segunda-feira, 15 de abril de 2019

Em Évora, Arquitectura Paisagista foi um curso pioneiro. Para o ano, não vai abrir



Em Évora, Arquitectura Paisagista foi um curso pioneiro. Para o ano, não vai abrir

Licenciatura criada por Gonçalo Ribeiro Telles tem mais de 40 anos. O número de candidatos cada vez menor ditou decisão da reitoria.

Rita Marques Costa (texto) e Nuno Ferreira Santos (fotos) 14 de Abril de 2019, 22:35

Aurora Carapinha, professora do curso em Évora: “É com uma tristeza enorme” que vê este desfecho NUNO FERREIRA SANTOS

11 de Novembro de 1975. Foi neste dia que abriu o bacharelato em Planeamento Biofísico e Paisagístico — que passaria a licenciatura em Arquitectura Paisagista em 1980 — na Universidade de Évora (UE). Aurora Carapinha foi a aluna número seis deste curso, o primeiro nesta área em Portugal. Talvez por isso saiba a data de cor.

Hoje, a antiga estudante é a professora responsável pela formação em Arquitectura Paisagista em Évora. Ao PÚBLICO, lembra o legado de um curso que teve a mão do histórico Gonçalo Ribeiro Telles, que lhe conferiu um “perfil próprio”, capaz de aliar “o conhecimento das ciências da terra e das agronomias ao conhecimento da arte” e onde também há espaço para temas como a ecologia, a agricultura ou a qualidade de vida.

É um curso histórico, cujo próprio passado “se prende com o da universidade”, diz Aurora Carapinha. Mesmo assim, nem a importância histórica nem as personalidades de referência que lhe estão associadas têm sido suficientes para atrair novos alunos. Os dados da Direcção-Geral do Ensino Superior (DGES) mostram que, no início desta década, a licenciatura ainda preenchia a maioria das 25 vagas disponíveis. Mas, nos últimos anos, os números têm vindo a descer a pique. Em 2015 eram 12; em 2016 foram dez; em 2017, cinco; em 2018 foram dois.


É por isso que, mais de 40 anos depois de Ribeiro Telles criar este curso pioneiro, a reitoria da Universidade de Évora decidiu que não vai abrir novas vagas para a licenciatura em Arquitectura Paisagista para o ano lectivo 2019/2020. A decisão não implica, porém, que o 1.º ciclo do curso encerre permanentemente.

Ao PÚBLICO, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior diz não ter conhecimento sobre o encerramento do curso e acrescenta que o mesmo foi acreditado pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES)​, em 2016, por seis anos.

O que está em causa é a luta pela qualidade de vida e por uma série de outras questões que se prendem com problemas sociais que estamos a viver.
Aurora Carapinha, professora e arquitecta paisagista

“Tenho muita pena por o curso não abrir”, porque é uma “bandeira da universidade”, admite ao PÚBLICO Ana Costa Freitas, reitora da UE. Mas também defende que, “pedagogicamente, é profundamente errado dar o curso a apenas dois alunos”. Nos últimos anos, “o curso já só abriu por termos feito um pedido de excepção que permitia que funcionasse com menos de dez colocados”, detalha a responsável.

No seu gabinete no Colégio Luís António Verney — um dos vários pólos onde funciona a UE e espaço onde está inserido o departamento de Paisagem, Ambiente e Ordenamento —, Carapinha recorda que o tal nome escolhido para o curso foi uma “jogada política perfeita” de Ribeiro Telles. Porquê? “Em Lisboa não se queria criar o curso de Arquitectura Paisagista” e foi a maneira encontrada para que existisse, até que “houvesse vontade política para o reconhecimento da profissão”.


Antes do curso na UE, a formação nesta área era praticamente inexistente. Quem não tivesse oportunidade de estudar fora do país tinha apenas uma opção: um curso livre oferecido no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, onde Ribeiro Telles completou a sua formação (também era engenheiro agrónomo) e que funcionou como a “génese” do curso de Évora. Foi lá que se formou toda a “geração muito conceituada que mais tarde desenha as Avenidas Novas de Lisboa, a Gulbenkian e a Capelinha de São Jerónimo”.

O entusiasmo ao explicar o curso e ao recordar os seus primórdios ajuda a perceber a “resposta afectiva” de Aurora Carapinha a esta notícia. “É com uma tristeza enorme” que vê este desfecho. “Não porque seja o nosso curso, mas porque temos a consciência de que temos uma cultura de paisagem que é necessária à contemporaneidade”, apressa-se a explicar. “Não somos só desenhadores de jardins.” O que está em causa é “a luta pela qualidade de vida e por uma série de outras questões que se prendem com problemas sociais que estamos a viver”.

Curso pouco atractivo
Apesar de não abrirem vagas, “o departamento não terá de ficar parado”, assegura a reitora. Os mestrados e doutoramentos vão continuar a abrir e, por enquanto, ainda há alunos de licenciatura de anos passados. Nos planos da reitoria está a potencial abertura de um curso de Verão em Arquitectura Paisagista. Mas “não é o mesmo”, defende Aurora Carapinha. “Trata-se de uma formação muito complexa, que requer muito tempo.”

