João Miguel
Tavares
OPINIÃO
O hábito de cair
quando a polícia está por perto
Um novo caso de
violência policial desnecessária no concelho da Amadora, como se já não
houvesse bastantes, e mais uma carrada de lenha para a fogueira do conflito
racial lusitano.
23 de Janeiro de
2020, 6:05
A polícia está
para certos cidadãos como o Outono para as folhas caducas – há uma tendência
natural para caírem à sua aproximação. A polícia portuguesa nunca espanca
ilegalmente ninguém. São os cidadãos que baqueiam, derrocam, desabam,
despencam, esbarrondam-se, esborracham-se, estampam-se, estatelam-se, fenecem,
fraquejam, tombam, tropeçam ou tropicam. A última cidadã a escorregar na
presença de agentes policiais – os bombeiros da Amadora, que acorreram à
esquadra da Venda Nova, garantem ter sido chamados por causa de “uma queda” –
chama-se Cláudia Simões, tem nacionalidade portuguesa e angolana, e a cara
inchada de hematomas porque umas vezes o chão bateu-lhe no lábio, outras vezes
no sobrolho, outras ainda no nariz.
Cláudia Simões,
claro está, diz que não foi o chão que lhe bateu, mas sim um polícia já dentro
do carro, a caminho da esquadra. Há uma boa razão para acreditar nela: uma
testemunha gravou em vídeo o polícia a manietá-la na rua de forma ríspida, mas
ainda com os lábios, os sobrolhos e o nariz no sítio. Ora, custa acreditar que
depois de a cidadã lusoangolana estar já prostrada no chão, e algemada, ela
ainda assim tenha caído várias vezes, até ficar com a cara num trambolho.
Donde, aquilo que temos como mais provável é o costume: um novo caso de violência
policial desnecessária no concelho da Amadora, como se já não houvesse
bastantes, e mais uma carrada de lenha para a fogueira do conflito racial
lusitano, alimentado pela brutalidade e falta de preparação de membros da
polícia.
Convém
acrescentar isto: o que esteve na origem deste caso absurdo foi o facto de a
filha de Cláudia Simões, de oito anos, ter viajado num autocarro sem o passe.
Sendo que o passe, para quem tem menos de 13 anos, é gratuito; e sendo que se isso
me tivesse acontecido a mim e a um filho meu numa paragem de autocarro das
Avenidas Novas, dificilmente teria acabado o dia com as ventas na calçada
portuguesa. De um passe esquecido em casa até um rosto moído na Reboleira foi
um saltinho, feito de incompreensão, ausência de bom-senso e, sim, talvez
racismo – uma cartada que tem sido usada e abusada tantas vezes, quer por
brancos, quer por negros, que é criminoso ser alimentada pela polícia
portuguesa, precisamente a instituição que, pela sua triste história, mais
devia estar empenhada em combatê-la.
Eu percebo quase
tudo. Percebo que a vida de polícia não é fácil. Percebo que os bairros
problemáticos coloquem os agentes com os nervos em franja. Percebo que muitas
vezes se sintam vítimas de injustiça. Percebo que há quem chame erradamente
racismo a investidas contra grupos de delinquentes que por acaso têm uma
determinada cor de pele. Percebo tudo isso. Não percebo que a ausência de um
passe gratuito acabe com uma mulher espancada, com o costumeiro comunicado
desculpabilizador da Direcção Nacional da PSP e com um post deste calibre do
Sindicato Unificado da Polícia de Segurança Pública: “As melhoras ao colega e
espero que as análises sejam todas negativas a doenças graves. Contudo, a
defesa da cidadã está a começar a ser orquestrada pelo ódio-mor de brancos
[Nota: suponho que seja uma referência a Mamadou Ba]. Está tudo bem, não se
passa nada.” De facto, está tudo mal e passa-se alguma coisa de muito errado
quando um sindicato com ligações ao Chega alimenta esta linguagem cavernícola.
Há linhas de decência que não podem ser ultrapassadas, e convinha que a polícia
metesse isso na cabeça, de uma vez por todas.
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