terça-feira, 4 de novembro de 2014

EDITORIAL / PÚBLICO: A arrogância de Xanana Gusmão / Justiça portuguesa unida faz frente a Governo de Timor. / Ministro da Justiça mandado a Portugal para explicar expulsões.


EDITORIAL / PÚBLICO
A arrogância de Xanana Gusmão
DIRECÇÃO EDITORIAL 04/11/2014
Em 1999, as milícias pró-indonésias destruíram Timor Leste à frente dos nossos olhos. Não foram só as casas e os edifícios públicos que ficaram em pó. De um dia para o outro, desapareceram do país praticamente todos os quadros porque os quadros eram sobretudo ocupados por indonésios, não por timorenses. Raras vezes na história a ideia do “nascimento” de uma nação foi tão literal. Os timorenses não começaram do zero absoluto. Tinham a sua cultura, língua e costumes. Mas se pensarmos em democracia falar em zero não é exagero.

Nada disto pode ser ignorado quando pensamos na incrível decisão do governo timorense de expulsar os magistrados estrangeiros, entre os quais alguns portugueses. O sistema de justiça timorense tem 12 anos. Começou a ser construído do zero, quando não havia um tribunal em pé e, mais importante, nenhum magistrado. Quando em 2000, com o país em cinzas, as Nações Unidas começaram a reconstruir o país, distribuíram panfletos de helicóptero a pedir em tetum e bahasa indonésio algo do tipo: “Se estudou Direito ou trabalhou num tribunal, fale connosco”. Apareceram 17 timorenses. Este foi o ponto de partida. Pouco depois, foram nomeados 25 juízes, 13 procuradores e nove defensores oficiosos. Todos tinham estudado em universidades indonésias e quase todos tinham sido confinados a tarefas laterais na justiça. Quando começaram, tiveram de mergulhar num corpo legal novo (e desconhecido), com leis em português (uma língua desconhecida) e tradutores fracos.

Dez anos depois, um relatório independente escrevia isto: “Treze juízes, independentemente do seu mérito e dedicação, simplesmente não conseguem dar resposta às necessidades de justiça de mais de um milhão de pessoas espalhadas pelo país, muitas delas em áreas remotas.” Segundo a ONU, há hoje 17 juízes, 15 procuradores e 11 defensores oficiosos timorenses. A estes, juntavam-se cerca de 50 profissionais de justiça estrangeiros, 10 dos quais juízes. Numa frase, a justiça timorense é isto. A que se somam os problemas descritos em pormenor em inúmeras avaliações, como a da ONG local Judicial System Monitoring Programme, que há uns meses fez inspecções e encontrou tribunais sem um único computador a funcionar, sem livros de Direito, sem email e mesmo sem electricidade.


Numa década não se constrói um sistema judicial. Sobretudo num país onde 50% dos adultos são analfabetos e 50% da população vive abaixo do limiar da pobreza. O primeiro-ministro Xanana Gusmão fala em “interesse nacional” para justificar as expulsões. Fala dos magistrados portugueses como se tivessem cometido um crime de enorme gravidade. Nada nem nenhuma insatisfação em relação ao seu trabalho justifica um tratamento tão humilhante. A arrogância demonstrada pelo poder timorense poderá ter explicações várias. Os timorenses querem ter o controlo sobre os destinos do seu país. Imaginaram que o processo de “capacitação” dos seus quadros seria mais rápido. Que os estrangeiros deveriam ser apenas assessores e mentores e não decisores. Poderão ter desejado não perder nenhum caso em tribunal. É legítimo. Mas é no mínimo injusto transformar os estrangeiros em bodes expiatórios para a sua frustração.


Justiça portuguesa unida faz frente a Governo de Timor
ANA HENRIQUES , LUCIANO ALVAREZ e NUNO RIBEIRO 04/11/2014 - 17:45 (actualizado às 22:58) / PÚBLICO
Sucedem-se as críticas à expulsão de magistrados portugueses. Conselho Superior do Ministério Público quer ouvi-los logo que cheguem a Portugal. Sindicatos falam em atentado ao Estado de direito.

É um “atentado aos valores básicos do Estado de direito” e “uma grosseira violação da independência do poder judicial”. Foi assim que reagiram agentes do sistema judicial português à expulsão, pelo governo timorense, de seis magistrados e de um polícia daquele território. Os juízes e procuradores que ali desempenham funções, mas que não foram alvo desta medida foram igualmente mandados regressar.