Para o curso voltar a abrir, “é preciso uma estratégia para o valorizar”, diz a reitora da UE. E caberá aos responsáveis pela formação fazê-lo. “Acho que não conseguirmos ser atractivos não tem a ver com a Universidade de Évora”, lança Carapinha. “Se olharmos para o panorama de candidatos no ensino superior percebemos que a arquitectura paisagista ao nível nacional está a perder atractividade.”

Esta escola criou gerações de arquitectos e formou pessoas a pensarem para o tempo longo da natureza. Hoje vivemos na era do efémero. Projectar para a natureza, com o tempo lento de deixar crescer um jardim, parece menos urgente para alguns.
Ema Pires, antropóloga

Ema Pires, antropóloga na UE, trabalha com o curso de Arquitectura Paisagista “há mais de dez anos”. “Tento ensinar as dimensões culturais que todos os espaços arquitectónicos e todas as paisagens têm.” O que fica em causa quando um curso destes deixa de existir? “A continuidade de uma ideia de direito à cidade. A linguagem que os arquitectos paisagistas nos trazem é diferente e complementar das outras leituras arquitectónicas do espaço”, nota. “Esta escola criou gerações de arquitectos e formou pessoas a pensarem para o tempo longo da natureza. Hoje vivemos na era do efémero. Projectar para a natureza, com o tempo lento de deixar crescer um jardim, parece menos urgente para alguns.”

O problema vai além da Arquitectura Paisagista em Évora. Os números da DGES mostram uma redução no número de colocados em áreas relacionadas com as florestas e ambiente e alguns professores ligados a essas áreas temáticas confirmam-na. Este desinteresse pode ser um problema. “As zonas do interior [do país] estão a tornar-se mais frágeis exactamente nos contextos em que a arquitectura paisagista pode ser mais relevante. Quando falamos em ordenamento do território, na valorização da paisagem e na sua gestão — desde logo associada às monoculturas, aos riscos dos incêndios florestais —, são logo as zonas mais frágeis aquelas que mais podem ser penalizadas com o fecho desta oferta educativa”, defende Domingos Lopes, professor do Departamento de Ciências Florestais e Arquitectura Paisagista na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD).

Além da Universidade de Évora, o curso de Arquitectura Paisagista é oferecido nas universidades de Lisboa (UL), Porto (UP), Algarve (UAlg) e Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). E também nessas já há sinais de menor procura. Em 2018, a UTAD só teve 11 colocados e a UAlg pouco mais: foram 15. O PÚBLICO questionou a UTAD sobre a abertura de vagas para o curso em 2019/2020, mas esta faz saber que “ainda não analisou o assunto das vagas para o próximo ano lectivo”.

“Não fechem isto”
“Nós nunca fomos muitos. Aliás, nunca quisemos abrir os numerus clausus além dos 25”, admite Aurora Carapinha. Foi por isso que “nunca se expandiu o próprio departamento”. Mas há um resultado positivo dessa limitação auto-imposta: “Conseguimos um ensino muito próximo dos alunos.” Há um “espírito de escola”, que também “nasce com Ribeiro Telles”. “Eu fui aluna dele e depois assistente. Ficou-me que ensinar é, sobretudo, abrir janelas”, constata a professora.

No curso de Évora, “as cadeiras são quase todas trabalhadas com a comunidade”, conta Aurora Carapinha. “No ano passado, fomos para as zonas ardidas e fizemos um jardim numa povoação.” Mas, afinal, em que é que consiste um projecto de arquitectura paisagista? “Não é o que eu desejo, é aquilo de que os outros necessitam”, explica a professora. Sempre com o objectivo de “responder ou mitigar problemas da actualidade e criar qualidade de vida para as populações”.

E, apesar da fraca procura, ainda há estudantes que partilham esta paixão. Sentadas a uma mesa, três alunas de cada um dos graus de ensino do curso (licenciatura, mestrado e doutoramento) que, por enquanto, são disponibilizados na universidade, explicam porque é que é importante estudar Arquitectura Paisagista.

Nós trabalhamos com a dimensão política, social, ecológica e há cada vez mais necessidade de trabalhar o conjunto.
Mariana Machado, estudante de doutoramento

“É uma profissão muito inquietante”, define Mariana Machado, 28 anos, estudante de doutoramento. “Nós trabalhamos com a dimensão política, social, ecológica e há cada vez mais necessidade de trabalhar o conjunto. Há problemas na nossa paisagem que têm a ver com essa relação.” Marta Terlim, 22 anos, aluna de licenciatura, também lembra que “o país precisa de gestão e ordenamento do território”. “Esse é o nosso papel”, declara.

Ao fechar o curso, mesmo que seja só por um ano, “é uma estafeta de conhecimento que se perde”, nota Bebiana Chalabardo, 24 anos, estudante de mestrado. “Pode parecer pouco mas, se calhar, é suficiente para que se perca um professor que estava convidado e que já não vem porque não se justifica.”

 “Nós somos jovens e escolhemos esta profissão”, diz Mariana. “O nosso manifesto é: não fechem isto, porque é o nosso futuro que está em causa. Acho que em todas as áreas é difícil arranjar mercado [de trabalho cá]. Mas se lutarmos e formos persistentes conseguimos.” Este ano, o Encontro Nacional de Estudantes de Arquitectura Paisagista decorre em Évora, entre 3 e 5 de Maio. “Vamos reunir pessoas que se interessem pela paisagem. Precisamos de pessoas conscientes a trabalhar o tema.”

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