Portugueses intoxicados, um
deles, que faleceu, de origem moldava, são novas vítimas da exploração por
emigrantes compatriotas mais antigos em França.
11:14 Segunda feira, 10 de fevereiro de 2014 in EXPRESSO online
A intoxicação que ontem afetou sete pessoas numa casa de Pavillons
sous Bois, nos arredores de Paris, foi provocada por uma caldeira defeituosa e
tudo indica que se trata de mais um caso de exploração de "novos
emigrantes" portugueses (e não só) por compatriotas instalados em França
há vários anos.
Philippe Dallier, presidente da Câmara da localidade e
senador, disse esta manhã ao Expresso que "essa é a hipótese mais
provável" e informa já estar em curso uma investigação judicial sobre as
condições dos seus alojamento e trabalho. "Poderiam mesmo estar a trabalhar
em França em situação ilegal, o inquérito vai esclarecer isso", acrescenta
o maire.
No acidente morreu um emigrante de origem moldava que foi
identificado através de uma carta de condução portuguesa e que teria nascido em
Portugal em 1989. Ficaram feridos, igualmente devido à intoxicação com monóxido
de carbono, ainda três operários portugueses e mais três originários de países
do leste europeu.
Todos viviam em condições miseráveis numa dependência de uma
casa que lhes fora alugada por um patrão da construção civil radicado em
França. Parte da casa estava em obras e a vitima mortal dormia na cave, sem as
mínimas condições de segurança e de higiene, ao lado da caldeira de aquecimento
defeituosa.
"Não sabemos em que condições ele alugava os alojamentos
aos trabalhadores, se existia algum contrato, mas tudo aponta para uma situação
de completa ilegalidade, porque os vizinhos dizem que havia sempre muita gente
a chegar e a sair dessa casa e que por vezes aí habitavam pelo menos dez
pessoas", acrescentou Philippe Dallier.
Segundo informações fornecidas ao Expresso por fonte
oficial, os feridos foram hospitalizados, alguns tiveram já alta esta manhã e
nenhum estará em risco de vida.
Os casos de exploração, em França, de novos emigrantes e de
trabalhadores europeus "destacados" têm sido denunciados nos últimos
meses com muita frequência. Muitos dos portugueses nestas situações são vítimas
de compatriotas patrões de empresas, que os exploram por vezes em condições de
ilegalidade flagrante e de "autêntica escravatura", segundo alguns
sindicalistas franceses.
Muitas vezes, os patrões nem sequer os declaram oficialmente
como empregados, não efetuando os descontos legais e obrigatórios para a
segurança social. Nem a Câmara nem as autoridades portuguesas sabem se os
operários envolvidos neste drama tinham cartão da segurança social.
EDITORIAL/ PÜBLICO
Desemprego grisalho numa zona cinzenta
09/02/2014 - 18:14
Não são apenas os jovens que
estão a emigrar. Há uma geração, entre os 50 e 60 anos, de malas aviadas.
O que têm em comum Carlos Martins, 57 anos, Alexandre Neves,
52 anos, e Dalila Moura, também ela 57 anos? Fazem parte de um grupo de
portugueses que ainda não chegou à idade de reforma, com vontade de trabalhar,
mas sem emprego em Portugal. Estão de malas aviadas e têm uma estratégia:
trabalhar fora uns dez anos, para conseguir pagar dívidas ou os estudos dos
filhos.
Carlos Martins diz que no mês passado, depois de pagar a
conta do gás, ficou com 28 cêntimos na conta bancária. Quer ir para Angola, o
tempo escasseia, e diz que tem a impressão de que está a jogar contra a idade.
Alexandre Neves diz que é um workaholic, mas que o mercado não tem trabalho
para lhe oferecer. Quer rumar à Irlanda, já que até o subsídio de desemprego
deixou de receber. A Dalila Moura falta-lhe dez anos para a reforma: “Tenho 57
anos, mas 57 mil sonhos para realizar.” E quer emigrar para Timor ou Macau, ter
um emprego e realizar os tais 57 mil sonhos.
