quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

A Europa perdeu a face de Janus que contempla o mundo



BREXIT
A Europa perdeu a face de Janus que contempla o mundo

Quando esta sexta-feira a União se vir amputada do Reino Unido, as consequências irão muito além do tamanho relativo do seu PIB e da sua população ou até do seu exército. Nenhum desafio será mais fácil de enfrentar.

Teresa de Sousa
Teresa de Sousa 30 de Janeiro de 2020, 6:30
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“Em 2050, o Reino Unido será a maior potência europeia do ponto de vista da população, da economia e da capacidade militar”. O então primeiro-ministro David Cameron, ainda antes de ter desencadeado o maior choque geopolítico da Europa do pós-guerra e do seu próprio país, resumia em boa medida a imagem que hoje domina os espíritos de ambos os lados da Mancha. Faltam trinta anos para o meio do século, mas a União Europeia perde hoje uma das suas três principais potências, 66 milhões de habitantes, 15 por cento do seu PIB, um dos dois únicos países com uma capacidade militar e nuclear considerável.

Não é coisa pouca. Mas não é suficiente para avaliar o impacto que a saída do Reino Unido terá na União Europeia, nem as suas consequências de longo prazo. O líder do grupo Renasce do Parlamento Europeu classificou o momento de “erro histórico”, tanto mais trágico quanto acontece precisamente no momento em que o apelo a uma “Europa geopolítica” é mais forte e em que o velho continente se encontra, provavelmente, diante do mais sério desafio à sua própria existência como actor relevante do sistema internacional.

Ursula von der Leyen anunciou a sua intenção de constituir uma Comissão “geopolítica” – orientada pela relação da Europa com o mundo e capaz de acompanhar a sua vertiginosa transformação. “The pond” (o charco), a forma como muitos britânicos ainda hoje se referem ao Atlântico, nunca pareceu tão largo, graças a Donald Trump e à sua política externa errática, na qual não cabe o conceito de alianças permanentes.

A saída do Reino Unido começa por afectar os equilíbrios de poder internos da própria União Europeia, alterando, pela segunda vez em menos de 30 anos, as condições geopolíticas em que assenta a integração. O primeiro choque aconteceu em 1989 com a queda do Muro de Berlim e o fim da Ordem de Ialta. Nessa altura, a França e o Reino Unido, as mais velhas nações europeias que nasceram da mesma História de guerras, de rivalidades e de alianças que duraram séculos, viram emergir de novo uma grande Alemanha no centro do continente.

Se a integração europeia nasceu para pôr termo às ambições hegemónicas da Alemanha e às guerras sucessivas com a França, a presença do Reino Unido (desde 1973) foi a garantia adicional que haveria um novo “triangulo político” para equilibrar a Europa, que se tornou mais importante a cada novo alargamento. Foi igualmente a garantia de que a Europa se manteria fiel à aliança com a América – o que foi fácil enquanto a União Soviética constituiu uma ameaça existencial, mas se tornou mais controverso quando essa ameaça desapareceu, o continente se reunificou e os europeus chegaram a sonhar transformar-se numa “superpotência” capaz de contrariar a hiperpotência americana – a não-América (ou a anti-América como a nova identidade europeia).

Tudo isso ficou para trás, graças ao Reino Unido, mas também aos países europeus de matriz euro-atlântica – histórica ou política –, como Portugal ou a Dinamarca, a Itália ou a própria Holanda. Foi o tempo em que, no debate europeu, se confrontaram as suas duas grandes correntes que Bruxelas designava por “europeístas” versus “atlantistas” ou, na terminologia bastante mais apropriada de Timothy Garton Ash, “euro-gaullistas” e “euro-atlantistas”.

