ANÁLISE
A Europa entre
dois mundos
Resta saber como
conseguirá a Europa transformar a sua quase total ausência de estratégia para o
Médio Oriente em capacidade para influenciar os acontecimentos.
TERESA DE SOUSA
12 de Janeiro de
2020, 5:55
1. Que a Europa
não está preparada para o mundo que vem aí, já sabemos. É uma grande potência
civil, com um peso económico ainda incontornável, que lhe dá os meios para
exercer um razoável softpower. Não é uma potência militar, com uma estratégia
de segurança comum para fazer valer os seus interesses num mundo que se rege
cada vez mais pela lei do mais forte e cada vez menos pelo império da lei.
A crise
internacional desencadeada no segundo dia do ano pela eliminação do general
iraniano Qassem Soleimani por ordem de Donald Trump é o primeiro grande teste
que enfrenta depois da entrada em funções da nova Comissão e dos outros órgãos
institucionais da União. Mas também o prenúncio de tempos que não serão fáceis.
A maioria dos
países europeus tem, por via da NATO, tropas no Iraque, dedicadas sobretudo a
funções de treino e à contenção do Daesh, que se tornaram imediatamente um alvo
de retaliações do regime de Teerão. A generalização dos conflitos no Médio
Oriente, certamente a região mais instável do mundo, afecta directamente a
Europa – quanto mais não seja pela proximidade geográfica. Se o preço do
petróleo disparar, pagará a factura, ao contrário dos EUA. As guerras implicam
refugiados, como aconteceu com a Síria.
Ursula von der
Leyen prometeu uma Comissão “geopolítica”, o que quer dizer que terá como linha
condutora a relação da União Europeia com o mundo. Talvez não antecipasse que
os primeiros testes viriam com os primeiros dias do ano. No Irão, no Iraque ou
na Líbia.
2. Obama foi o
primeiro Presidente americano a considerar que o estado de permanente conflito
no Médio Oriente consumia demasiados recursos sem obter resultados
proporcionais ou contribuir para a defesa dos interesses estratégicos
americanos, que se jogam cada vez mais no Pacífico. O anterior Presidente
mostrou-se por diversas vezes relutante em empenhar recursos militares na
região. Fez o possível e o impossível para não se envolver na guerra na Síria,
apesar das suas trágicas consequências humanitárias e da intervenção directa de
Moscovo. Mas conseguiu levar a bom porto uma “impossível” negociação com o Irão
para impedir que o regime construísse a bomba nuclear.
O acordo,
assinado em Viena em 2015, teve o apoio dos membros permanentes do Conselho de
Segurança da ONU mais a Alemanha. Incluía a possibilidade de enriquecimento de
urânio para fins civis, mas não militares. Garantia a inspecção in loco da
Agência Internacional de Energia Atómica. A contrapartida era o progressivo
levantamento das sanções económicas – o que valia muito para o regime de
Teerão, a braços com uma situação interna cada vez mais difícil, graças às
crescentes dificuldades da economia. Obama beneficiou da vitória da ala mais
moderada do regime teocrático, ela própria beneficiária do acordo nuclear. O
Presidente Hassan Rouhani foi reeleito com a esmagadora maioria dos votos da
classe média urbana em 2017. Rompia-se o ciclo do “quanto pior melhor”,
desenvolvida pelos estrategos da Administração Bush.
O Irão não
abandonou a sua política de desestabilização regional, nem as acções mortíferas
da vasta rede de milícias xiitas que o general Soleimani criou e orquestrou
para expandir a influência do regime do Iraque à Síria, passando pelo Líbano ou
pelo Iémen. Mas o risco maior para a segurança mundial, que seria a posse de
armas nucleares, foi evitado. Esse seria o cenário de verdadeiro pesadelo para
os EUA e para a Europa: um Irão nuclear levaria inevitavelmente à corrida à
bomba por parte dos outros países que lhe disputam a hegemonia regional, entre
eles a Arábia Saudita e a Turquia. Garantir que isso não sucederia era condição
sine qua non para os EUA poderem desinvestir parte dos seus recursos no Médio
Oriente.
3. Para os
europeus, o acordo nuclear era de fundamental importância para a sua segurança.
O levantamento das sanções levou as grandes empresas europeias a correr para o
Irão, tirando partido de um mercado onde faltava tudo. Para Teerão, o
investimento europeu era uma bênção, permitindo-lhe aliviar as fortes tensões
sociais provocadas pelas dificuldades económicas. Tudo regressou à estaca zero
quando, em Maio de 2018, Donald Trump anunciou o abandono unilateral do acordo.