Carlos, Alexandre e Dalila, cujas histórias são contadas
hoje na revista 2, ajudam a compor as estatísticas do desemprego. Compram um
bilhete de ida, são riscados da população activa e ajudam a disfarçar as
estatísticas do desemprego. Basta olhar para os números do INE desta semana. A
população entre os 15 e os 65 anos diminuiu em mais de cem mil indivíduos em
2013, o que indica um forte papel da emigração no processo de ajustamento do
mercado. Cansaram-se, deixaram de poder esperar ou desesperaram e partiram. Vão
à procura do que não encontram cá. Porque a espera pode ser longa. Dos 826,7
desempregados em Portugal, 525 mil são de longa duração. E, do total, 258,5 mil
têm mais de 45 anos. Esta frase de Bagão Félix resume o drama desta geração que
vive numa zona cinzenta: “Todos sabemos que quanto mais longo for o desemprego,
mais tempo se fica nele. Há uma zona de terra de ninguém em que não há
protecção social e as pessoas ficam mais tempo no desemprego.”
O mais dramático em tudo isto é que a maioria dos
desempregados nessa faixa etária não voltará a encontrar trabalho em Portugal.
A crueldade desta frase é respaldada pelas estatísticas da Comissão Europeia
que mostram que o desemprego em Portugal não vai recuperar quando terminar a
recessão. Os números de Bruxelas dizem que o nível de desemprego estrutural –
ou seja, a taxa de desemprego “normal” num cenário em que a economia não está
nem a produzir abaixo das suas potencialidades, nem acima – já superou a
fasquia dos 15%. Isso mostra que o desequilíbrio da economia não é apenas
financeiro, mas também estrutural. E, como dizia ontem Guilherme d'Oliveira
Martins, o ajustamento vai demorar 20 anos a fazer. Provavelmente já não vamos
a tempo de mudar as prioridades da economia (e reforçar a aposta e a
qualificação nos sectores de bens transaccionáveis) para dar trabalho ao Carlos,
ao Alexandre e à Dalila. Mas ainda vamos a tempo de criar condições para que os
seus filhos e netos, alguns dos quais fazem parte dos 35,7% de jovens no
desemprego, não vejam a emigração como a única porta de saída.
Ei-los que partem pelo direito ao último terço da vida
PAULO MOURA in Público
Não são apenas os jovens que estão a emigrar. Muitas pessoas
entre os 50 e 60 anos procuram oportunidades noutros países. Aqui nunca mais
terão emprego, mas não se conformam com um prematuro final de vida, inútil e
inglório.
De electricidade percebe ele. Carlos coloca em cima da mesa
uma pilha de diplomas. Cursos, workshops, formações variadas em instalações
eléctricas, colectivas, em edifícios residenciais e terciários, de baixa
tensão, fibra óptica, televisão digital terrestre, infra-estruturas de
telecomunicações, tecnologia de equipamentos…
É um profissional. Trabalhou em várias empresas, até criar a
sua própria. Sempre quis evoluir, ultrapassar-se, angariar respeito, posição
social e dinheiro. Sem qualquer pejo, porque começou do nada. O que conseguiu
não o deve à sorte nem a ninguém. Custou a ganhar, e ainda mais a perder,
porque se o êxito com mérito próprio nos engrandece, é fácil sentirmo-nos
diminuídos se lhe sobrevém o fracasso.
Carlos Alberto Gonçalves Martins, 57 anos, coloca sobre a
mesa o seu Curriculum Vitae, cuidadosamente composto segundo o modelo europeu,
em várias folhas agrafadas. Experiência Profissional: Firma Cimo de Fala, Lda,
desde 2000. Electricidade, Canalizações e Infra-Estruturas em telecomunicação.
Função ou cargo ocupado: trabalhador e gerente.
“Eu gosto de ganhar dinheiro”, diz Carlos Martins, rodeado
pela família, na sala de jantar da sua casa de Cimo de Fala, um bairro da
freguesia de São Martinho do Bispo, a poucos quilómetros de Coimbra. Fala como
um empresário, como um homem que sonha e realiza. “Na minha vida, sempre tive
um plano. Sempre fui independente e determinado. Nunca me conformei com ganhar
pouco dinheiro. Tenho um Toyota Avensis, um bom carro. E gosto de comprar roupa
de qualidade para mim, na Quebramar e na Massimo Dutti.”
