quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Intervenções a pedido. Lembram-se? / Teresa de Sousa


Intervenções a pedido. Lembram-se?
Teresa de Sousa / 2-10-2015 / PÚBLICO

1. Há quase dois anos, quando a crise ucraniana teve início, Angela Merkel telefonou a Obama para lhe dar conta da sua mais recente conversa com Putin. Resumiu-a numa frase: ele move-se num mundo que não é o nosso. Os meses seguintes provaram que a chanceler tinha razão. O Presidente russo mostrou até onde poderia ir a sua política revisionista da ordem internacional, ignorando as fronteiras de um Estado soberano, ocupando a Crimeia e criando uma situação de conflito intermitente no Leste da Ucrânia. Putin fez jus à sua máxima preferida: a maior tragédia do século XX foi o desmantelamento da União Soviética. Houve um sobressalto na Europa quando se percebeu que o “estrangeiro próximo” da Rússia podia vir a incluir antigas repúblicas soviéticas que hoje pertencem (ou querem pertencer) à NATO e à União Europeia. Merkel entendeu a agressão à Ucrânia como uma ameaça à segurança europeia e agiu em conformidade. As sanções foram unanimemente aplicadas e unanimemente renovadas. A NATO reforçou alguns dos seus dispositivos militares nos países da linha da frente.
2. A guerra na Síria, com centenas de milhares de mortos e milhões de refugiados, cristalizou a tragédia das Primaveras Árabes num cenário de horror. O Presidente americano quis evitar a todo o custo uma intervenção militar contra Damasco, que chegou a estar em cima da mesa quando Bashar al-Assad ultrapassou a “linha vermelha” que ele próprio traçara: a utilização de armas químicas contra os opositores do regime no Verão de 2013. Nessa altura, foi Putin que o “salvou” de uma intervenção que não desejava, negociando a destruição do arsenal químico sob vigilância internacional. Depois das duas guerras de Bush e das suas consequências, o Presidente americano só em última instância considera a possibilidade de uma intervenção militar e, muito menos, de regime change. A brutal entrada em cena do Estado Islâmico, primeiro no Iraque e depois na Síria, obrigou-o a olhar para o conflito de outra maneira. Criou uma coligação para bombardear o território ocupado pelo Estado Islâmico, mas a ideia de colocar “botas no terreno” não entra em nenhum dos seus cenários. Tentou apoiar as facções mais moderadas da oposição a Damasco mas os resultados têm sido muito lentos.
3. Para a Rússia, pelo contrário, a entrada em cena do Estado islâmico foi vista como a melhor oportunidade para salvar o regime de Damasco, alargar a influência no Médio Oriente e desafiar directamente os EUA. Falou na ONU na segunda-feira, duas horas depois de Obama, para defender uma “coligação” contra o Estado Islâmico como a que se constituiu “contra Hitler” e incluindo Damasco. Já tinha deslocado aviões e armamento militar para a capital síria. Bastaram-lhe 24 horas para desencadear uma operação militar alegadamente contra o Estado Islâmico, que falhou comprovadamente o alvo, bombardeando a oposição a Assad. Uma hora antes do início da operação avisou os Estados Unidos para manter “os seus aviões em terra”. Na quarta-feira anunciou que a intervenção militar fora “a pedido” do Governo de Damasco, uma fórmula que faz tocar campainhas na nossa memória. Em 1979, a União Soviética invadiu o Afeganistão “a pedido” de Cabul e as coisas correram muito mal para Moscovo (a fórmula já tinha sido usada em Budapeste, Berlim ou Praga nos anos 50 e 60). Até onde vai a sua escalada na Síria é ainda uma interrogação.
4. Os títulos da imprensa da imprensa americana são quase todos para “desancar” em Obama, responsabilizando a sua “inacção” pelo avanço de Putin. As análises mais meticulosas ajudam a perceber que as coisas podem ser um pouco diferentes, incluindo na equação os limites do poder russo. Moscovo lançou duas intervenções militares em menos de 18 meses, numa altura em que a economia russa está a ser fustigada pelas sanções e pelo preço do petróleo. “O papel militar da Rússia pode revelar-se bastante limitado”, diz Ian Black, especialista no Médio Oriente, no Guardian. Sobretudo se for uma intervenção prolongada. Gideon Rachman, no Financial Times, lembra que foi a invasão do Afeganistão que deu início ao declínio do poder soviético. “Putin está a começar mais uma aventura militar antes de acabar a anterior”. Thomas Friedman, no New York Times, escreve que o Presidente russo “subiu a uma árvore” da qual pode ser difícil de descer, a não ser com uma proposta americana para se sentar à mesa das negociações.


Seja como for, americanos e europeus enfrentam uma situação extremamente complexa e perigosa, que recomenda uma outra estratégia de contenção de Moscovo e de solução para a Síria. Os europeus, incapazes sequer de lidar com a crise dos refugiados, correm o risco de se dividir caso não haja uma liderança americana. Ninguém tem dúvidas que um “incidente” nos céus da Síria seria sentido como um calafrio. O problema é que, mesmo estrategicamente enfraquecida, a Rússia ainda pode provocar muitos danos na ordem internacional. É urgente que Washington retome a iniciativa.

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