Autarcas de Castelo Branco inventaram uma ONG para obter
subsídios
Anterior e actual presidente da Câmara de Castelo Branco,
juntamente com outros autarcas socialistas da região, criaram em 2010 uma
Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (ONGD) que nunca foi
reconhecida oficialmente e da qual não se conhece qualquer actividade. Mesmo
assim recebeu pelo menos 350 mil euros de fundos públicos para instalar a sua
sede num edifício camarário
José António
CerejoJosé António Cerejo 1 de Abril de 2019, 7:07
https://www.publico.pt/2019/04/01/politica/noticia/autarcas-castelo-branco-inventaram-ong-obter-subsidios-1866261?fbclid=IwAR3BvTcfd3GvRQ6xatIM6PbAGJgXNg-W3_4AvZOza_YlraQqdW8pe8Z4PpQ
“L’Atitudes – Associação para a Dinamização de Projectos e
Redes Globais de Cooperação e Desenvolvimento – ONGD” é o seu nome completo.
Totalmente desconhecida na região, mesmo por ex-autarcas que têm o nome na
lista dos seus 11 sócios, mais parece uma sociedade secreta. Na Internet tem um
site onde apenas se encontra o seu logótipo. Em resposta aos pedidos do
PÚBLICO, a sua direcção, representada por um ex-vereador do PS na Câmara de
Castelo Branco, recusa-se a dizer o que faz, bem como a facultar os seus
relatórios de actividades. E até a revelar o nome dos seus dirigentes.
As contas do município indicam, todavia, que a autarquia
transferiu 150 mil euros para a sua conta bancária em 2014. De acordo com a
acta da reunião camarária de 20 de Setembro de 2013, a proposta de atribuição
daquele subsídio foi subscrita pelo então presidente da autarquia, o histórico
socialista Joaquim Morão. Objectivo: “execução de obras de requalificação da
sua sede, para fazer face à contribuição nacional do financiamento comunitário
(…).”
No momento da votação, lê-se na acta, Morão ausentou-se da
sala. Os restantes vereadores, entre os quais o actual presidente da câmara,
Luís Correia, bem como Arnaldo Brás e João Carvalhinho, votaram a favor, tal
como Manuel Eusébio, eleito pelo PSD. O que a acta não diz é que o autor da
proposta, além de presidente da câmara, era presidente da associação
beneficiada, e que Luís Correia, Arnaldo Brás e João Carvalhinho eram sócios e
dirigentes da mesma.
Duas associações numa só
Na acta também não consta um outro elemento relevante: o
pedido do subsídio foi dirigido a Joaquim Morão, na sua qualidade de presidente
da câmara, por António Realinho, vice-presidente da L’atitudes e também
vice-presidente e director-executivo da Adraces - uma importante associação de
desenvolvimento local criada em 1992 por iniciativa de Morão e Realinho, os
mesmos que fundaram a L’atitudes em 2010, e que é a única entidade colectiva
sócia desta última. Entre os sócios da Adraces destacam-se, também como
financiadores, as câmaras de Castelo Branco, Vila Velha de Ródão, Idanha-a-Nova
e Penamacor.
A fundamentar o pedido do subsídio, Realinho afirma que a
L’atitudes “é uma Organização Não Governamental para o Desenvolvimento, de
direito privado e fins não lucrativos” e que o subsídio será exclusivamente
utilizado na “requalificação” de um edifício camarário em que funcionará a sua
sede e também a da Adraces. Sobre a L’atitudes, garante, “trata-se de uma
instituição que, em conjugação com os meios humanos e financeiros que a Adraces
disponibilizará (…), muito contribuirá para a melhoria das condições de vida
das populações”.