Enquanto em Lisboa o discurso contestando os motivos da expulsão endurecia, Díli prometia apresentar provas da incompetência dos magistrados portugueses nos casos perdidos por Timor contra as petrolíferas que têm concessões naquele país. E descartava as investigações e condenações incómodas para o poder político noticiadas nesta segunda-feira pela imprensa portuguesa como possíveis justificações para o afastamento dos funcionários internacionais, alegando que eram situações demasiado antigas. Um relatório do Departamento de Estado norte-americano dá, porém, conta de casos bem mais recentes implicando governantes timorenses, como o julgamento do secretário de Estado para o Fortalecimento Institucional, Francisco da Costa Soares, acusado de corrupção, ou a condenação, há apenas um ano, do ex-secretário de Estado do Ambiente, Abílio Lima, e de dois colaboradores seus, por corrupção e falsificação de documentos, entre outros crimes.

Mas não são, de facto, de hoje os casos em que altos responsáveis de Timor entraram em choque com magistrados portugueses. Ramos-Horta, por exemplo, chegou a criticar duramente o juiz Ivo Rosa quando era Presidente da República, em 2007, depois de este o acusar de desrespeitar a Constituição. "Deve estar à procura de um cargo político em Portugal", observou, aconselhando o magistrado a "mostrar mais respeito".

Depois dos incidentes diplomáticos dos últimos dias o juiz contou à Rádio Renascença como foi também despedido e mandado embora mais tarde: “Impugnei a decisão junto dos tribunais de Timor-Leste e houve uma providência cautelar que me deu razão. Na altura, o Conselho Superior de Magistratura de Timor-Leste não acatou essa decisão, não obstante ser um órgão que tem como primeiro objectivo zelar pela independência dos tribunais. Na sequência disso, foi emitida uma informação para a polícia de Timor-Leste a dizer que eu estaria ilegal no país e que deveria ser detido, caso fosse encontrado”.

Até ao fim desta semana chegam a Lisboa todos os funcionários judiciais portugueses que se encontram em território timorense, incluindo os que não foram expulsos. Os órgãos que superintendem aos magistrados decidiram que terão também de regressar, depois do que sucedeu. “O Governo da República Democrática de Timor-Leste (…) decidiu expulsar cinco dos sete juízes portugueses que se encontram a exercer funções em Timor-Leste”, refere um comunicado do órgão máximo dos magistrados judiciais portugueses, o Conselho Superior da Magistratura, datado desta terça-feira.

“Tendo tomado conhecimento da decisão, o conselho deliberou revogar, com efeitos imediatos, as autorizações concedidas a todos os sete juízes que se encontram em Timor-Leste e, em consequência, determinar que todos regressem a Portugal”. A mesma nota informativa reafirma a competência dos magistrados em causa e sublinha que estes profissionais foram “recrutados e escolhidos pelo Estado de Timor-Leste”.

Os dois juízes que não foram expulsos tinham visto os seus contratos suspensos pelo Governo timorense. No mesmo sentido, uma deliberação do Conselho Superior do Ministério Público, órgão presidido pela procuradora-geral da República Joana Marques Vidal, revogou igualmente, "por razões de interesse público", a autorização para a permanência dos três magistrados do Ministério Público que se encontram em Timor  – apesar de só um deles ter sido mandado sair do país.

Este conselho quer ouvir o quanto antes os magistrados em causa, mas mesmo antes disso fez uma declaração de princípios assegurando a sua “competência profissional, idoneidade e rigorosa isenção”. Por outro lado, pediu ao Governo que assegure, por todos os meios ao dispor, a protecção destes funcionários no seu regresso.

Mas as reacções mais violentas vieram do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e da Associação Sindical dos Juízes Portugueses.

Para o sindicato, as atitudes do Estado de Timor-Leste constituem “uma grosseira violação da independência do poder judicial e são, por isso, incompatíveis com um Estado de direito”. E o que sucedeu “inviabiliza totalmente qualquer possibilidade de cooperação judiciária entre Portugal e Timor-Leste, agora ou no futuro”.  Já a Associação Sindical de Juízes entende que a actuação do governo timorense abre “um precedente gravíssimo e constitui um atentado aos valores básicos do Estado de direito”.

