OPINIÃO
Angola é nossa!
Os últimos anos
revelaram numerosas situações em que foi sempre Angola a pôr condições e
Portugal a ceder.
ANTÓNIO BARRETO
26 de Janeiro de
2020, 7:52
A onda de
corrupção comprovada, alegada ou suposta é enorme, conhecida há anos e
pressentida há décadas. Bancos, seguradoras, exportadoras, agências de comunicação,
consultoras e escritórios de advogados instalaram-se confortavelmente na
charneira entre Angola e Portugal. Estabeleceram-se ainda mais comodamente no
universo das relações ilícitas entre os dois países. E navegaram na onda dos
refúgios dourados: os paraísos fiscais, os infernos da droga, os campos de
petróleo e as lapidadoras de diamantes. Durante anos, em Portugal e alhures,
floresceram os negócios à sombra de Estados de direito associados a ditaduras
de desenvolvimento e a democracias de acumulação primitiva. Os Governos de
Portugal e Angola organizaram a galáxia. As elites dos dois países
aproveitaram.
Alguma coisa
correu mal. Este universo suspeito ou, mais do que isso, ilícito, deu nas
vistas e foi posto no pelourinho. Não pelo Estado de direito, mas simplesmente
porque, num dos parceiros, em Angola, o poder mudou. Ainda não sabemos se mudou
para melhor ou apenas porque o poder mudou. Mas já sabemos que o que vem aí não
é a brincar. Preparemo-nos para as consequências.
O que esta
senhora fez foi enorme. Conquistou o mais que era possível: empresas, bancos,
técnicos, advogados, ministros, secretários de Estado, deputados e jornalistas.
Deu trabalho. Distribuiu dividendos. Deu acções. Fez transferências. Pagou.
Ficou a dever. Emprestou. Pediu emprestado. Investiu. Comprou acções, empresas,
administradores, técnicos, corretores e advogados. Teve a seus pés quem quis e
quem queria estar por ali.
Fez tudo sozinha?
Era só ela própria? Sabia tudo? Decidiu na sua solidão sábia e visionária? Fez
sozinha aquela fortuna colossal? Transferiu-a sozinha para Portugal e para toda
a malha de offshore e paraísos deste mundo e do outro? Certamente não. Nem em
Angola, nem em Portugal. Nem, aliás, na Rússia ou nos Emiratos. Comprou quem
estava à venda, depois de verificar que havia muita oferta neste mercado. Fez
uma rede e passeou-se nela. Fez presas e alimentou-se delas. Teve a indiferença
de quem não queria levantar ondas e a complacência de quem não queria
prejudicar as boas relações entre dois países. Teve surdos-mudos e paralíticos
que assim julgavam defender a razão de Estado. Soube encontrar, em Portugal,
parceiros à altura, empreendedores, advogados, ministros e banqueiros
disponíveis para uma verdadeira aventura de circulação e reciclagem de
fortunas.
Antes do fim das
tempestades, que ainda está muito longe, já se podem ir fazendo balanços e
retirar lições. Verdade ou ficção política, uma coisa é certa: Portugal precisa
de Angola, mas Angola não precisa de Portugal.
Os angolanos
precisam de Portugal para descansar, investir, guardar dinheiro, transferir
capitais, fazer trânsito de pessoas, bens e mercadorias. Tudo que podem fazer
noutro país qualquer. Se não puderem fazer aqui, às suas condições, fazem
noutro sítio. É menos confortável, mas não custa nada mudar! Essa é a sua
independência.
Os portugueses
precisam de Angola para vender mercadoria, prestar serviços, abrir as portas da
Avenida de Roma, vender apartamentos de luxo, fazer obra pública e ganhar
empreitadas de construção. O que os portugueses fazem em Angola, não fazem
noutro sítio. Essa é a sua dependência.
A independência
angolana e a dependência portuguesa podem não ser exactamente o que parece ou o
que aqui se diz. Talvez não sejam. Mas é como se fossem. Isto é, governantes e
gente de negócio de Angola e de Portugal comportam-se como se tudo o que acima
vem fosse verdade.
Os últimos anos
revelaram numerosas situações em que foi sempre Angola a pôr condições e
Portugal a ceder. Os calendários diplomáticos e as agendas políticas entre os
dois países estiveram à mercê dos interesses de Angola e dos caprichos dos seus
dirigentes, nunca ou raramente dos de Portugal. As visitas de políticos, as
reuniões entre Governos, a circulação de capitais e a reciprocidade das
relações judiciais estiveram sempre dependentes das exigências angolanas.
O ambiente em
Angola é propício a fazer a vida difícil aos portugueses. Estes são brancos e
foram colonialistas, duas características em crise. Tanto lá, como cá, aliás.
O ambiente em
Portugal é propício a fazer a vida fácil aos angolanos. São ricos e têm
dinheiro para gastar. Os portugueses precisam dos angolanos para vender os seus
produtos de luxo. Sem eles, a Avenida da Liberdade não seria o que é.
Os angolanos têm
em Portugal inúmeras vantagens, a língua, famílias, proximidade histórica e
conhecimentos. Para os angolanos, estar em Lisboa é fácil. Mais fácil do que
para os portugueses estar em Angola. Quanto ao racismo, existe nos dois lados,
não é por aí que temos desigualdade.
Cunhas, luvas e
contrabando: é desgraçadamente o dia-a-dia contemporâneo. Locais de quarentena,
instituições de reciclagem, redes de branqueamento e veículos de lavagem fazem
parte do mundo de hoje, infelizmente. É, todavia, verdade que, para contrariar
esse mundo, muito se pode fazer com a lei, as inspecções, a fiscalidade, a
vigilância, a supervisão e a regulação. Em muitos países do mundo se vai
fazendo. Em Portugal, muito pouco.
Os políticos, as
instituições, os tribunais, as leis, as polícias e os grupos económicos
portugueses não parecem estar à altura da tempestade que se prepara nem do
furacão que já começou.
Vai haver
problemas? Sim. Com os bancos, as empresas, as dívidas, os contratos e os
investimentos? Sim. Talvez não sejam muito graves. Talvez. Mas o pior é a
certeza de que não temos Governo, polícias, juízes e bancos à altura. Nem
tivemos durante as últimas décadas.
Por cá, já não se
diz “Angola é nossa!”, um atrevido slogan inventado no tempo de Salazar e da
guerra. Fazia parte deste género de afirmações que se fazem quando nos queremos
enganar a nós próprios.
Há cinquenta
anos, íamos perder a colónia? Sim. Então inventámos um hino e um slogan a dizer
o contrário. Será que em Angola, hoje, alguém diz “Portugal é nosso!”?
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