OPINIÃO
“Nós” (o povo) e “eles” (os políticos)
Já estou a ouvir o sussurro e os berros: e então “os
políticos” não têm culpa (uma palavra fundamental do discurso populista) de
nada?
José Pacheco Pereira
13 de Abril de 2019, 4:01
As discussões sobre a existência de populismo em Portugal
resultam quase sempre na resposta de que este não existe. Os partidos
populistas, como o Chega, nunca foram às urnas e não há movimentos populistas
capazes de chegar à “rua” com mais do que dezenas de pessoas, como foi o caso
recente da tentativa de fazer uns “coletes amarelos” portugueses, mesmo
contando com um núcleo duro que incluía os lesados do BES e o PNR. Mas a
resposta é errada: o populismo em Portugal está a crescer e, mesmo que ainda
não tenha “rua”, domina as “redes sociais”, que são, para muita gente, a única
informação que consomem e o único sítio onde “debatem”. Domina também cada vez
mais a discussão pública, impregna o discurso político do Presidente da
República e dos partidos parlamentares, e está cada vez mais estabelecido na
comunicação social, a começar pelas televisões e a acabar na imprensa, mesmo na
intitulada de referência.
O populismo define os temas, marca o tempo dos temas muito
para além da habitual febre de “novidade” comunicacional, condiciona o seu
tratamento e apresenta as suas soluções de que cada vez mais políticos e
jornalistas têm dificuldade em se afastar, até porque muitas vezes concordam
com elas. A tendência adversarial do jornalismo junta-se a muita cobardia
política, de gente acossada e que sabe que não tem moral para falar alto contra
a maré populista. O resultado é um debate público inquinado, dominado pelo
pathos, quase sem logos, até porque há pouco ethos circulante.
A génese do populismo dos dias de hoje, em democracia, está
nesta dicotomia: o povo é intrinsecamente bom, altruísta, honesto, trabalhador,
desprovido de más intenções, verdadeiro, deseja o bem para todos, e os
“políticos” são o exacto oposto, maus, egoístas, desonestos, preguiçosos,
mal-intencionados, mentirosos e desprovidos do sentido de solidariedade, só de
interesse próprio. Esta dicotomia não é verdadeira, e acima de tudo é
antidemocrática.
Vem, no caso português, de uma longa tradição de demonização
da política, dos partidos e da democracia, que encontrou na nossa história
sempre mais duros críticos da democracia do que da ditadura, numa tradição
intelectual que vem da Grécia antiga. São discípulos de Platão e dos críticos
gregos da democracia ateniense, e que, como muitos intelectuais no século XIX e
XX, salvo raras excepções, a maioria das quais americanas e europeias de Leste,
namoraram sempre mais ideias e regimes como fascismo e o comunismo, do que a
“porca” da democracia, demasiado vulgar para lhes dar o papel de “conselheiros”
que eles sempre pretenderam. Em Portugal, isso sempre fragilizou a tradição
liberal e democrática, na monarquia e na República, e páginas de Ramalho e
caricaturas de Bordalo foram usadas pela propaganda do Estado Novo. À ideia da
“porca da política”, a que se contrapunha a obsessão do “consenso” e da
“unidade orgânica de todos os portugueses”, para além dos partidos e do voto,
foi dada consistência propagandística pela Censura durante 48 anos, e ela está
mais metida dentro das nossas cabeças do que se imagina.
O que há de novo sobre esta péssima tradição é que a
conversação democrática é duramente atingida pela crise das mediações, em
particular do debate a partir de factos e não de boatos, maledicências e
falsidades, muitos deles colocados deliberadamente por profissionais da
desinformação, beneficiando da crise da comunicação social e do ascenso de uma
nova ignorância agressiva que serve o populismo como o pão para a fome de
comer. Não estamos perante um renascer do fascismo, como alguns dizem, mas de
um fenómeno novo que acompanha outras transformações sociais num conjunto
complexo, impulsionado por interesses, por manipuladores da democracia, como
alguns serviços secretos, pela ganância de algumas empresas tecnológicas e pela
apatia e mesmo medo colectivo em lhe fazer frente.
Basta esta diferença gigantesca – não são “todos”, não são
todos iguais e só a democracia permite corrigir – para se falar em “democratês”
e não em “demagogês”
Substituir a democracia pela demagogia é mais fácil do que
travar este processo. Políticos em democracia, fragilizados pela corrupção,
pela ignorância, pela partidocracia e pela cobardia de ceder às ondas na moda
são os últimos a servir de barreira. E o resultado é que as pressões populistas
dão origem a soluções erradas, ou porque punitivas, ou porque ilegais, ou
porque ineficazes, ou porque perversas, gerando novos problemas, piores dos que
os que se desejam combater.
Já estou a ouvir o sussurro e os berros – e então “os
políticos” não têm culpa (uma palavra fundamental do discurso populista) de
nada? Têm, têm todas as culpas que os populistas lhes apontam, só que não são
“todos”, nem são “os políticos”, como se fossem uma classe à parte. E só no
contexto da democracia, dos partidos, das escolhas, do voto, isto se pode
melhorar.
Só que estas afirmações não servem apenas para adornar e
“moderar” o discurso – devem ser tomadas a sério e na sua substância, ou seja,
devem ser um elemento fundamental e estrutural da narrativa sobre a política em
democracia. Basta esta diferença gigantesca – não são “todos”, não são todos
iguais e só a democracia permite corrigir – para se falar em “democratês” e não
em “demagogês”.
Colunista
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