“Trata-se de uma afronta aos princípios da autonomia e da independência dos juízes e dos tribunais que são consagrados universalmente e aos quais devem respeito todos os Estados e entidades, tanto ao nível nacional como internacional. Dessa forma, são colocadas em causa a confiança e a legitimação da Justiça nos vários países e nas comunidades políticas internacionais envolvidos”, diz a associação, que – em nome das várias associações de juízes do espaço da lusofonia e da União Internacional dos Juízes de Língua Portuguesa – insta as autoridades nacionais e internacionais a tomarem posição sobre a matéria.  Já o sindicato dos procuradores fala na possibilidade recusar novas comissões de serviço de quaisquer magistrados do Ministério Público naquele país.

O Governo português afirmou na segunda-feira que deplora a expulsão. Na sequência do conflito diplomático, o ministro da Justiça de Timor-Leste enviou uma carta à sua homóloga portuguesa, Paula Teixeira da Cruz, pedindo uma reunião a realizar "entre Novembro e Dezembro". Ao fim da tarde da passada segunda-feira, Dionísio Babo enviou um ofício à sua homóloga portuguesa, Paula Teixeira da Cruz, solicitando o encontro. Foi na assinatura de um protocolo de cooperação entre os dois países, em Lisboa, a 5 de Fevereiro passado, a única vez que a titular da Justiça de Portugal reuniu com Babo e com o primeiro-ministro de Díli, Xanana Gusmão.

O protocolo recupera diversos documentos da relação bilateral entre os dois Estados, como o acordo geral de cooperação, feito em Díli, em 20 de Maio de 2002. Do mesmo modo, reporta ao programa “Fortalecimento do Sistema de Justiça em Timor-Leste”, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de Dezembro de 2008. E refere, ainda, o protocolo de 21 de Agosto de 2008, entre Lisboa, Díli e o PNUD que definiu o desempenho de missão profissional em Timor-Leste de magistrados judiciais e do Ministério Público portugueses.

Também em 2008, os ministérios da Justiça dos dois países subscreveram um memorando de entendimento no domínio da cooperação técnica e formação nas áreas da investigação criminal e medicina legal. Por fim, mais recentemente, a 10 de Janeiro de 2012, foi assinado um memorando entre o ministério da Justiça, o Tribunal de Contas e o Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento para desenvolver a componente de justiça no programa de apoio à governação democrática em Timor.


Ministro da Justiça mandado a Portugal para explicar expulsões
O chefe da diplomacia de Timor-Leste, José Luís Guterres, disse hoje à agência Lusa que o ministro da Justiça timorense, Dionísio Babo, vai a Portugal explicar as decisões do seu governo.
LUSA/ OBSERVADOR

O chefe da diplomacia de Timor-Leste, José Luís Guterres, disse hoje à agência Lusa que o ministro da Justiça timorense, Dionísio Babo, vai a Portugal explicar as decisões do seu governo.

“O Ministro da Justiça foi incumbido pelo Governo para ir até Portugal e explicar, em pormenor, a decisão do parlamento nacional, assim como a decisão do Conselho de Ministros”, afirmou José Luís Guterres.

O Governo de Timor-Leste ordenou segunda-feira a expulsão, no prazo de 48 horas, de oito funcionários judiciais, sete portugueses e um cabo-verdiano.

No dia 24 de outubro, o parlamento timorense tinha aprovado uma resolução para suspender os contratos com funcionários judiciais internacionais “invocando motivos de força maior e a necessidade de proteger de forma intransigente o interesse nacional”.

“Não houve, nem haverá nenhuma intenção de acabar com a cooperação portuguesa, que é uma cooperação excelente ou diminuir a presença dos peritos portugueses na área da justiça”, sublinhou o ministro timorense.

José Luís Guterres afirmou também que haverá peritos portugueses na comissão de auditoria ao setor da justiça, que vão fazer uma avaliação detalhada.

“Certamente que iremos ver ou recomendar que os juízes e procuradores recrutados são os mais experientes possível e o Governo de Timor-Leste está disponível para co-financiar os programas”, afirmou o ministro.

Questionado pela Lusa sobre a razão que levou o Governo a decidir pela expulsão de juízes e procuradores, José Luís Guterres explicou que quando se terminou os contratos não foram estendidos os vistos.

“Há informações que eu não posso partilhar com o público, mas certamente que o Ministro da Justiça quando estiver em Portugal as vai partilhar com as autoridades portuguesas”, disse.

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