Antes da crise, Carlos, a mulher e os filhos tinham um nível
de vida elevado. Férias todos os anos em Montegordo. Um mês e meio no parque de
campismo (onde Carlos só ia passar os fins-de-semana com a família), médicos
privados, colégio privado para os filhos, o prestigiado Rainha Santa Isabel, a
500 euros por mês por cada filho. Depois o mais velho estudou Economia em
Coimbra e Beatriz, de 19 anos, está no 1.º ano de Comunicação Social. “Era
impensável eles não estudarem”, diz Carlos. E a mulher, Cristina, acrescenta:
“Ele passou dificuldades, quis dar aos filhos o melhor.”
O colégio privado, por exemplo, foi um luxo. “Eu ganhava muito
dinheiro, podia”, diz Carlos. Só em explicações para garantir que o filho
entrava na faculdade eram 350 euros por mês. Luxos úteis, pela função
simbólica. No resto, frugalidade. Não jantavam fora. “Enquanto os meus colegas,
que eram uns tesos, almoçavam no restaurante, eu levava a marmita, toda a minha
vida. Punha uma tábua em cima de tijolos e comia assim.” Os filhos levavam o
lanche para a escola. Todos os gastos tinham um objectivo. Em cursos,
workshops, campos de férias para os filhos não se poupava. Beatriz frequentou a
Alliance Française, escolas de música.
Foi o que se pode chamar um enriquecimento sustentável.
Carlos nunca teve um cartão de crédito. “Nunca vivi acima da realidade. Nunca
dei um passo maior do que a perna. Tenho as dívidas totalmente em ordem. Não
devo nada às Finanças.”
As roupas de marca são a sua única fraqueza, embora não
compre nada para si há mais de dois anos. “Quando era solteiro, era Lacoste e
tudo”, observa Cristina.
“Eu devo ter uns 14 ou 15 casacos de cabedal”, confessa
Carlos, como se falasse da sua carta de alforria. Quando namorava com Cristina,
comprou-lhe um casaco de peles. Secretamente. Ficou guardado numa mala e só foi
usado 11 anos mais tarde, quando o namoro deixou de ser clandestino. “Casaco de
peles era só para gente muito rica”, diz Carlos, que, por ser pobre, o pai de
Cristina não queria para genro.
Foi preciso comprar um terreno e construir uma casa (onde
hoje vive) para mostrar que estava à altura. Tudo isto antes de casar, pouco
depois de chegar da tropa, que fez em Lisboa…
“Eu estou velho? Eu?"
Os pais de Carlos, ele pedreiro, ela doméstica, separaram-se
quando ele tinha três anos, deixando-o a viver com os avós paternos. O avô
trabalhava na agricultura e empregou os nove filhos na construção civil. Mas
Carlos queria ser mecânico de automóveis.
Procuraram por toda a zona de Coimbra, ele e o avô. Sem
êxito. Os lugares de mecânico eram muito cobiçados, devido às regalias
conquistadas pelo Sindicato dos Metalúrgicos, por isso só se obtinham com boas
cunhas.
Uma empresa do Porto foi fazer a instalação eléctrica na
construção da Escola Superior Agrária de Coimbra e colocou um anúncio à entrada
da obra: “Precisa-se pessoal para electricidade”. Foi aí que Carlos começou a
trabalhar, com 13 anos. Pouco depois, o encarregado da obra chamou os três
melhores aprendizes e disse-lhes: “Vocês vão estudar Electricidade para a
Escola Avelar Brotero. Enquanto não trouxerem a matrícula, não trabalham mais.”
Eles obedeceram, Carlos Martins, Carlos Malhão e outro que, há três anos, por
não ter trabalho, se enforcou na garagem, na aldeia da Pedrulha.
Quando regressou da tropa, Carlos prosseguiu a carreira de
electricista, numa empresa. Tornou-se técnico certificado de instalações
eléctricas e de infra-estruturas de telecomunicações. Mostra uma fotografia
dessa altura, 1978, de cabelo comprido e calças à boca-de-sino.
Além do trabalho na empresa, aceitava biscates em part-time,
à noite e aos fins-de-semana. Fazia diariamente muitos quilómetros a pé, entre
várias obras, juntando dinheiro para comprar um terreno. A seguir, e durante
sete anos, com a ajuda de amigos, construiu a casa. Quando ficou pronta, pôde
casar.
“Foi uma festa à grande, à antiga portuguesa, em Ribeira de
Frades”, lembra Carlos. Despesas pagas por ele. “Empregados de mesa,
cozinheira, tudo alugado.” A lua-de-mel foi em Lisboa, na pensão Paris-Lisboa, no
Rossio. Para Cristina, era a primeira vez que saía de casa.
