Em Évora, Arquitectura Paisagista foi um curso pioneiro.
Para o ano, não vai abrir
Licenciatura criada por Gonçalo Ribeiro Telles tem mais de
40 anos. O número de candidatos cada vez menor ditou decisão da reitoria.
Rita Marques Costa (texto) e Nuno Ferreira Santos (fotos) 14
de Abril de 2019, 22:35
Aurora Carapinha, professora do curso em Évora: “É com uma
tristeza enorme” que vê este desfecho NUNO FERREIRA SANTOS
11 de Novembro de 1975. Foi neste dia que abriu o
bacharelato em Planeamento Biofísico e Paisagístico — que passaria a
licenciatura em Arquitectura Paisagista em 1980 — na Universidade de Évora
(UE). Aurora Carapinha foi a aluna número seis deste curso, o primeiro nesta
área em Portugal. Talvez por isso saiba a data de cor.
Hoje, a antiga estudante é a professora responsável pela
formação em Arquitectura Paisagista em Évora. Ao PÚBLICO, lembra o legado de um
curso que teve a mão do histórico Gonçalo Ribeiro Telles, que lhe conferiu um
“perfil próprio”, capaz de aliar “o conhecimento das ciências da terra e das
agronomias ao conhecimento da arte” e onde também há espaço para temas como a
ecologia, a agricultura ou a qualidade de vida.
É um curso histórico, cujo próprio passado “se prende com o
da universidade”, diz Aurora Carapinha. Mesmo assim, nem a importância
histórica nem as personalidades de referência que lhe estão associadas têm sido
suficientes para atrair novos alunos. Os dados da Direcção-Geral do Ensino
Superior (DGES) mostram que, no início desta década, a licenciatura ainda
preenchia a maioria das 25 vagas disponíveis. Mas, nos últimos anos, os números
têm vindo a descer a pique. Em 2015 eram 12; em 2016 foram dez; em 2017, cinco;
em 2018 foram dois.
É por isso que, mais de 40 anos depois de Ribeiro Telles
criar este curso pioneiro, a reitoria da Universidade de Évora decidiu que não
vai abrir novas vagas para a licenciatura em Arquitectura Paisagista para o ano
lectivo 2019/2020. A decisão não implica, porém, que o 1.º ciclo do curso
encerre permanentemente.
Ao PÚBLICO, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino
Superior diz não ter conhecimento sobre o encerramento do curso e acrescenta
que o mesmo foi acreditado pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino
Superior (A3ES), em 2016, por seis anos.
O que está em causa é a luta pela qualidade de vida e por
uma série de outras questões que se prendem com problemas sociais que estamos a
viver.
Aurora Carapinha, professora e arquitecta paisagista
“Tenho muita pena por o curso não abrir”, porque é uma
“bandeira da universidade”, admite ao PÚBLICO Ana Costa Freitas, reitora da UE.
Mas também defende que, “pedagogicamente, é profundamente errado dar o curso a
apenas dois alunos”. Nos últimos anos, “o curso já só abriu por termos feito um
pedido de excepção que permitia que funcionasse com menos de dez colocados”,
detalha a responsável.
No seu gabinete no Colégio Luís António Verney — um dos
vários pólos onde funciona a UE e espaço onde está inserido o departamento de
Paisagem, Ambiente e Ordenamento —, Carapinha recorda que o tal nome escolhido
para o curso foi uma “jogada política perfeita” de Ribeiro Telles. Porquê? “Em
Lisboa não se queria criar o curso de Arquitectura Paisagista” e foi a maneira encontrada
para que existisse, até que “houvesse vontade política para o reconhecimento da
profissão”.
Antes do curso na UE, a formação nesta área era praticamente
inexistente. Quem não tivesse oportunidade de estudar fora do país tinha apenas
uma opção: um curso livre oferecido no Instituto Superior de Agronomia, em
Lisboa, onde Ribeiro Telles completou a sua formação (também era engenheiro
agrónomo) e que funcionou como a “génese” do curso de Évora. Foi lá que se
formou toda a “geração muito conceituada que mais tarde desenha as Avenidas
Novas de Lisboa, a Gulbenkian e a Capelinha de São Jerónimo”.
O entusiasmo ao explicar o curso e ao recordar os seus
primórdios ajuda a perceber a “resposta afectiva” de Aurora Carapinha a esta
notícia. “É com uma tristeza enorme” que vê este desfecho. “Não porque seja o
nosso curso, mas porque temos a consciência de que temos uma cultura de
paisagem que é necessária à contemporaneidade”, apressa-se a explicar. “Não
somos só desenhadores de jardins.” O que está em causa é “a luta pela qualidade
de vida e por uma série de outras questões que se prendem com problemas sociais
que estamos a viver”.
Curso pouco atractivo
Apesar de não abrirem vagas, “o departamento não terá de
ficar parado”, assegura a reitora. Os mestrados e doutoramentos vão continuar a
abrir e, por enquanto, ainda há alunos de licenciatura de anos passados. Nos
planos da reitoria está a potencial abertura de um curso de Verão em
Arquitectura Paisagista. Mas “não é o mesmo”, defende Aurora Carapinha. “Trata-se
de uma formação muito complexa, que requer muito tempo.”
Para o curso voltar a abrir, “é preciso uma estratégia para
o valorizar”, diz a reitora da UE. E caberá aos responsáveis pela formação
fazê-lo. “Acho que não conseguirmos ser atractivos não tem a ver com a
Universidade de Évora”, lança Carapinha. “Se olharmos para o panorama de
candidatos no ensino superior percebemos que a arquitectura paisagista ao nível
nacional está a perder atractividade.”