Apesar dos esforços europeus para mantê-lo vivo, o golpe corria o risco de ser
fatal. Não apenas porque, aos olhos de Teerão, os EUA eram os únicos em
condições de garantir que não haveria tentativa de “mudança de regime”, mas
porque a Administração americana, através das chamadas sanções secundárias,
conseguiu rapidamente dissuadir as grandes empresas europeias a manter os seus
investimentos no Irão. Quem optasse por esse caminho perderia o acesso ao
mercado americano A escolha era óbvia.
As dificuldades
económicas regressaram, a agressividade externa do regime duplicou, também
alimentada pelo facto de Trump ter eleito a Arábia Saudita (para além de
Israel) como o seu aliado privilegiado na região, tomando claramente partido na
“guerra” religiosa entre xiitas e sunitas que está por trás da ambição
iraniana. Aliás, quase todas as acções do Presidente americano na região
tiveram um efeito desestabilizador inequívoco. O anúncio inesperado da saída
das tropas americanas da Síria, deixando os curdos à sua sorte, depois de terem
sido o seu principal apoio no combate ao Daesh, abriu as portas à intervenção
militar da Turquia e deixou os aliados europeus sem apoio logístico. Não foi a
Europa que ocupou o espaço deixado pelo desinvestimento da América no Médio
Oriente. Foi a Rússia, que aproveitou a guerra na Síria para aumentar
exponencialmente a sua presença na região, aliando-se ao Irão para defender o
regime torcionário de Damasco.
4. À primeira
vista, os acontecimentos da última semana levar-nos-iam a dizer que, desta vez,
Trump acertou. Eliminou um dos responsáveis mais sinistros do regime de Teerão,
depois de uma escalada de provocações contra a América às quais o Presidente
preferiu não reagir. A prometida “retaliação” veio cinco dias depois com a
“contenção” suficiente para evitar um confronto aberto, que o Irão não quer –
porque não pode – provocar. Trump “encerrou” a crise com um tom igualmente
“contido”, dando por encerrada a escalada e desafiando os aliados europeus a um
maior envolvimento no Médio Oriente. Toda a gente – e em primeiro lugar na
Europa – suspirou de alívio. Nenhum problema ficou resolvido. “Nenhum país
disse que o assassínio de Soleimani era uma boa ideia”, diz Ivo Daalder, citado
pelo Financial Times. Nem Riade nem sequer Telavive.
5. A questão mais
urgente é o que fazer com as ambições nucleares do Irão, que regressam como um
pesadelo que a Europa não se pode dar ao luxo de ignorar. Trump desafiou os
outros subscritores do acordo de 2015 a deixarem-no cair de vez. A questão é:
para fazer o quê? Renegociar? Com que incentivos? Não há negociação se não
houver interesse de parte a parte. O Irão tem de ganhar alguma coisa. Não se vê
que a manobra dissuasora do Presidente americano vá nesse sentido. Washington
já anunciou nova leva de sanções. A estratégia da “pressão máxima” continua.
O que pode fazer
a Europa? As primeiras tomadas de posição europeias estiveram de acordo com o
padrão habitual: apelar à contenção de ambas as partes, tentar salvar in
extremis o acordo nuclear, oferecer-se como intermediária entre as duas partes
em confronto. Resta saber como conseguirá transformar a sua quase total
ausência de estratégia para o Médio Oriente em capacidade para influenciar os
acontecimentos.
Putin prossegue o
seu trabalho de divisão da aliança transatlântica. Em plena crise iraniana,
deslocou-se a Damasco. Angela Merkel preparava-se no sábado para tomar um avião
para Moscovo (e não para Washington) para conversações urgentes com Putin. A
Europa tem outra preocupação fundamental: a eclosão de uma guerra generalizada
na Líbia que, citando o chefe da diplomacia alemã, seria uma outra Síria.
Macron parece disponível para desempenhar o papel de intermediário entre
Washington e Teerão, recolhendo os frutos da última cimeira do G7 em Biarritz,
quando quase convenceu Trump a marcar um encontro com Rouhani. Mas, se há ainda
alguma hipótese para os europeus deixarem de desempenhar o papel de
“observadores”, ela só pode passar por um entendimento entre Paris, Berlim e
Londres. Que talvez ainda seja possível. Veremos o que acontece nos próximos
dias.
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