Na pensão, vendo o seu ar de jovens da província,
atribuíram-lhes um quarto minúsculo sem janelas, no sótão. A cama rangia, os
hóspedes dos aposentos vizinhos batiam nas paredes. Saíram a meio da noite.
Tinham reserva para cinco dias, só ficaram um. O resto da lua-de-mel foi
passado em casa, em São Martinho do Bispo.
Nasceram os filhos, Carlos especializou-se na profissão,
angariou clientes, estabeleceu-se por conta própria. Com grande esforço, a
empresa cresceu. Durante dez anos, tudo correu bem. Depois chegou a crise.
“A construção civil está estagnada, não tenho clientes. Os
que tenho não pagam. A Justiça não funciona.” Tornou-se quase impossível manter
os impostos em dia, os pagamentos por conta.
Há dois anos que não vão de férias, compram agora a roupa na
feira dos 23, em São Martinho, tudo de marca branca, Beatriz vai aos médicos do
serviço público. E a situação tem vindo a piorar. No mês passado, não houve
dinheiro para a conta do gás. Depois de a ter pago agora, com atraso, Carlos
ficou com 28 cêntimos na conta bancária.
“Isto está a tirar-me anos de vida”, diz ele. “Não durmo.
Acordo às 3 da manhã e já não pego no sono.” Tem tempo de mais para pensar, é
esse o problema. Gasta horas a cultivar um terreno de que é proprietário, nas
traseiras da empresa, mas a angústia não passa.
Sente-se pleno de energia, com a vida pela frente e ao mesmo
tempo sem futuro. A actividade económica tão cedo não vai recuperar, nunca mais
terá emprego, com a sua idade.
“Nunca vivi acima da realidade. Nunca dei um passo maior do que a perna. Tenho as dívidas totalmente em ordem. Não devo nada às Finanças”
Carlos Martins
“Eu estou velho? Eu? Eu faço uma obra em três meses, com
canalização e tudo.”
A ele, que se ergueu do nada, no meio mais hostil, vão
tirar-lhe o tapete aos 57 anos? Ele, que é um vencedor? Que se entrega ao
trabalho, à luta, sem compromissos? “Quando andava a fazer uma grande obra, eu até
sonhava com a obra.”
Não. “Um homem pode evitar morrer lentamente”, pensou. E
decidiu emigrar. Está há um ano a enviar currículos para empresas que operam no
estrangeiro. Um amigo foi para Angola e prometeu ajudá-lo a arranjar trabalho.
Ainda não surgiu nada, mas é uma questão de tempo.
“A construção civil está estagnada, não tenho clientes. Os que tenho não pagam. A Justiça não funciona”
CARLOS MARTINS
Escolheu Angola porque não fala línguas estrangeiras e
porque sente que na ex-colónia talvez possa um dia montar uma empresa. Mas já
enviou currículos para o Brasil, Colômbia e outros países latinos. Para já quer
ir sozinho, sem a família, e não tenciona encerrar a empresa. “Não consigo,
seria como arrancar um bocado de mim próprio”, explica com lágrimas nos olhos.
Vai apenas suspender actividade.
Entretanto, prepara-se. Frequenta cursos, aprende a
cozinhar. Reuniu uma colecção de receitas publicadas na revista do LIDL.
“Beringelas recheadas”, lê-se na primeira folha. “Se alguma vez imaginei que
aos 57 anos tivesse de emigrar!”
Vai para ganhar dinheiro, amealhar, pagar os estudos da
filha, e regressar talvez daqui a dez anos, na idade da reforma. O difícil é
conseguir uma oportunidade. Depois, estará por sua conta. “O problema é chegar
lá. Não tenho recebido respostas. Faltam-me cunhas. E o que me deve prejudicar
é a idade. Tenho a impressão de que estou a jogar contra a idade. Mas quando
conseguir, como vou ser bom, não haverá problemas.”
Ficar cá não é alternativa porque não consegue conformar-se.
“Pensar é o pior.” Pensar na sua situação, mas também noutras ainda mais
graves, de outras pessoas. “Eu vivo a minha realidade, mas vivo também os
problemas dos outros.” Só partindo poderá deixar de pensar. “Só sei que, se
for, terei mais anos de vida.”