Esta divergência acabou por ser superada, graças à entrada em cena de Tony Blair (1997), que conjugou de uma forma positiva a velha dicotomia britânica entre América e Europa – as duas faces de Janus – com a sua teoria do “país ponte” entre as duas margens do Atlântico e o seu propósito de colocar o seu país onde merecia estar: no centro das decisões europeias. A “ponte” pareceu ruir com o Iraque (2003), quando Dominique Strauss-Kahn anunciava que a “nação europeia” tinha nascido nas gigantescas manifestações contra a guerra (esquecendo-se que as houve também gigantescas em S. Francisco ou em Nova Iorque e que oito países da União subscreveram uma carta de apoio aos EUA, tentando impedir que a aliança rompesse). Num abrir e fechar de olhos, a Europa caiu em si, superou a crise iraquiana, definiu a sua própria estratégia de segurança na qual a relação transatlântica era a pedra angular. A eleição de Obama fez o resto.

Mitos e realidades
É preciso dar um passo atrás para desfazer um dos mitos mais constantes do debate europeu: o mito de que as Ilhas Britânicas são uma espécie de extensão da América, destinada a “minar” a integração europeia ou, pelo menos, a travá-la. “Vamos dar um Sim massivo à Europa”, apelava Margaret Thatcher durante a campanha para o referendo de 1975, convocado por um governo do Labour para ratificar o Tratado de Adesão de 1973. A Dama de Ferro, que nunca pensou retirar o seu país da Comunidade, acabou por ser “apunhalada” pelos seus pares conservadores, quando consideraram que sua “guerra” com Bruxelas tinha ido longe demais. John Major reparou os estragos e negociou Maastrich, o tratado fundador da União. Os tories passaram os dez anos seguintes a digladiar-se sobre a Europa, o que os impediu de regressar ao poder. O destino a que parecem agora votados os trabalhistas.

“O que faria Churchill?” A pergunta persegue todos os moradores do número 10 de Downing Street, seja qual for a sua cor política, embora cada um se sentisse livre de adaptar a resposta aos seus interesses ou, pelo menos, aos seus desejos. Em 1940, Churchill acreditou que poderia conter a barbárie hitleriana com a ajuda da França. Propôs a Paris uma união política franco-britânica. Não contou que a França caísse tão depressa e se rendesse tão facilmente. Foi então que se virou para a América, o seu último recurso, que demorou a chegar.

Os Estados Unidos retiraram da guerra sobre o seu papel no mundo conclusões opostas às de Grande Guerra, a primeira das quais foi tomar do Reino Unido o ceptro imperial, mesmo que para construir um “império” muito diferente. Foi uma estratégia friamente delineada. Leiam-se as memórias de Dean Acheson, a que o secretário de Estado de Truman chamou “Present at the Criation”. Em 1962, falando aos cadetes de West Point , lembrou-lhes: “A Grã-Bretanha perdeu um império e ainda não encontrou um papel.” E continuou: “A tentativa de desempenhar um papel de potência separado da Europa, assente na ‘special relationship’ com os EUA e de ser a cabeça de uma Commonwealth que não tem estrutura politica nem unidade – esse papel está quase a esgotar-se.” Nesse mesmo ano, Harold Macmilland entregava em Bruxelas o pedido de adesão à Comunidade Europeia. De Gaulle vetou-o até abandonar o Eliseu, em 1969.

Churchill, sendo acima de tudo um homem do Império, teve a preocupação de salvar a Europa da irrelevância. Foi ele que obrigou Roosevelt a aceitar a França à mesa dos vencedores. Foi ele quem, no famoso discurso de Foulton (1946), anunciou o que seria o futuro da Europa, dividida por uma “cortina de ferro”. Foi ele quem defendeu em Zurique, um ano depois, uma aliança entre a França e a Alemanha a partir da qual seria possível unificar a metade ocidental da Europa e impedir a guerra. Foi ele quem primeiro compreendeu que era necessária a presença dos EUA no território europeu para garantir essa unidade. No Congresso da Haia, começou assim o seu discurso: “Prenez garde! Je vai vous parler en français.”

É uma potência europeia que sai da União. Não é um “Cavalo de Tróia” dos americanos.

