Carlos Alexandre
insiste em ouvir Costa, e faz bem
Neste país, o
pedido singelo de um juiz para ouvir de viva voz um primeiro-ministro num
processo penal que envolve a cúpula do Estado português é logo considerado uma
afronta do poder judicial ao poder político.
JOÃO MIGUEL TAVARES
9 de Janeiro de
2020, 6:55
Democracia não é
votar de quatro em quatro anos. Muita gente esquece-se disso, especialmente
políticos que consideram que o voto é o bar aberto do regime. Não é. O sufrágio
universal é uma condição necessária, mas não suficiente, para a existência de
um país democrático. Além de eleições, é indispensável uma justiça
independente, liberdade de expressão e numerosos mecanismos destinados a
restringir e vigiar a acção da maioria, através de um sistema de freios e
contrapesos que nos protegem dos abusos de poder.
É por isso que
Carlos Alexandre faz muitíssimo bem em insistir para que o primeiro-ministro
seja ouvido presencialmente na fase de instrução do caso de Tancos, se ele
entende ser essa a melhor forma de ser esclarecido sobre um caso gravíssimo,
que envolve um governo liderado por António Costa. (Para mais, foi o próprio
ministro da Defesa a indicar o seu nome como testemunha, e é pouco provável que
o primeiro-ministro não tenha sido consultado por Azeredo Lopes.) Qualquer
pessoa percebe que um testemunho por escrito não tem a mesma eficácia do
testemunho presencial, sobretudo num tema tão sensível quanto este, e a
Justiça, enquanto órgão de soberania, não me parece menos digna de respeito do
que o poder executivo. Infelizmente, não é assim que costuma ser tratada.
Neste país, o
pedido singelo de um juiz para ouvir de viva voz um primeiro-ministro num
processo penal que envolve a cúpula do Estado português é logo considerado uma
afronta do poder judicial ao poder político. Pressupor que Carlos Alexandre
quer simplesmente deliberar nas melhores condições possíveis é uma
impossibilidade – o que ele quer é “impor o justicialismo” e “causar um
incidente político”. Estas expressões estão entre aspas porque não são minhas.
Elas foram utilizadas pelo conselheiro de Estado Francisco Louçã no seu espaço
de comentário na SIC Notícias.
De forma muito
sintomática, Francisco Louçã defendeu com entusiasmo a tradição nacional de os
primeiros-ministros deporem por escrito com estas brabas palavras: “É a
jurisprudência portuguesa.” Ora, eu tinha ideia de que o conceito de
jurisprudência se referia ao conjunto das principais decisões judiciais dos
tribunais superiores. Mas o conselheiro Francisco Louçã tem uma outra teoria:
não só os políticos já fazem “jurisprudência”, como os juízes não podem
“contestar” aquilo que sai da boca de uma testemunha, por maior que seja a
barbaridade proferida. “O juiz faz as perguntas e regista as respostas”,
declarou Louçã. “Ele está a inquirir. Não é um debate com a testemunha.” Como
bem observou Luís Rosa no Observador, Francisco Louçã está a confundir um juiz
com um oficial de justiça. Mas talvez não seja confusão – para muitos
políticos, o juiz com um comportamento exemplar é mesmo assim.
Reparem bem: o
comentador Louçã, que está na televisão a bater com toda a força em Carlos
Alexandre (fez dele herói da extrema-direita e eminência parda do Chega), é o
mesmo conselheiro Louçã que está no Conselho de Estado a decidir sobre os
pedidos de audição do próprio ao primeiro-ministro. E, no entanto, na sua
cabecinha nada disso é problemático ou conflitual. O juiz Carlos Alexandre,
esse sim, é que causa “incidentes”, não tem noção da separação de poderes e se
esquece de que “há uma Constituição democrática em Portugal”. E depois – cereja
em cima do bolo – ainda vêm dizer que são os pobres políticos que têm de ser
protegidos dos terríveis juízes. Só pode ser piadinha, não é?
Sem comentários:
Enviar um comentário