240 eram os emigrantes portugueses
registados na Segurança Social em Inglaterra em 2002. Em 2013, eram 944
Nos últimos anos, a crise e o aumento do desemprego têm
obrigado muitos portugueses a emigrar. Mas não são só os mais jovens que
partem. Se é verdade que é entre estes que são mais elevadas as percentagens de
desemprego, também é verdade que, no caso dos mais velhos, uma vez afastados do
mercado de trabalho, é quase impossível regressar.
Há por isso muitas pessoas com mais de 50 anos dispostas a
tentar a sorte noutro país. Os estudos e até os registos do fenómeno migratório
têm incidido sobre as faixas etárias mais baixas, ou a mão-de-obra mais
qualificada. Quase não existem dados sobre a emigração.
Segundo José Carlos Marques, especialista em questões da
emigração, professor do Instituto Politécnico de Leiria e investigador do
Centro de Estudos Sociológicos da Universidade Nova de Lisboa (Cesnova), há
várias situações que estão a levar os maiores de 50 anos à emigração, embora
não existam muitos dados estatísticos sobre o fenómeno. Há o caso das “pessoas
com qualificações, que conhecem o mercado de trabalho noutros países e possuem
conhecimentos linguísticos que facilitam a integração”. Há ainda aqueles que “atingiram
já com uma idade avançada o topo da carreira numa empresa, empresa essa que
neste momento se deslocaliza para outro país, e quer colocar lá quadros
qualificados”
Sabe-se também que pessoas que já emigraram no passado, que
têm uma rede de conhecimentos ou até família noutro país, regressam agora, face
ao insucesso na integração no mercado de trabalho português. Por fim, ainda
segundo José Marques, há pessoas que, mesmo sem qualquer rede de apoio, sentem
que, apesar de ultrapassados os 50 anos, ainda têm um contributo a dar à
sociedade, que aqui não lhes fornece oportunidades.
A estratégia de muitos destes emigrantes tardios é trabalhar
fora uns dez anos, até à idade da reforma, para conseguir pagar dívidas ou os
estudos dos filhos.
Há entre os investigadores sociais a percepção empírica de
que os números deste tipo de emigrantes estão a aumentar, embora seja difícil
contabilizá-los. A única forma de o fazer é aceder aos registos das
instituições de segurança social dos países de destino, uma vez que não há
qualquer inventário das saídas.
Segundo dados, parciais, do Instituto Nacional de
Estatística, foram confirmadas desta forma, no ano de 2011, as saídas de 2131
emigrantes com idades entre os 50 e os 59 anos. Em 2012, o número foi de 2569,
um crescimento significativo, ainda que inferior ao registado nas idades mais
baixas.
Por exemplo, em Inglaterra, caso sobre que têm incidido os
estudos de alguns investigadores, houve um aumento, na última década, dos
emigrantes portugueses com mais de 55 anos registados na Segurança Social: de
240, em 2002, para 944 em 2013.
Ainda que parcelares, os dados permitem entrever a
probabilidade de que a emigração depois dos 50 anos tenda a aumentar.
Se cada vez se vive mais anos e se cada vez há menos
empregos, a que os mais velhos têm cada vez menos acesso, este tipo de fluxo
migratório é inevitável. É este o paradoxo de uma sociedade com indicadores
demográficos do mundo desenvolvido e económicos do subdesenvolvido: cada vez há
mais cidadãos de meia-idade a engrossar as fileiras de um exército de vencidos.
“Não há emprego para mim”
Alexandre Neves, 52 anos, é maquetista, embora há mais de
dez anos quase não trabalhe na sua área. Deixou de fazer maquetas de
urbanizações no ano 2001, para trabalhar numa empresa de construção, como
vendedor de betão. Não fazia o que gostava, a sua especialidade, porque não
conseguiu colocação em nenhuma das empresas de maquetas em Portugal. Mas
saiu-se bem na área comercial. Entre 2004 e 2007, obtinha rendimentos anuais de
cerca de 75 mil euros. Depois, como assistente de produção, passou a ganhar
2400 euros por mês, limpos. Era casado, com dois filhos, vivia numa boa casa em
Setúbal, com carro e moto. Com a crise, a empresa fechou.
Recebeu subsídio de desemprego até Agosto do ano passado.
Mas toda a sua vida se desmoronou. O casamento desfez-se, vendeu a casa,
separou-se dos filhos, uma menina de quatro anos e um menino de um.
