Três minutos ou
uma hora? Fita do tempo e queixa na PSP revelam contradições
Novos dados, que
seguiram para o MP da Amadora, revelam algumas contradições entre a versão que
tem sido apresentada por Cláudia Simões e o que está registado na PSP e na
primeira denúncia que fez contra o agente
Valentina
Marcelino
24 Janeiro 2020 —
00:10
Na queixa que
apresentou na esquadra da PSP na Reboleira, no dia a seguir às alegadas
agressões do agente, Cláudia Simões não fez referência à pancada que, segundo a
sua advogada, sofreu durante "uma hora dentro do carro (da polícia) às
voltas pela Amadora".
A denúncia foi
registada na esquadra às 8h18 minutos do dia 20 de janeiro, segunda-feira,
depois de, nessa noite, Cláudia Simões ter sido assistida no Hospital Fernando
da Fonseca. De acordo com o texto registado no documento, que será enviado para
o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) da Amadora, a cidadã
portuguesa de 42 anos, natural de Angola, relatou que pelas 21 horas foi
abordada pelo motorista de um transporte público em que se encontrava. Quando
saiu na paragem, esse funcionário chamou um agente que fez uma técnica
denominada de 'mata-leão' - e esta é a única referência à atuação policial.
Segundo o que
está descrito na denúncia, que foi lida ao DN por fonte que está a acompanhar o
processo, posteriormente Cláudia Simões foi levada para uma esquadra, onde foi
elaborada a detenção, mas não assinou qualquer documento. De seguida foi
transportada de ambulância para o hospital onde recebeu tratamento. Cláudia
Simões pediu a identificação do agente pois desejava proceder criminalmente contra
ele. Assinou e levou cópia. Fontes judiciais disseram ao DN que, só quando
Cláudia foi ouvida pelo Ministério Público - numa altura em que o caso já
corria as redes sociais com o apoio da associação SOS Racismo - é que relatou
ter sido agredida no carro da polícia e junto à esquadra.
No entanto, na
notícia publicada pelo jornal Contacto, antes de ser ouvida em tribunal,
Cláudia Simões já apresentava a versão com todas as agressões.
a advogada de
Cláudia Simões confirma o teor desta queixa. No entanto, alega que esta
"fez referência e denunciou todas as agressões, no carro patrulha e na
esquadra", mas que "a PSP não as registou porque não quis".
Contactada pelo
DN, a advogada de Cláudia Simões confirma o teor desta queixa. No entanto,
alega que esta "fez referência e denunciou todas as agressões, no carro
patrulha e na esquadra", mas que "a PSP não as registou porque não
quis". Ana Cristina Domingues avançou que ia entregar "ainda hoje
[quinta-feira ao final do dia] uma adenda a esta queixa no DIAP, com a
descrição completa dos factos e um pedido de medidas de coação contra o agente
da PSP".
Três minutos ou
uma hora no carro-patrulha?
Na versão que
Cláudia Simões tem apresentado não fica claro o tempo que terá demorado o
transporte entre o local em que sofreu o mata-leão, cujo vídeo foi difundido
amplamente, e a esquadra. "Saí daquele local já algemada para a viatura da
PSP, supostamente iam-me levar para a esquadra, onde afinal nunca cheguei a
entrar. Uma vez no interior do carro da PSP, no banco traseiro, o Sr. Agente
Carlos Canha sentou-se ao meu lado; à frente seguiam o condutor e um outro
Agente sentado ao seu lado; assim que colocaram a viatura em andamento,
fecharam os vidros, puseram a música alta, e a barbárie começou: o Sr. Carlos
Canha esmurrou-me até lhe apetecer, enquanto proferia as seguintes expressões:
"sua puta, sua preta do caralho. (...) O Sr. agente conduziu o carro pelas
ruas da Amadora ajudando assim o seu colega a satisfazer os seus
intentos".
No entanto, em
declarações ao Expresso, a advogada alega que Cláudia entrou no autocarro às
21h37 e saiu ainda antes das 22h. Viria a dar entrada no Hospital Fernando da
Fonseca (vulgarmente conhecido como Amadora-Sintra) às 22h48. "Significa
que ela esteve cerca de uma hora dentro do carro às voltas pela Amadora a ser
espancada. O estado em que ficou não é de quem levou apenas um murro. Foi
agredida constantemente." Ao DN corrige estas horas: "entrou no
autocarro às 20h37 e saiu pelas 21h".
Para contrariar
estas versões a PSP enviou ao MP a fita de tempo da designada
"ocorrência" e que é obrigatória neste género de relatórios
policiais. Esta fita de tempo contém as gravações feitas para o centro de
comando e controlo que recebe as comunicações da polícia e as chamadas do 112.