Três meses antes, Joaquim Morão, presidente da L’atitudes,
mas em representação do município da Castelo Branco, e António Realinho,
enquanto vice-presidente daquela associação, tinham já dado o primeiro passo
para que a autarquia apoiasse a iniciativa de ambos. Através de um contrato de
comodato então assinado pelos dois, o município cedeu gratuitamente à
L’atitudes - por 25 anos a que poderão seguir-se períodos renováveis de dez
anos – um prédio situado no Largo de São João, 21-25, no centro histórico de
Castelo Branco.
O edifício, de dois andares, tinha sido comprado pelo
município no ano anterior e encontrava-se em mau estado. Daí que o contrato
estipulasse que a L’atitudes ficava obrigada a “recuperar o imóvel e financiar
a respectiva requalificação”, embora referisse que ele se destinava a servir de
sede não só a essa associação, mas também à Adraces.
A cláusula contratual que atribuía à L’atitudes a obrigação
de financiar as obras foi no entanto esquecida pouco depois, quando a câmara
lhe concedeu os 150 mil euros necessários para cobrir os custos que não fossem
suportados pelos fundos europeus. De acordo com o ex-vereador João Carvalhinho
- que respondeu ao PÚBLICO em nome da direcção da associação, mas sem revelar
qual o seu lugar nos órgãos sociais –, o custo total das obras e da aquisição
de móveis e computadores foi de 368.189 euros (com IVA), dos quais 150 mil
foram pagos pela câmara e 200 mil pelo Proder (Programa de Desenvolvimento
Rural).
Um estranho pedido
Para perceber a história da cedência do imóvel e da
atribuição do subsídio importa recuar ao ano anterior. No início de 2012, a
Câmara de Castelo Branco comprou o edifício do Largo de São João. Em Novembro
desse ano, António Realinho, na qualidade de vice-presidente da Adraces (então
presidida por Arnaldo Brás, vereador na Câmara de Castelo Branco), formalizou
junto daquela autarquia o pedido de cedência gratuita do imóvel, através de um
contrato de comodato, para aí instalar a sede da associação.
Nessa altura, todavia, a Adraces já tinha sede e não era uma
sede qualquer. Era um edifício com óptimas condições, localizado em Vila Velha
de Ródão, cedido pela câmara local, restaurado e ampliado com fundos europeus.
É lá, aliás, que permanece a maior parte dos seus serviços e funcionários e é
lá que continua a sua sede.
Três semanas depois do pedido de Realinho, a cedência do
edifício de Castelo Branco à Adraces foi aprovada por unanimidade, por proposta
de Morão, e o contrato foi assinado no dia seguinte. Entre os vereadores que
aprovaram a cedência estava Arnaldo Brás, então presidente da associação,
actual presidente da Assembleia Municipal da cidade e líder concelhio do PS.
Entretanto, passados quatro meses, a 9 de Maio de 2013,
Realinho escreve novamente a Morão e faz-lhe um estranho pedido. Solicita que a
Adraces seja autorizada a ceder à L’atitudes a sua posição naquele contrato.
Cuidadosos, os dois homens tinham antes tomado algumas precauções: a 3 de Maio
apresentaram nas Finanças a declaração de início de actividade da L’atitudes e,
no mesmo dia, reuniram os seus 11 sócios para distribuírem entre eles os 11
lugares dos corpos sociais da associação.
Três meses antes, porém, Morão e Realinho já tinham posto o
plano em marcha, colocando o carro à frente dos bois. Com a assinatura de
Realinho, a L’atitudes (não a Adraces) havia apresentado um pedido de apoio ao
Proder no valor de 200 mil euros. A verba solicitada correspondia ao máximo
previsto no regulamento e destinava-se a recuperar e equipar o edifício que
estava cedido à Adraces.
Sucede que o Proder era gerido na região pela própria
Adraces - através de uma delegação de competências da respectiva autoridade de
gestão -, pelo que a avaliação e aprovação do pedido da L’atitudes ficou nas
mãos do seu presidente, que além de ser também vice-presidente da Adraces era o
coordenador da sua equipa de avaliação.
