ENTREVISTA
“Em Portugal há
espaço para a ferrovia crescer, começando pelas coisas simples”
Francisco
Furtado, autor de A Ferrovia em Portugal – Passado, Presente e Futuro, explica
como o país se deixou deslumbrar pelas auto-estradas em detrimento do
caminho-de-ferro e defende que se deve voltar aos carris através de uma
política de pequenos passos.
Carlos Cipriano
27 de Janeiro de 2020, 7:34
Francisco
Furtado: "A operação e a infraestrutura devem ser pensadas como um
todo"
Afasta o
investimento segregado na alta velocidade e prefere uma linha do Norte
preparada para altas prestações que vá da Galiza ao Algarve. Diz que a bitola
não é um problema e sublinha que, na ferrovia, a infra-estrutura, o material
circulante e a operação são um todo. A revitalização do sector passa também
pela revitalização da CP enquanto empresa pública estruturante do
caminho-de-ferro. Entrevista a Francisco Furtado, que acaba de lançar o livro A
Ferrovia em Portugal – Passado, Presente e Futuro (edição Fundação Francisco
Manuel dos Santos).
Refere no seu
livro que no séc. XIX a linha Lisboa-Badajoz foi concluída 14 anos antes da
linha Lisboa-Porto, demonstrando a estratégia da época em chegar primeiro a
Espanha do que ligar Portugal pelo novo modo de transporte. No séc. XXI devemos
aprender com o passado e privilegiar as ligações internas ou devemos manter a
aposta para Espanha?
Acho que isso é
uma grande lição da nossa História ferroviária. O tráfego de passageiros e de
mercadorias sempre foi fundamentalmente interno. Essa primeira linha para
Badajoz foi a primeira, mas passados uns anos havia já três ou quatro ligações
para Espanha antes de existir em Portugal uma ligação entre o Norte e o Sul,
que só seria feita em 1904 com o ramal de Vendas Novas. E ainda hoje só temos
duas ligações entre o Norte e o Sul: a linha de Vendas Novas e a travessia da
ponte 25 de Abril. Portanto, ao pensarmos em serviços de alta velocidade ou
altas prestações, não há qualquer dúvida de que a ligação entre Lisboa e o
Porto é fundamental, até porque apanha cidades intermédias importantes, como
Coimbra e Aveiro. Mas deverá depois estender-se para norte até à Galiza e para
sul até Faro.
Mas a ligação
Lisboa-Madrid era a prioridade da Rave.
Quando voltei
para a academia havia lá no doutoramento muitas discussões em torno da alta
velocidade. Na parte dos Transportes, a alta velocidade era o tema mais sexy e
com mais glamour e vários colegas optaram por ele. Mas eu achava que isso era
um projecto desajustado da realidade do país e que não iria haver recursos para
isso. Acabei por focar o meu doutoramento na questão das mercadorias. Na altura
estava prevista na alta velocidade entre Lisboa e Badajoz uma linha paralela
para mercadorias. E eu dizia: “Olhem, o que vai acontecer é que só vão fazer a
linha para mercadorias”...
Foi premonitório.
(risos) Nisso é
verdade. Enfim, todos falhamos, todos fazemos análises erradas... O importante
é que vai ser feita uma linha de mercadorias, se bem que com a possibilidade de
também circularem comboios de passageiros.
Não sou a favor
de criar uma rede ferroviária segregada para alta velocidade e para rede
convencional
Diz no seu livro
que a experiência da França e de Espanha com a alta velocidade criou redes de
primeira e redes de segunda. Como se pode fazer para que isso não aconteça em
Portugal? Articulando ambas?
Sem dúvida que é
através da articulação entre ambas. Dizia-se que, ao fazer uma rede de alta
velocidade, libertava-se capacidade nas outras linhas para outros tráfegos. Ora
o que se verificou em Espanha e em França foi que todo o esforço dos
operadores, do gestor de infra-estruturas e de todo o ecossistema que anda à
volta da ferrovia foi direccionado para essas linhas, gerando essa dicotomia.
Para não acontecer isso em Portugal, acho que a rede deverá ser o mais
multiusos e o mais integrada possível. No caso da linha do Norte é correcto
construírem variantes para segregar tráfegos, melhorar os tempos de viagens e
aumentar a capacidade. Agora criar uma rede diferente, segregada para alta
velocidade e para rede convencional, não sou a favor.
Refere que na
Europa os países com maior peso no transporte ferroviário de passageiros são a
Suíça, a Holanda e a Áustria, onde a alta velocidade não tem primazia, mas a
rede é densa e os serviços são frequentes. Portugal tem uma dimensão idêntica a
estes três países, mas só isso. Irá a tempo?