O mito do travão
O segundo mito da saída britânica é aquele que está contido numa frase do eurodeputado francês Alain Lamassoure no Monde: “Desde 1973, os britânicos comportam-se como permanentes desordeiros. O ‘Brexit’ acaba com o travão à Europa”. Será, porventura, a maior das ilusões. É verdade que Londres foi a areia na engrenagem de algumas decisões europeias – às vezes com um resultado negativo. Mas a saída do Reino Unido apenas agrava – ou, no melhor dos cenários, não resolve – os dramas existenciais que hoje a União Europeia vive.

Se tudo aproxima as duas velhas nações europeias que gostam de se olhar como “irmãs-inimigas”, quase tudo separa os dois grandes países continentais que são a pedra angular da integração europeia. Até 1989, a equação política era relativamente simples: a França liderava e a Alemanha seguia (e pagava). A reunificação e o renascimento de uma Alemanha inteiramente soberana alteraram profundamente os anteriores equilíbrios de poder. Emmanuel Macron chegou ao Eliseu anunciando que a França “está de regresso”, para tentar reocupar o seu papel de liderança numa grande Europa que deixou de ser “o prolongamento da França” para ser muito mais diversa na sua geografia, na sua história e nos seus interesses. A Alemanha ainda hoje anda à procura do seu novo lugar no mundo.

A crise financeira e a crise do euro, apesar de parcialmente superada, não diminui os riscos de fragmentação. A vaga de nacionalismos que varre a Europa é hoje, provavelmente, a maior ameaça à sua sobrevivência. A Comunidade nasceu para lhe pôr fim, construindo-se acima da História e da geopolítica. A História e a geopolítica regressaram em força. Tudo se complica quando um país que abria a Europa ao mundo, que ajudava a reequilibrava a relação franco-alemã e a exprimir os interesses dos países da sua margem atlântica resolve abandonar o barco. Depois desta sexta-feira, a União ficará mais voltada para dentro de si própria e menos capaz de encontrar o seu “interesse comum”.

Nos dois domínios hoje fundamentais (mais o euro) para o futuro – a política externa e a defesa – a perda ainda é maior. E, ao contrário do que dizem os velhos “europeístas ideológicos”, não facilitará o entendimento entre Paris e Berlim. Bastam dois ou três exemplos: a relação com a Rússia, o alargamento aos Balcãs Ocidentais, a relações com os Estados Unidos. Macron lançou a sua estratégia de aproximação à Rússia no Verão passado (a sombra de De Gaulle também habita o Palácio do Eliseu); Merkel põe como condição a resolução do conflito ucraniano. A chanceler reafirmou o seu compromisso com o alargamento à Albânia e à Macedónia do Norte; o Presidente quer travá-lo até que sejam definidos novos critérios. Merkel não enfatiza a importância vital da NATO para a segurança europeia; Macron declarou-a em “morte cerebral”. “O Reino Unido não é a explicação para a recusa de Merkel de criar um orçamento para a zona euro ou para a incapacidade dos políticos alemães de esquerda ou de direita para confrontar os eleitores com a incómoda verdade segundo a qual eles são os grandes ganhadores da integração europeia”, escreveu Philip Stephens no Financial Times.

No domínio da Defesa, as perdas são ainda mais evidentes. “A saída do Reino Unido tira à União Europeia uma das suas duas potências militares capazes de pensar e de operar à escala global”, escreve Tim Oliver da London School of Economics. Pode a Alemanha preencher o vazio? Ninguém tem ilusões, muito menos a própria Alemanha. É esta realidade que explica a insistência francesa na criação de um Conselho de Segurança Europeu fora dos tratados, no qual os britânicos teriam lugar ou a sua Iniciativa Europeia destinada a unir os países com vontade de reforçar a sua cooperação militar - até agora, 14 incluindo o Reino Unido.

A saída de um Estado membro da União seria sempre um momento de ruptura e de viragem. A saída de um Estado-membro como o Reino Unido no momento em que faria mais falta é um erro histórico de enorme dimensão

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