Uma confissão e fantasias
Quanto ao pedido de cessão da posição da Adraces em favor da
L’atitudes, no contrato de cedência do edifício, a Câmara de Castelo Branco
aprovou-o por unanimidade no início de Junho. Na votação participaram todos os
vereadores que eram dirigentes das duas associações. Da acta dessa reunião
ficou a fazer parte a carta de Realinho na qual este confessa a razão do seu
estranho pedido: a Adraces tinha esgotado a verba a que poderia ter acesso no
âmbito do Proder e não poderia, portanto, obter o financiamento pretendido.
Além deste, havia outros motivos que a carta não refere, mas
que constam nos regulamentos do Proder. Por um lado, a linha de financiamento a
que a L’atitudes já se candidatara em Fevereiro estava reservada a Instituições
Particulares de Solidariedade Social e a Organizações Não Governamentais, não
sendo por isso acessível à Adraces.Por outro lado, o Proder não admitia
candidatura de entidades que o geriam a nível regional, como era o caso da
Adraces.
Mais uma vez por precaução, a câmara e a L’atitudes não se
bastaram com a aprovação da substituição da Adraces no contrato de comodato já
assinado. Uma semana depois celebraram entre si um novo contrato, sem qualquer
referência ao anterior. E quase em contra-relógio, já com o projecto de
arquitectura na mão, o pedido de licenciamento da obra foi entregue à câmara
passados cinco dias.
Relativamente ao pedido de financiamento que Realinho
apresentou ao Proder através da Adraces, o mínimo que se pode dizer é que se
trata de um documento fantasioso. Desde logo, porque garante a viabilidade
financeira da L’atitudes sem sequer ter em conta os 150 mil euros que no ano
seguinte virá a receber da Câmara de Castelo Branco. Assegura que apenas
recorrerá a fundos próprios e ao subsídio do Proder e estima em 230 mil euros
anuais as receitas da associação em cada um dos sete anos seguintes.
Para chegar a esse valor, o pedido contabiliza 162 mil euros
provenientes da venda da revista Viver, mais 11 mil relativos à participação em
feiras e 50 mil provenientes do fornecimento de serviços de consultoria. No
caso da Viver prevê-se a venda de 3000 exemplares por mês ao preço de 4,5 euros
cada. Sucede que a revista em causa - que tinha António Realinho como director
e o conhecido resistente antifascista Camilo Mortágua como editor - é
propriedade da Adraces, e não da L’atitudes.
Além disso, era uma publicação trimestral que, na realidade,
nem semestral chegou a ser, publicando um total de 25 números entre 2006 e
2016, ano em que saiu a última edição. Acresce que a sua distribuição foi
sempre gratuita, sendo financiada pelas câmaras sócias da Adraces e pelos
fundos europeus.
Já no respeitante a despesas, Realinho previa gastos com
pessoal de 52.875 euros por ano, além dos custos com a aquisição de serviços e
fornecimentos exteriores, o que lhe permitiria obter resultados líquidos anuais
de 74.886 euros. O problema é que a associação nunca teve nem previa vir a ter,
como é referido no próprio pedido de apoio, qualquer funcionário ao seu
serviço, nem teve qualquer receita além dos subsídios recebidos, registando
sempre resultados negativos.
Apesar de todas as incongruências e fantasias do pedido de
apoio, Realinho, como coordenador técnico da Adraces, e os autarcas que
integravam o seu órgão de gestão aprovaram o pedido da L’atitudes em Novembro
de 2013. E aprovaram-no sem qualquer corte e com uma das mais altas
classificações (17,4 em 20) atribuídas aos pedidos de apoio apreciados na mesma
altura, preterindo outros com classificações inferiores.