Esta escola criou gerações de arquitectos e formou pessoas a
pensarem para o tempo longo da natureza. Hoje vivemos na era do efémero.
Projectar para a natureza, com o tempo lento de deixar crescer um jardim,
parece menos urgente para alguns.
Ema Pires, antropóloga
Ema Pires, antropóloga na UE, trabalha com o curso de
Arquitectura Paisagista “há mais de dez anos”. “Tento ensinar as dimensões
culturais que todos os espaços arquitectónicos e todas as paisagens têm.” O que
fica em causa quando um curso destes deixa de existir? “A continuidade de uma
ideia de direito à cidade. A linguagem que os arquitectos paisagistas nos
trazem é diferente e complementar das outras leituras arquitectónicas do
espaço”, nota. “Esta escola criou gerações de arquitectos e formou pessoas a
pensarem para o tempo longo da natureza. Hoje vivemos na era do efémero.
Projectar para a natureza, com o tempo lento de deixar crescer um jardim,
parece menos urgente para alguns.”
O problema vai além da Arquitectura Paisagista em Évora. Os
números da DGES mostram uma redução no número de colocados em áreas
relacionadas com as florestas e ambiente e alguns professores ligados a essas
áreas temáticas confirmam-na. Este desinteresse pode ser um problema. “As zonas
do interior [do país] estão a tornar-se mais frágeis exactamente nos contextos
em que a arquitectura paisagista pode ser mais relevante. Quando falamos em
ordenamento do território, na valorização da paisagem e na sua gestão — desde
logo associada às monoculturas, aos riscos dos incêndios florestais —, são logo
as zonas mais frágeis aquelas que mais podem ser penalizadas com o fecho desta
oferta educativa”, defende Domingos Lopes, professor do Departamento de
Ciências Florestais e Arquitectura Paisagista na Universidade de Trás-os-Montes
e Alto Douro (UTAD).
Além da Universidade de Évora, o curso de Arquitectura
Paisagista é oferecido nas universidades de Lisboa (UL), Porto (UP), Algarve
(UAlg) e Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). E também nessas já há sinais de
menor procura. Em 2018, a UTAD só teve 11 colocados e a UAlg pouco mais: foram
15. O PÚBLICO questionou a UTAD sobre a abertura de vagas para o curso em
2019/2020, mas esta faz saber que “ainda não analisou o assunto das vagas para
o próximo ano lectivo”.
“Não fechem isto”
“Nós nunca fomos muitos. Aliás, nunca quisemos abrir os
numerus clausus além dos 25”, admite Aurora Carapinha. Foi por isso que “nunca
se expandiu o próprio departamento”. Mas há um resultado positivo dessa
limitação auto-imposta: “Conseguimos um ensino muito próximo dos alunos.” Há um
“espírito de escola”, que também “nasce com Ribeiro Telles”. “Eu fui aluna dele
e depois assistente. Ficou-me que ensinar é, sobretudo, abrir janelas”,
constata a professora.
No curso de Évora, “as cadeiras são quase todas trabalhadas
com a comunidade”, conta Aurora Carapinha. “No ano passado, fomos para as zonas
ardidas e fizemos um jardim numa povoação.” Mas, afinal, em que é que consiste
um projecto de arquitectura paisagista? “Não é o que eu desejo, é aquilo de que
os outros necessitam”, explica a professora. Sempre com o objectivo de
“responder ou mitigar problemas da actualidade e criar qualidade de vida para
as populações”.
E, apesar da fraca procura, ainda há estudantes que
partilham esta paixão. Sentadas a uma mesa, três alunas de cada um dos graus de
ensino do curso (licenciatura, mestrado e doutoramento) que, por enquanto, são
disponibilizados na universidade, explicam porque é que é importante estudar
Arquitectura Paisagista.
Nós trabalhamos com a dimensão política, social, ecológica e
há cada vez mais necessidade de trabalhar o conjunto.
Mariana Machado, estudante de doutoramento
“É uma profissão muito inquietante”, define Mariana Machado,
28 anos, estudante de doutoramento. “Nós trabalhamos com a dimensão política,
social, ecológica e há cada vez mais necessidade de trabalhar o conjunto. Há
problemas na nossa paisagem que têm a ver com essa relação.” Marta Terlim, 22
anos, aluna de licenciatura, também lembra que “o país precisa de gestão e
ordenamento do território”. “Esse é o nosso papel”, declara.
Ao fechar o curso, mesmo que seja só por um ano, “é uma
estafeta de conhecimento que se perde”, nota Bebiana Chalabardo, 24 anos,
estudante de mestrado. “Pode parecer pouco mas, se calhar, é suficiente para
que se perca um professor que estava convidado e que já não vem porque não se
justifica.”
“Nós somos jovens e
escolhemos esta profissão”, diz Mariana. “O nosso manifesto é: não fechem isto,
porque é o nosso futuro que está em causa. Acho que em todas as áreas é difícil
arranjar mercado [de trabalho cá]. Mas se lutarmos e formos persistentes
conseguimos.” Este ano, o Encontro Nacional de Estudantes de Arquitectura
Paisagista decorre em Évora, entre 3 e 5 de Maio. “Vamos reunir pessoas que se
interessem pela paisagem. Precisamos de pessoas conscientes a trabalhar o
tema.”
Sem comentários:
Enviar um comentário