segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

“Em Portugal há espaço para a ferrovia crescer, começando pelas coisas simples”



ENTREVISTA
“Em Portugal há espaço para a ferrovia crescer, começando pelas coisas simples”

Francisco Furtado, autor de A Ferrovia em Portugal – Passado, Presente e Futuro, explica como o país se deixou deslumbrar pelas auto-estradas em detrimento do caminho-de-ferro e defende que se deve voltar aos carris através de uma política de pequenos passos.

Carlos Cipriano 27 de Janeiro de 2020, 7:34

Francisco Furtado: "A operação e a infraestrutura devem ser pensadas como um todo"

Afasta o investimento segregado na alta velocidade e prefere uma linha do Norte preparada para altas prestações que vá da Galiza ao Algarve. Diz que a bitola não é um problema e sublinha que, na ferrovia, a infra-estrutura, o material circulante e a operação são um todo. A revitalização do sector passa também pela revitalização da CP enquanto empresa pública estruturante do caminho-de-ferro. Entrevista a Francisco Furtado, que acaba de lançar o livro A Ferrovia em Portugal – Passado, Presente e Futuro (edição Fundação Francisco Manuel dos Santos).

Refere no seu livro que no séc. XIX a linha Lisboa-Badajoz foi concluída 14 anos antes da linha Lisboa-Porto, demonstrando a estratégia da época em chegar primeiro a Espanha do que ligar Portugal pelo novo modo de transporte. No séc. XXI devemos aprender com o passado e privilegiar as ligações internas ou devemos manter a aposta para Espanha?
Acho que isso é uma grande lição da nossa História ferroviária. O tráfego de passageiros e de mercadorias sempre foi fundamentalmente interno. Essa primeira linha para Badajoz foi a primeira, mas passados uns anos havia já três ou quatro ligações para Espanha antes de existir em Portugal uma ligação entre o Norte e o Sul, que só seria feita em 1904 com o ramal de Vendas Novas. E ainda hoje só temos duas ligações entre o Norte e o Sul: a linha de Vendas Novas e a travessia da ponte 25 de Abril. Portanto, ao pensarmos em serviços de alta velocidade ou altas prestações, não há qualquer dúvida de que a ligação entre Lisboa e o Porto é fundamental, até porque apanha cidades intermédias importantes, como Coimbra e Aveiro. Mas deverá depois estender-se para norte até à Galiza e para sul até Faro.

Mas a ligação Lisboa-Madrid era a prioridade da Rave.
Quando voltei para a academia havia lá no doutoramento muitas discussões em torno da alta velocidade. Na parte dos Transportes, a alta velocidade era o tema mais sexy e com mais glamour e vários colegas optaram por ele. Mas eu achava que isso era um projecto desajustado da realidade do país e que não iria haver recursos para isso. Acabei por focar o meu doutoramento na questão das mercadorias. Na altura estava prevista na alta velocidade entre Lisboa e Badajoz uma linha paralela para mercadorias. E eu dizia: “Olhem, o que vai acontecer é que só vão fazer a linha para mercadorias”...

Foi premonitório.
(risos) Nisso é verdade. Enfim, todos falhamos, todos fazemos análises erradas... O importante é que vai ser feita uma linha de mercadorias, se bem que com a possibilidade de também circularem comboios de passageiros.

Não sou a favor de criar uma rede ferroviária segregada para alta velocidade e para rede convencional
Diz no seu livro que a experiência da França e de Espanha com a alta velocidade criou redes de primeira e redes de segunda. Como se pode fazer para que isso não aconteça em Portugal? Articulando ambas?
Sem dúvida que é através da articulação entre ambas. Dizia-se que, ao fazer uma rede de alta velocidade, libertava-se capacidade nas outras linhas para outros tráfegos. Ora o que se verificou em Espanha e em França foi que todo o esforço dos operadores, do gestor de infra-estruturas e de todo o ecossistema que anda à volta da ferrovia foi direccionado para essas linhas, gerando essa dicotomia. Para não acontecer isso em Portugal, acho que a rede deverá ser o mais multiusos e o mais integrada possível. No caso da linha do Norte é correcto construírem variantes para segregar tráfegos, melhorar os tempos de viagens e aumentar a capacidade. Agora criar uma rede diferente, segregada para alta velocidade e para rede convencional, não sou a favor.