O dado que logo ressalta desta informação oficial, também lida ao DN, é que o
carro-patrulha saiu da paragem do autocarro com a Cláudia detida pelas 21h16 e
que às 21h19 um agente da PSP faz uma chamada para o 112 a pedir
"assistência para uma cidadã detida com escoriações no rosto". O
telefonema terá sido feito quando já se encontravam na esquadra de S. Brás. Ou
seja são três minutos de viagem para dois quilómetros de trajeto sem trânsito.
Estes telefonemas são gravados e o MP terá acesso aos mesmos para confirmar a
veracidade do registo da PSP.
O telefonema terá
sido feito quando já se encontravam na esquadra de S. Brás. Ou seja são três
minutos de viagem para dois quilómetros de trajeto sem trânsito. Estes
telefonemas são gravados e o MP terá acesso aos mesmos para confirmar a
veracidade do registo da PSP.
Recorde-se que o
comandante dos bombeiros da Amadora, Mário Conde, tinha dito ao DN que "a
chamada foi feita para o 112 e o INEM deu-nos pedido de saída de um meio
[ambulância] para uma queda. E os agentes que lá estavam disseram que ela ao
sair do carro se tinha mandado para o chão."
Esta fita de
tempo começa às 21h02 com uma comunicação de que um agente da PSP estava com
uma cidadã detida e havia populares a envolverem-se contra ele; Pelas 21h03
chega o apoio com mais agentes num carro patrulha; às 21h16 o carro-patrulha
sai com a detida para a esquadra; às 21h19 é descrita chamada para o 112; e às
22h18 é registada a entrada no hospital Fernando da Fonseca, na Amadora. Uma
questão que se coloca e que não foi possível ainda esclarecer com os bombeiros
é, caso esta fita de tempo esteja correta, porque demorou praticamente uma hora
entre a chamada e a entrada no hospital.
Segredo de
justiça decretado
Questionada sobre
as discrepâncias temporais da viagem para a esquadra, Ana Cristina Domingues
duvida dos registos da fita de tempo. "O próprio comandante dos bombeiros
já disse na TV que a comunicação via CODU (Centro de Operações Distritais de
Socorro data das 21h26. Parece que existe incongruência entre os factos e o que
diz a PSP", sublinha. A advogada também desconfia dos dados sobre a hora
de chamada do 112 (21h19), registada na fita de tempo, e a chegada ao hospital:
"Acha que os bombeiros demorariam uma hora a fazer um percurso de 1,8 km?
São 5 minutos num carro normal e este estava em missão de socorro!",
salienta. Quanto ao tempo de viagem do local da detenção para a esquadra, Ana
Cristina Domingues ainda não clarificou a discrepância.
Cláudia Simões
acusa o agente de a ter atirado para o chão e agredido ainda mais quando a
tiraram do carro policial, junto à esquadra. "O Sr. Agente Carlos Canha,
puxou-me para a rua, arrastando-me e deixando-me caída no chão; uma vez ali
caída, na rua, o Sr. Guarda Carlos Canha não saciado ainda, desferiu-me um
pontapé na testa", contou num comunicado que divulgou esta quinta-feira.
É nesta altura, diz
Cláudia, em que já não tinha qualquer reação, e sangrava abundantemente da boca
e nariz, que "um dos Agentes profere as seguintes palavras "Ainda a
matas" e "vira-a de lado"; estas palavras no seguimento de eu me
estar a engasgar com o meu próprio sangue; é então que os Srs. Agentes começam
a tentar perceber se eu ainda respirava e após dizer que "ainda
respira" acharam então por bem virar-me; como não o conseguiram fazer
comigo algemada retiraram-me as algemas; deixaram-me permanecer caída no
chão."
Ao DN, o
comandante dos bombeiros afirmou que encontraram Cláudia "no chão,
consciente, orientada" mas que não respondia a perguntas que faziam, como
se tinha ou não caído.
A denúncia de
Cláudia contra o agente da PSP deverá ser integrada no processo já iniciado
pelo MP com a queixa do agente contra Cláudia - a quem acusa de ter mordido e
resistido à detenção. O processo foi atribuído ao procurador Helder Cordeiro,
coordenador do DIAP da Amadora, que decretou de imediato segredo de justiça.
Cláudia Simões está constituída arguida indiciada pelo crime de resistência e
coação sobre agente de autoridade, sujeita à medida de coação mais leve, Termo
de Identidade e Residência. O polícia, que está de baixa médica desde o
sucedido, ainda não foi ouvido.
(Atualizado às
09h55 com uma correção: Cláudia Simões foi ouvida pelo Ministério Público e não
por um juiz de instrução)
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