ANÁLISE
A resposta
“contida” do Irão
As primeiras
salvas de mísseis do Irão são provavelmente as últimas. A “guerra assimétrica”
pode continuar mais tarde.
TERESA DE SOUSA
8 de Janeiro de
2020, 14:46
1. Cinco dias
depois da eliminação às ordens de Donald Trump do general Qassem Soleimani, o
Irão retaliou. Optou pela via militar, disparando salvas de mísseis contra duas
bases militares iraquianas onde estão estacionadas tropas americanas e da
coligação internacional. Não houve vítimas, embora o regime de Teerão fale em
80 “terroristas” americanos mortos. Os actos e as palavras dos responsáveis de
Teerão revelam prudência. A retaliação está “concluída”, escreveu o ministro
dos Negócios Estrangeiros iraniano, Javad Zarif num tweet.
O regime cumpriu
o prometido: retaliou, simbolicamente à mesma hora em que Soleimani foi morto,
demonstrando à opinião pública que não tem medo dos EUA. As autoridades de
Teerão, incluindo a ala dura do regime, sabem que não é através do confronto
militar que conseguirão infligir o devido “castigo” aos EUA e aos seus aliados
regionais. Essa é a guerra que não querem travar, porque a perderiam. O que não
quer dizer que não regressem à “guerra assimétrica”, a especialidade de
Soleimani com a sua rede de milícias violentas espalhadas por todo o Médio
Oriente – o terreno onde pode provocar mais danos e onde a esmagadora
superioridade militar americana conta menos. As possibilidades vão de atentados
terroristas contra alvos americanos algures no mundo à crescente
desestabilização do Iraque, criando uma situação insustentável para as tropas
americanas e da NATO que estão no terreno e obrigando os cidadãos americanos a
sentirem-se alvos quotidianos desde que estejam fora dos Estados Unidos.
Teerão também
prometeu atingir o território americano. É altamente improvável, mas seria uma
tremenda derrota para Donald Trump. Desde o 11 de Setembro que nenhum atentado
terrorista provocado por forças extremistas estrangeiras atingiu os EUA. O
terrorismo de raiz islâmica atingiu em primeiro lugar o próprio mundo árabe e
islâmico, onde aconteceram os mais mortíferos e frequentes atentados da
Al-Qaeda e onde o Daesh provocou o maior número de vítimas. Os dois grupos
terroristas são sunitas, ou seja, inimigos do Irão xiita. A Europa também foi
duramente atingida por uma série de atentados mortíferos de larga escala, desde
2004 (Madrid), e é ainda hoje o terreno privilegiado dos chamados “lobos
solitários”, que tentam eliminar infiéis nas ruas das grandes cidades
europeias, normalmente providos de armas rudimentares, mas mesmo assim letais.
2. O Presidente
americano respondeu aos dois ataques de mísseis com a sua “simplicidade”
habitual: “Até agora, tudo bem”. Sem se esquecer de lembrar que tem à
disposição o exército mais poderoso do mundo. Se o Irão ficar por aqui, pelo
menos no imediato, Trump poderá facilmente cantar vitória. É essa linguagem
primária, muito distante da que estávamos habituados a esperar do ocupante da
Casa Branca, que lhe permite manter o apoio de quase metade dos americanos,
ultrapassando todas as crises que os analistas tenderiam a considerar fatais
para qualquer outro no seu lugar.
A confusão sobre
a retirada das tropas americanas no Iraque, depois de o Parlamento iraquiano
ter votado pela sua expulsão, ou a ideia de visar alvos que são património
cultural da humanidade provocaram, apesar de tudo, algum mal-estar no
Pentágono, que se tem visto marginalizado das “grandes decisões” da
Administração Trump, com a crescente preponderância do chefe do Departamento de
Estado, Mike Pompeo. Quanto aos aliados, a diplomacia americana foi à sede da
NATO em Bruxelas, no dia 6 de Janeiro, informá-los de que a “dissuasão” face a
Teerão tinha sido restabelecida com a morte de Soleimani e de que os passos
seguintes seriam no sentido de evitar uma escalada.
3. Do lado de cá
do Atlântico, não há grandes surpresas. A Europa sofre as dores da sua
dificuldade em adaptar-se a um mundo para o qual não estava e ainda não está
preparada. Teria um papel a desempenhar (como desempenhou na crise ucraniana,
por exemplo), se em Washington estivesse outro Presidente, e nem sequer seria
preciso que fosse Obama. Basta trazer à memória a rapidez com que a maior crise
da relação transatlântica depois da Guerra Fria, provocada pela guerra do
Iraque em 2003, foi superada, com a reaproximação entre a Administração Bush e
as principais potências europeias. Com Donald Trump, o papel de intermediação
que a Europa poderia desempenhar numa crise internacional desta natureza é mais
difícil, se não mesmo impossível.
Mesmo assim, os
europeus estenderam a mão à ala moderada do regime, posta momentaneamente em
cheque com a eliminação do “número dois” da sua ala dura, convidando o ministro
Zarif para conversações em Bruxelas. O objectivo é manter alguns canais abertos
com Teerão que permitam salvar in extremis o acordo nuclear de 2015, que
negociou e subscreveu com os Estados Unidos. Teerão já ameaçou abandoná-lo. O
teste será a continuação das missões de verificação dos sites onde o
enriquecimento do urânio para fins civis é possível. Hoje, perante a
“retaliação” iraniana, não houve dessintonia com Washington. Em Berlim, Paris
ou Londres, os dois ataques de mísseis foram devidamente condenados.
Muita coisa vai
depender também da forma como se conseguirem articular no quadro da NATO (para
já não dizer da União Europeia) sobre uma resposta de mais longo prazo. Vão
retirar-se do Iraque, onde mantêm missões de formação das forças armadas
iraquianas? Em ordem dispersa? Alguns países da Aliança, como o Canadá ou a
Espanha, já anunciaram a retirada parcial das suas tropas. A Alemanha anunciou
a redução do seu contingente. O Reino Unido e a França, como seria se esperar,
ainda estão a avaliar a situação. Países como Portugal, cujo empenho na NATO é
forte, reservam a sua decisão para uma tomada de posição conjunta. O mais
provável é que a Europa acabe por retirar-se progressivamente do Iraque, onde o
confronto entre o Irão e os EUA deverá continuar por entrepostos actores.
“Entalada” entre
um mundo onde prevalece cada vez mais a força sobre a lei internacional e uma
Administração americana pouco interessada nas suas velhas alianças e ainda menos
no desempenho do seu papel de garante da ordem internacional, a Europa constata
as suas próprias limitações. Mesmo assim, como notou a imprensa europeia, as
três potências europeias – França Alemanha e Reino Unido – afinaram muito
facilmente pelo mesmo diapasão na forma como reagiram à crise, provando que o
“Brexit” não vem alterar significativamente o forte alinhamento dos interesses
britânicos com os dos seus principais parceiros europeus.
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