Meses depois, já com o subsídio de 150 mil euros aprovado
pela Câmara de Castelo Branco, a concessão dos 200 mil euros do Proder foi
formalizada através de um contrato com o Instituto de Financiamento da
Agricultura e Pescas. Finalmente, a licença de construção foi emitida em nome
da L’atitudes em Julho de 2014, um mês depois de as obras terem começado no
Largo de São João. Quem a assinou foi
Joaquim Morão, presidente da câmara, presidente da L’atitudes e pouco antes
eleito presidente da Adraces.
Uma falsa ONGD
Uma outra perplexidade relacionada com a L’atitudes
prende-se com o facto de ela se apresentar como uma Organização Não
Governamental para o Desenvolvimento. Isto porque, de acordo o Instituto Camões
- entidade dependente do Ministério dos Negócios Estrangeiros a quem compete,
nos termos da lei, o registo e o reconhecimento das ONGD –, aquela associação “não
está registada como ONGD e nunca solicitou a obtenção deste estatuto jurídico”.
O mesmo instituto adiantou que, “quando há suspeita de
desconformidade legal [no uso da denominação], trata de encaminhar a informação
disponível para o órgão competente para a apreciar”, referindo-se ao Ministério
Público ou ao Registo Nacional de Pessoas Colectivas (RNPC), entidade
dependente do Instituto de Registos e Notariado (IRN) e tutelada pelo
Ministério da Justiça.
Através de João Carvalhinho, a L’atitudes confirmou que “não
requereu, nem pretendeu requerer” tal estatuto. Segundo este seu dirigente, as
associações cujo objecto social se prende com “os domínios da cooperação para o
desenvolvimento, da ajuda humanitária e de emergência e/ou da educação para o
desenvolvimento podem solicitar ao Instituto Camões o reconhecimento do
estatuto de ONGD”. No entanto, argumenta, esse registo e reconhecimento não são
obrigatórios.
Contactado pelo PÚBLICO, o IRN respondeu que as entidades às
quais o RNPC aprova uma denominação com a expressão ONGD têm obrigatoriamente
de adquirir o respectivo estatuto formal, ao abrigo do art. 8.º da Lei 66/98,
junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Caso não o façam, a denominação
apresenta-se como “enganadora”, pelo que, sendo confirmada essa situação, é
iniciado um “processo de declaração de perda do direito ao uso da
correspondente denominação”.
Casos semelhantes originaram perda de mandato
Contrariamente ao entendimento do presidente da Câmara de
Castelo Branco vários tribunais têm considerado que a intervenção de autarcas
na atribuição de subsídios a entidades a que estão ligados é proibida por lei e
implica a perda do mandato. Um dos casos mais conhecido é o de um antigo vogal
da Junta de Freguesia de Rio de Mouro, concelho de Sintra, a quem o Tribunal
Central Administrativo Sul retirou o mandato autárquico por ter participado na
votação de subsídios atribuídos por aquela autarquia a uma associação
desportiva de que era presidente.
No acórdão http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/a9829966bf7827cf80257ac4003e611d?OpenDocument
datado de Novembro de 2012, os juízes afirmam que a conduta
do autarca “suscita a fundada suspeita de que, ao decidir, enquanto vogal do
executivo da junta de freguesia, beneficiar a associação por si dirigida, o fez
em detrimento de outras associações igualmente prestimosas e em cujos estatutos
se invoca sempre a prossecução de fins de interesse público”.
O acórdão nota também que a intervenção do réu no caso
constitui uma “notória manifestação de promiscuidade entre o cargo de vogal do
executivo autárquico e o de presidente da direcção da associação”. Para os
juízes, a conduta do autarca “é geradora de potenciais situações de
desigualdade com demais associações e dirigentes associativos”, sendo certo que
o Estatuto dos Eleitos Locais proíbe os autarcas de “intervir em processo
administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado”, bem como de
“participar na apresentação, discussão ou votação de assuntos em que tenham
interesse ou intervenção (…)”
No caso de Rio de Mouro o valor global dos subsídios que
custaram o mandato ao autarca era de 2550 euros.
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