Refere que na Europa os países com maior peso no transporte ferroviário de passageiros são a Suíça, a Holanda e a Áustria, onde a alta velocidade não tem primazia, mas a rede é densa e os serviços são frequentes. Portugal tem uma dimensão idêntica a estes três países, mas só isso. Irá a tempo?
Bom, na Holanda o comboio tem uma rede tão densa que é quase um metro nacional... Portugal não vai conseguir chegar lá em cinco ou dez anos. Na Suíça a repartição modal de passageiros na ferrovia é de 20% e em Portugal é de 4%. Mas deve-se começar por fazer as coisas simples, como tem dito o presidente da CP: garantir que os comboios são suficientes, têm condições, não são suprimidos. Depois há que pensar na linha do Norte e na sua extensão a uma autêntica fachada atlântica. E também noutras linhas, como a do Vouga, que valia a pena modernizar, a aposta na linha do Tâmega até Amarante, a linha do Vale do Sousa para Felgueiras e Paços de Ferreira. Ou seja, há espaço para a ferrovia crescer, começando pelas coisas simples.

Há medidas mais eficazes para alavancar o transporte de mercadorias do que resolver a questão da bitola
A questão da bitola é um problema?
A bitola é uma falsa questão. Obviamente que seria benéfico que Portugal e Espanha tivessem uma bitola UIC igual à que existe na maioria dos países europeus. Mas essa não é a realidade que temos. E, ao querermos resolver isso por troços, construindo secções em bitola europeia, estamos é a importar o problema da interoperabilidade para o seio da própria Península Ibérica, criando um conjunto de dificuldades operacionais ao nível da aquisição e gestão do material circulante, que iriam provocar muito mais disrupção e dificuldades do que as vantagens que trariam. Até porque – e agora falando de mercadorias –, se o objectivo é fomentar o tráfego de mercadorias, a realidade já demonstrou que existem medidas mais eficazes para alavancar o transporte de carga dentro da Península do que resolver a questão da bitola.

Que medidas?
Portugal tem uma ferrovia de mercadorias muito mais dinâmica do que Espanha porque tem articulado o caminho-de-ferro com os portos e isso faz muito mais sentido do que a questão da bitola. Deve-se aumentar a capacidade e a produtividade dos próprios comboios, que deveriam ter 750 metros de comprimento, e facilitar as manobras nos próprios terminais portuários.

Portugal seguiu diligentemente (a expressão é sua no seu livro) as directrizes europeias de separar as infra-estruturas das operações, coisa que não foi tão diligentemente seguida pela França e pela Alemanha. Vinte anos depois, como vê esta separação entre a roda e o carril?
Na ferrovia, mais do que em qualquer dos outros modos de transporte, existe uma profunda articulação entre a infra-estrutura, o material circulante, o serviço operacional e os serviços oferecidos. Isto é um todo. E é importante que esta mensagem passe para a opinião pública e para os decisores, porque não foi essa a trajectória seguida na Europa...

Nos Estados Unidos, a separação é considerada um anátema.
Exactamente. Lá não querem nem ouvir falar nisso. A American Association of Railways, sempre que se fala em qualquer coisa que possa separar a infra-estrutura da operação, fica com os cabelos em pé. No próprio Japão houve também uma reforma, mas não separaram verticalmente o sector – o que fizeram foi dividir por regiões. A Suíça, que não faz parte da União Europeia e não foi obrigada a seguir as directivas comunitárias, tem o sector verticalmente integrado. Começa hoje a haver um consenso, mesmo entre os académicos e os experts, que o conjunto de reformas que foi feito na Europa não teve os resultados que se esperavam. Em Portugal, é preciso que a operação e a infra-estrutura sejam pensadas como um todo. E tem de haver quem faça isso. Acho que há um momento de inflexão na forma como o país e os altos responsáveis olham para a ferrovia. Vejo com bons olhos sinais que têm vindo a ser dados, desde a implementação do plano Ferrovia 2020, a aquisição de novos comboios, a contratação do serviço público entre o Estado e a CP, a reabertura das oficinas de Guifões, as afirmações do presidente da CP em querer estabilizar a oferta.

Na Europa, onde o sector funciona bem, existe sempre uma grande companhia pública que estrutura o sector e que oferece a maior parte dos serviços
Escreveu que neste sector “há muitas barreiras à entrada e não se deve esperar que a liberalização da ferrovia produza impactos à escala do sucedido nos outros sectores”. Tendo em conta esta desconfiança no mercado, tem razão o ministro Pedro Nuno Santos em querer pegar na CP e fazer dela uma grande empresa?
Claro que sim. Se olharmos para o resto da Europa onde o sector funciona bem, existe sempre uma grande companhia pública que estrutura o sector e que oferece a maior parte dos serviços. É o que acontece na Suíça, na Áustria, na Holanda, na Alemanha... Ou seja, mesmo quando existe espaço para os privados (que os há), a estrutura é fornecida por um grande operador público. Por isso, em Portugal, a revitalização da ferrovia, no caso dos passageiros, passa muito pela revitalização da CP.