Bom, na Holanda o
comboio tem uma rede tão densa que é quase um metro nacional... Portugal não
vai conseguir chegar lá em cinco ou dez anos. Na Suíça a repartição modal de
passageiros na ferrovia é de 20% e em Portugal é de 4%. Mas deve-se começar por
fazer as coisas simples, como tem dito o presidente da CP: garantir que os
comboios são suficientes, têm condições, não são suprimidos. Depois há que
pensar na linha do Norte e na sua extensão a uma autêntica fachada atlântica. E
também noutras linhas, como a do Vouga, que valia a pena modernizar, a aposta
na linha do Tâmega até Amarante, a linha do Vale do Sousa para Felgueiras e
Paços de Ferreira. Ou seja, há espaço para a ferrovia crescer, começando pelas
coisas simples.
Há medidas mais
eficazes para alavancar o transporte de mercadorias do que resolver a questão
da bitola
A questão da
bitola é um problema?
A bitola é uma
falsa questão. Obviamente que seria benéfico que Portugal e Espanha tivessem
uma bitola UIC igual à que existe na maioria dos países europeus. Mas essa não
é a realidade que temos. E, ao querermos resolver isso por troços, construindo
secções em bitola europeia, estamos é a importar o problema da
interoperabilidade para o seio da própria Península Ibérica, criando um
conjunto de dificuldades operacionais ao nível da aquisição e gestão do
material circulante, que iriam provocar muito mais disrupção e dificuldades do
que as vantagens que trariam. Até porque – e agora falando de mercadorias –, se
o objectivo é fomentar o tráfego de mercadorias, a realidade já demonstrou que
existem medidas mais eficazes para alavancar o transporte de carga dentro da
Península do que resolver a questão da bitola.
Que medidas?
Portugal tem uma
ferrovia de mercadorias muito mais dinâmica do que Espanha porque tem
articulado o caminho-de-ferro com os portos e isso faz muito mais sentido do
que a questão da bitola. Deve-se aumentar a capacidade e a produtividade dos
próprios comboios, que deveriam ter 750 metros de comprimento, e facilitar as
manobras nos próprios terminais portuários.
Portugal seguiu
diligentemente (a expressão é sua no seu livro) as directrizes europeias de
separar as infra-estruturas das operações, coisa que não foi tão diligentemente
seguida pela França e pela Alemanha. Vinte anos depois, como vê esta separação
entre a roda e o carril?
Na ferrovia, mais
do que em qualquer dos outros modos de transporte, existe uma profunda
articulação entre a infra-estrutura, o material circulante, o serviço operacional
e os serviços oferecidos. Isto é um todo. E é importante que esta mensagem
passe para a opinião pública e para os decisores, porque não foi essa a
trajectória seguida na Europa...
Nos Estados
Unidos, a separação é considerada um anátema.
Exactamente. Lá
não querem nem ouvir falar nisso. A American Association of Railways, sempre
que se fala em qualquer coisa que possa separar a infra-estrutura da operação,
fica com os cabelos em pé. No próprio Japão houve também uma reforma, mas não
separaram verticalmente o sector – o que fizeram foi dividir por regiões. A
Suíça, que não faz parte da União Europeia e não foi obrigada a seguir as
directivas comunitárias, tem o sector verticalmente integrado. Começa hoje a
haver um consenso, mesmo entre os académicos e os experts, que o conjunto de
reformas que foi feito na Europa não teve os resultados que se esperavam. Em
Portugal, é preciso que a operação e a infra-estrutura sejam pensadas como um
todo. E tem de haver quem faça isso. Acho que há um momento de inflexão na
forma como o país e os altos responsáveis olham para a ferrovia. Vejo com bons
olhos sinais que têm vindo a ser dados, desde a implementação do plano Ferrovia
2020, a aquisição de novos comboios, a contratação do serviço público entre o Estado
e a CP, a reabertura das oficinas de Guifões, as afirmações do presidente da CP
em querer estabilizar a oferta.
Na Europa, onde o
sector funciona bem, existe sempre uma grande companhia pública que estrutura o
sector e que oferece a maior parte dos serviços
Escreveu que
neste sector “há muitas barreiras à entrada e não se deve esperar que a
liberalização da ferrovia produza impactos à escala do sucedido nos outros
sectores”. Tendo em conta esta desconfiança no mercado, tem razão o ministro
Pedro Nuno Santos em querer pegar na CP e fazer dela uma grande empresa?
Claro que sim. Se
olharmos para o resto da Europa onde o sector funciona bem, existe sempre uma
grande companhia pública que estrutura o sector e que oferece a maior parte dos
serviços. É o que acontece na Suíça, na Áustria, na Holanda, na Alemanha... Ou
seja, mesmo quando existe espaço para os privados (que os há), a estrutura é
fornecida por um grande operador público. Por isso, em Portugal, a
revitalização da ferrovia, no caso dos passageiros, passa muito pela
revitalização da CP.