Tentou encontrar emprego, mas desistiu. Mesmo que o
aceitassem nalguma empresa, o salário não ultrapassaria os 800 euros. Só de
pensão para os filhos paga 400. Tentou um negócio de venda de azeite, com um
amigo, ponderou outras possibilidades, como gerir um pequeno hotel em
Moçambique. Nada resultou. “Não há emprego para mim”, concluiu.
“Há quatro empresas em Dublin. O salário, a julgar pelos anúncios que vi publicados, é de 36 mil euros anuais, para começar. Vai dar para ter uma casa, com a Vera, mandar dinheiro para os meus filhos”
Alexandre Neves
Alexandre considera-se um bom maquetista. É a sua arte e a
sua paixão. Não fez nenhum curso, porque eles não existem em Portugal, mas
aprendeu com quem sabia. Recentemente, realizou alguns trabalhos para a empresa
de um amigo que trabalhou 15 anos no Canadá, nessa área. Foi apenas uma ajuda,
aos fins-de-semana, uma vez que a empresa não tem vagas, porque não tem
encomendas. Mas o amigo, a quem Alexandre reconhece grandes competência e
conhecimento, gostou do seu trabalho. Mostrou a maqueta de Alexandre à mulher e
disse-lhe: “Olha, isto é um maquetista!” Talvez não tenha tido consciência de
como isto foi importante para o amigo.
Este voltou a ganhar confiança nas suas capacidades, o que
se tornou um dos nutrientes do seu plano para uma nova vida. O outro foi Vera.
Terem-se conhecido e iniciado uma relação amorosa tornou a existência de ambos
mais séria, mais comprometida.
Vera trabalha numa empresa multinacional que vai fechar a
delegação portuguesa, propondo aos empregados lugares noutros países. Vera
aceitou uma vaga na Irlanda, e Alexandre não teve dúvidas: vai com ela, no
início do Verão.
Tem andado a analisar o mercado irlandês de maquetistas. “Há
quatro empresas em Dublin. O salário, a julgar pelos anúncios que vi
publicados, é de 36 mil euros anuais, para começar. Vai dar para ter uma casa,
com a Vera, mandar dinheiro para os meus filhos.”
Vera teme que o namorado esteja a ser muito optimista. “Eu
acredito em mim”, diz ele. “Sou um workaholic. E funciono bem em equipa.” Mas a
actividade de maquetista tem evoluído muito. Vários processos são agora
realizados por computador, há muitas especializações. “Eu sou assembler. Monto
as componentes, de terrenos e edifícios como se fosse um Lego”, diz Alexandre.
“Isso é o que sei fazer melhor. Não tenho experiência noutras áreas. Pintar não
faço muito bem.” Os colegas irlandeses talvez tenham outras aptidões, cursos
especializados. Nos anúncios que Alexandre viu, são pedidas competências que
ele nem sabe o que são. Mas não teme a concorrência. “Em todos os sítios onde
trabalhei as coisas correram bem.”
Alexandre nasceu em Moçambique, onde a família estava há
três gerações e de onde veio com sete anos. As ligações a Portugal não são tão
fortes que o impeçam de criar raízes noutro lugar. É verdade que a mãe está com
75 anos. “Mas tem os amigos do Lyons Club.” E os filhos podem sempre ir estudar
para a Irlanda, se as coisas correrem bem. Vera e Alexandre estão a vender
tudo, não tencionam voltar a Portugal.
“Tenho 57 anos, mas 57 mil sonhos para realizar”
“Este país está a ser muito redutor. E eu vivo para o futuro, não para o passado”
DALILA MOURA
Dalila Moura, 57 anos, tem um doutoramento em Ciências da
Educação, que terminou no ano passado. Desde o curso do Magistério Primário em
Santarém, desde que frequentou aquela disciplina — Espaço, Movimento e Drama —
que sabe em que direcção pretende ir. Ela quer usar a arte na Educação.
Principalmente o teatro. E todo o seu percurso tem sido feito com esse
objectivo.
Foi professora do 1.º ciclo e na Escola Superior de Educação
de Setúbal, na formação de professores. Fez o doutoramento na Universidade de
Huelva, em Espanha, com uma tese sobre Avaliação das Actividades de
Enriquecimento Curricular na Expressão Artística, a partir de um estudo exploratório
sobre o tema, que realizou como bolseira. A investigação incidiu sobre o
trabalho de Arquimedes da Silva Santos, o pioneiro na Educação pela Arte em
Portugal.