Portugal não só separou a roda do carril como depois juntou o carril à rodovia. É um modelo bem conseguido?
Se a ideia é revitalizar o sector, faz sentido que exista um gestor de infra-estruturas próprio dedicado à ferrovia, até para lhe dar alguma prioridade, visibilidade e peso. Mas também acho que há vantagens em ter um gestor de infra-estruturas integrado, porque a questão da articulação entre o sector ferroviário e outros modos de transporte é fundamental. Há, no entanto, que fazer um balanço do que foram estes cinco anos.

Portugal é um dos poucos países europeus onde o transporte ferroviário de mercadorias é todo feito por companhias privadas. Isso é bom ou mau?
Por um lado é um sinal de dinamismo. Serem duas empresas privadas [Medway e Takargo] que são capazes de ter receitas operacionais acima das suas despesas e manter-se em actividade e expandi-la é um sinal muitíssimo saudável. Mas também não tenho nada contra a que haja operação pública de mercadorias.

Duas empresas serão suficientes? Haverá mercado para mais?
Dada a dimensão do nosso mercado, o facto de haver capacidade para sustentar duas empresas já é excelente. Não acho que seja um drama não haver mais. Mais do que isso pode provocar um perigo de canibalização. Até porque isto tem de ter economias de escala. Onde talvez faça sentido é haver pequenas empresas para operarem dentro dos terminais que façam a movimentação da carga.

O que é necessário para que haja uma quota modal mais favorável ao ambiente, ou seja, como pôr mais pessoas e mais carga nos carris em detrimento das estradas?
Isso é uma questão central, mas é politicamente muito complicada. A quota modal do tráfego de trânsito de mercadorias ferroviário na Suíça é de 70% e isso deve-se ao alto investimento na ferrovia para absorver esse tráfego, a par da introdução de portagens muito penalizadoras sobre a rodovia. Estas duas coisas têm de ir de par em par. Mas a Suíça fez isso porque existiu um grande consenso nacional em torno da matéria e uma vontade de penalizar camiões em trânsito de e para países terceiros (por exemplo, da Itália para a Alemanha). Pelo contrário, em França, há uns anos, tentou-se introduzir uma portagem verde sobre os camiões, que levou à revolta dos barretes vermelhos, que incendiaram os pórticos das portagens e a medida foi congelada. Nos Estados Unidos, onde o sector das mercadorias tem uma enorme vitalidade, não há nenhuma penalização sobre a rodovia. Mas lá as características geográficas, o facto de a rede ser praticamente toda dedicada às mercadorias e os níveis de produtividade (têm comboios de três quilómetros) tornam a ferrovia competitiva. Ora, para que também seja competitiva na Europa, são necessários investimentos naquilo que é mais óbvio – a articulação da ferrovia com os portos, criação de legislação para comboios de 750 metros, facilitar a criação de terminais multimodais e medidas que favoreçam a produtividade do sector. Ou seja, primeiro tem de haver medidas positivas na ferrovia para que, forma gradual e suave, se comece com a penalização da rodovia.

É preciso ter consciência da razia e da forma como a Engenharia Civil foi dizimada neste país na sequência da crise
Na década de 2010, Portugal gastou 1000 milhões de euros por ano em PPP rodoviárias. Agora, com o Ferrovia 2020, propôs-se gastar 2000 milhões em quatro anos, ou seja, 500 milhões por ano (e mesmo assim não conseguiu porque os projectos se atrasaram). Há aqui alguma coisa de errado?
Claro. Além de Portugal ser o único país da Europa com mais auto-estradas do que linhas de caminho-de-ferro, isso é mais um dado que mostra o desequilíbrio de investimento entre ferrovia e rodovia. E atenção que no Ferrovia 2020, dos 2000 milhões, só 1000 é que são do Estado português porque o resto é financiamento comunitário. Na prática são só 250 milhões por ano.

É claro que nos anos 80 Portugal precisava muito de modernizar a sua rede viária. Mas hoje está no top-5 dos países com mais quilómetros de auto-estrada por habitante, o que é completamente desajustado.

Mas não me surpreende o atraso no Ferrovia 2020. Todos os meus colegas do curso de Engenharia Civil estão no estrangeiro ou mudaram de actividade. É preciso ter consciência da razia e da forma como a Engenharia Civil foi dizimada neste país na sequência da crise. Isso explica os atrasos do Ferrovia 2020, mas não é o único factor. Acho que houve também um excesso de ambição de, em quatro anos, fazer aquilo tudo.


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