Portugal não só
separou a roda do carril como depois juntou o carril à rodovia. É um modelo bem
conseguido?
Se a ideia é
revitalizar o sector, faz sentido que exista um gestor de infra-estruturas
próprio dedicado à ferrovia, até para lhe dar alguma prioridade, visibilidade e
peso. Mas também acho que há vantagens em ter um gestor de infra-estruturas
integrado, porque a questão da articulação entre o sector ferroviário e outros
modos de transporte é fundamental. Há, no entanto, que fazer um balanço do que
foram estes cinco anos.
Portugal é um dos
poucos países europeus onde o transporte ferroviário de mercadorias é todo
feito por companhias privadas. Isso é bom ou mau?
Por um lado é um
sinal de dinamismo. Serem duas empresas privadas [Medway e Takargo] que são
capazes de ter receitas operacionais acima das suas despesas e manter-se em
actividade e expandi-la é um sinal muitíssimo saudável. Mas também não tenho
nada contra a que haja operação pública de mercadorias.
Duas empresas
serão suficientes? Haverá mercado para mais?
Dada a dimensão
do nosso mercado, o facto de haver capacidade para sustentar duas empresas já é
excelente. Não acho que seja um drama não haver mais. Mais do que isso pode
provocar um perigo de canibalização. Até porque isto tem de ter economias de
escala. Onde talvez faça sentido é haver pequenas empresas para operarem dentro
dos terminais que façam a movimentação da carga.
O que é
necessário para que haja uma quota modal mais favorável ao ambiente, ou seja,
como pôr mais pessoas e mais carga nos carris em detrimento das estradas?
Isso é uma
questão central, mas é politicamente muito complicada. A quota modal do tráfego
de trânsito de mercadorias ferroviário na Suíça é de 70% e isso deve-se ao alto
investimento na ferrovia para absorver esse tráfego, a par da introdução de
portagens muito penalizadoras sobre a rodovia. Estas duas coisas têm de ir de
par em par. Mas a Suíça fez isso porque existiu um grande consenso nacional em
torno da matéria e uma vontade de penalizar camiões em trânsito de e para
países terceiros (por exemplo, da Itália para a Alemanha). Pelo contrário, em
França, há uns anos, tentou-se introduzir uma portagem verde sobre os camiões,
que levou à revolta dos barretes vermelhos, que incendiaram os pórticos das
portagens e a medida foi congelada. Nos Estados Unidos, onde o sector das
mercadorias tem uma enorme vitalidade, não há nenhuma penalização sobre a
rodovia. Mas lá as características geográficas, o facto de a rede ser
praticamente toda dedicada às mercadorias e os níveis de produtividade (têm
comboios de três quilómetros) tornam a ferrovia competitiva. Ora, para que
também seja competitiva na Europa, são necessários investimentos naquilo que é
mais óbvio – a articulação da ferrovia com os portos, criação de legislação
para comboios de 750 metros, facilitar a criação de terminais multimodais e
medidas que favoreçam a produtividade do sector. Ou seja, primeiro tem de haver
medidas positivas na ferrovia para que, forma gradual e suave, se comece com a
penalização da rodovia.
É preciso ter
consciência da razia e da forma como a Engenharia Civil foi dizimada neste país
na sequência da crise
Na década de
2010, Portugal gastou 1000 milhões de euros por ano em PPP rodoviárias. Agora,
com o Ferrovia 2020, propôs-se gastar 2000 milhões em quatro anos, ou seja, 500
milhões por ano (e mesmo assim não conseguiu porque os projectos se atrasaram).
Há aqui alguma coisa de errado?
Claro. Além de
Portugal ser o único país da Europa com mais auto-estradas do que linhas de
caminho-de-ferro, isso é mais um dado que mostra o desequilíbrio de
investimento entre ferrovia e rodovia. E atenção que no Ferrovia 2020, dos 2000
milhões, só 1000 é que são do Estado português porque o resto é financiamento
comunitário. Na prática são só 250 milhões por ano.
É claro que nos
anos 80 Portugal precisava muito de modernizar a sua rede viária. Mas hoje está
no top-5 dos países com mais quilómetros de auto-estrada por habitante, o que é
completamente desajustado.
Mas não me
surpreende o atraso no Ferrovia 2020. Todos os meus colegas do curso de
Engenharia Civil estão no estrangeiro ou mudaram de actividade. É preciso ter
consciência da razia e da forma como a Engenharia Civil foi dizimada neste país
na sequência da crise. Isso explica os atrasos do Ferrovia 2020, mas não é o
único factor. Acho que houve também um excesso de ambição de, em quatro anos,
fazer aquilo tudo.
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