Como tinha aprofundado estes conhecimentos específicos,
desenvolveu técnicas de formação próprias, que passou a utilizar nas suas
aulas. Disfarça-se de palhaço ou de bruxa, ensina através de canções ou
dispondo os alunos em círculo, sentados no chão em almofadas.
Em 2006, foi destacada pelo Ministério da Educação para uma
IPSS, a Ludoteca Moinho, na zona de Setúbal, com o objectivo de promover o
sucesso escolar num bairro pobre, de pescadores. Aí, e como coordenadora da
ludoteca, construía histórias interactivas, e encenava-as, com as crianças do
bairro.
Mas o financiamento foi cortado e Dalila teve de voltar ao
ensino do 1.º ciclo. Só que agora as regras são outras. “A burocracia é enorme,
dificulta a criatividade”, diz ela. “Dantes, o professor tinha mais liberdade.
Agora, a escola está mais fragmentada, não permite a metodologia transversal de
conhecimentos que sempre utilizei. O sistema está montado para a
compartimentação de saberes.”
E esta filosofia existe tanto no ensino das crianças, como
na própria formação de professores, onde Dalila também gostaria de trabalhar,
mas não consegue colocação. “Tive o privilégio de ter formação em Drama e
gostaria de experimentar essas capacidades, no âmbito da educação pela arte, na
formação de professores. Porque não dá o ministério hipóteses aos professores
que têm formação para formar?”
Dalila escreve poesia — tem três livros publicados. “Por
vezes, vou a conduzir e tenho de parar de repente, para escrever”, conta. Mas
já não consegue editar livros. “Na literatura, funciona tudo por grupos de
amigos. Não quero ser obrigada a pagar para publicar os meus livros.”
Gostaria de ter um atelier de movimento e drama, de abrir
uma escola de artes num certo palacete abandonado que conhece, onde poderia
promover o intercâmbio intergeracional. Mas nada disto é possível. “Tenho 57
anos, mas 57 mil sonhos para realizar”, diz.
Dalila é casada, tem o pai a viver com ela, e dois filhos,
um deles desempregado. Mas quer emigrar. Tenciona concorrer para Timor, para
fazer formação de professores, ou para Macau. Também já enviou o currículo para
Angola e Cabo Verde. Quer ir sozinha, por algum tempo. A família encoraja-a.
Faltam dez anos para a reforma e não está satisfeita. “A
vida profissional que tenho não me realiza completamente”, diz, como se os
sonhos por consumar lhe sustivessem, intacta, a juventude. “Este país está a
ser muito redutor. E eu vivo para o futuro, não para o passado.”
Correr riscos
Mas recomeçar noutro país depois dos 50 pode ser mais
difícil do que se imagina. Cláudia Pereira, investigadora no ISCTE e no
Observatório da Emigração, encontrou alguns casos de insucesso na sua
investigação, no âmbito do pós-doutoramento sobre a emigração portuguesa no
Reino Unido.
Lembra-se do caso de um açoriano de 54 anos, que entrevistou
recentemente, que não conseguiu adaptar-se e teve de pedir dinheiro emprestado
para regressar. Tinha partido com 100 euros no bolso e contava com a ajuda de
um amigo, cujo alojamento em Londres poderia partilhar nos primeiros tempos.
Mas tratava-se de um quarto exíguo e o senhorio não tardou a expulsá-lo de lá.
O emprego, de pedreiro, que conseguiu através da agência de um português,
revelou-se muito exigente. Ele não conseguia cumprir, não falava inglês,
sentiu-se sozinho, com saudades, quis vir embora. Obteve dinheiro emprestado e
trabalhou apenas os dias necessários para ganhar o equivalente ao preço do
bilhete de avião.
Cláudia Pereira conheceu outros casos semelhantes. “As
pessoas já não estão tão dispostas a correr riscos”, explica, fazendo a
comparação com os fluxos migratórios dos anos 1960. “A adaptação é mais
difícil.” O trabalho é mais exigente, e, desde o alargamento da União Europeia,
há a concorrência de trabalhadores do Leste. No caso britânico, o dos
imigrantes polacos, que geralmente falam inglês.
