complexa
e perigosa, que recomenda uma outra estratégia de contenção de
Moscovo e de solução para a Síria. Os europeus, incapazes sequer
de lidar com a crise dos refugiados, correm o risco de se dividir
caso não haja uma liderança americana. Ninguém tem dúvidas que um
“incidente” nos céus da Síria seria sentido como um calafrio. O
problema é que, mesmo estrategicamente enfraquecida, a Rússia ainda
pode provocar muitos danos na ordem internacional. É urgente que
Washington retome a iniciativa.
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