Os trabalhadores portugueses encontram um ambiente mais
favorável, em que são mais competitivos, em mercados como o de Angola, onde se
fala português e o sector da construção está em crescimento. Na Europa, essa
emigração não especializada, como existiu no passado, é hoje uma ilusão.
Adélia Garcia Morais pertence a outro grupo. Ela, 57 anos,
arqueóloga, e o marido, 61, médico neurologista, com uma filha de oito anos,
vivem em Lincoln, no Reino Unido, desde Agosto do ano passado. Nuno foi oficial
e médico da Força Aérea. Depois de 36 anos de serviço e várias missões, uma
delas em Timor, passou à reserva territorial e reformou-se. Mas continuou a
trabalhar no Serviço Nacional de Saúde, fazendo urgências no Hospital Garcia de
Orta, até que foi publicada uma lei segundo a qual os reformados não podiam
mais trabalhar na função pública.
Adélia e Nuno tinham sete filhos (dois dela, cinco apenas
dele), a filha mais nova a estudar no Colégio Moderno, outro filho a estudar
Medicina em Barcelona, muitas despesas, uma enorme energia. “Dissemos um para o
outro: o que é que estamos aqui a fazer?”, conta ela, numa entrevista por
telefone.
Saudades do Alentejo
“Eu não gosto de estar aqui”, diz Adélia. Lincoln é uma
cidade pequena, de 97 mil habitantes, muito conservadora, a três horas de
Londres. Os partidos de extrema-direita, anti-imigração, são cada vez mais
fortes, organizam manifestações intimidantes. Adélia dificilmente encontrará
trabalho na região. Dedica-se à filha, Teresa, matriculada num bom colégio, a
Escola da Catedral, que pertence à igreja anglicana, e ao marido, a quem está
prestes a ser oferecido um lugar efectivo e definitivo noutro hospital ali perto.
Tinham feito dois amigos, um colega italiano de Nuno, que se vai embora, e uma
búlgara, que também está de partida.
“Vamo-nos alimentando de livros e fazemos companhia um ao
outro”, diz Adélia. Contam o que lêem, ele nos livros de Eça, ela nos de
Alexandra Lucas Coelho [cronista do PÚBLICO]. “Vamos construindo assim uma teia
entre nós dois.” Para Adélia, os livros de Alexandra são uma espécie de guia
das aventuras que imagina para si. “Tiro notas sobre os lugares de que ela
fala, os livros, os filmes, Depois vou pesquisar e ler mais sobre eles.”
Em Lincoln, os dias terminam muito cedo. “Tudo fecha na
cidade, é estranho. Há muitas crianças, mas não fazem barulho.” Portugal
tornou-se insuportável para Adélia, mas agora morre de saudades. Está
arrependida de ter ido. Chora ao telefone. “Se fosse hoje, não tomaria a mesma
decisão. Enfrentaria a fera.”
Tem saudades de fazer escavações no Alentejo. Do cheiro dos
pimentos assados. “Aqui também há pimentos, mas não têm cheiro.” Saudades do
barulho da rua que ouvia na sua casa de Lisboa. Do ruído das esplanadas. Do sol
a entrar pela janela iluminando a estante. Sabe sobre que livros incidia esse
raio de sol a cada hora do dia. E vai recordando isso, a cada hora dos dias
cinzentos do Lincolnshire. “Chego a telefonar para o nosso número, só para
saber que o telefone toca lá, na casa que deixámos fechada.”
Teresa tem um caderninho onde escreve coisas para mandar à
sua professora do Colégio Moderno. Mas adaptou-se bem à escola inglesa.
Principalmente no relacionamento humano. Recebeu já o diploma de um prémio
especial da Comunidade que diz: “For being consistently kind, helpful and polite
to others” (Por ser constantemente atenciosa, prestável e educada).
Na idade dela é fácil. Os pais nunca se adaptarão ao seu
novo mundo, embora saibam que também é tarde para regressar. “Nunca pensei que
viria a sentir assim a falta de Portugal”, diz Adélia. “Mas não volto. Enquanto
puder, não volto. E quando não puder, também não.” Não deixará que o país lhe
roube o último terço dos seus anos, esses que devíamos ter reservados para
saborear as conquistas de uma vida. Para ela, Portugal é cada vez mais a
memória de um mundo que não existe, o som de um telefone a tocar numa casa
vazia.
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