Bastidores. A demissão que ficou suspensa por um voo transatlântico
05 Abril 2019
Rita Tavares
Pedro Benevides
O secretário de Estado do Ambiente foi demitido 20 horas
depois do primo-adjunto porque estava a caminho da Costa Rica e incontactável.
Matos Fernandes já sabia que não podia mantê-lo.
Esta é a história de uma demissão que esteve pendente à
espera que um avião aterrasse na Costa Rica. Depois de o Observador ter
questionado o Ministério do Ambiente sobre a existência de um primo nomeado
pelo secretário de Estado do Ambiente como seu adjunto, começaram a mexer-se
todas as peças no Governo. O primeiro-ministro foi informado da situação — e
apanhado no limite ético que tinha traçado na entrevista que tinha dado no sábado
à TSF e ao Dinheiro Vivo — e o processo desenrolou-se. Primeiro demitiu-se o
primo. Depois ficou a dúvida quer na opinião pública, quer até entre
socialistas (mais ou menos entredentes): o que vai acontecer ao responsável
pela nomeação? Mas Carlos Martins não tinha maneira de ser contactado, estava a
bordo de um avião em viagem
transatlântica e, por isso mesmo, ainda se aguentou no cargo por mais 20 horas,
sem saber que o seu destino político tinha sido redirecionado em pleno voo.
Terça-feira, 3 de abril
18h49 – O Ministério do Ambiente recebe a primeira pergunta
do Observador sobre o caso que tinha em mãos: o secretário de Estado do
Ambiente, Carlos Martins, teria nomeado o primo, Armindo dos Santos Alves, como
seu Adjunto. A nomeação já vinha de 2016, mas fora reconduzido em 2018 na
altura da penúltima remodelação governamental. O jornal quis confirmar a
existência deste grau de parentesco e, a confirmar-se, se o adjunto teria
condições para continuar depois da linha vermelha definida pelo próprio primeiro-ministro.
Prazo para uma resposta: 16h00 do dia seguinte.
No sábado anterior, em entrevista à TSF e ao Dinheiro Vivo,
António Costa tinha dito, quando confrontado com a multiplicação de relações
familiares nos gabinetes do Governo, que
“só haveria uma questão ética se alguém nomeasse um familiar seu”. O
primeiro-ministro foi imediatamente informado da situação pelo gabinete do
Ambiente, confirmou o Observador.
Quarta-feira, 4 de abril
16h04 – A resposta chegou quatro minutos depois do deadline
e com apenas três dados: confirmou o grau de parentesco entre Carlos Martins e
Armindo Alves; disse que o ministro do Ambiente desconhecia a relação familiar;
Armindo Alves tinha entendido pedir a demissão do cargo de adjunto.
16h29 – A notícia da demissão é publicada. A reacção em
cadeia, nos outros órgãos de comunicação social, não se fez esperar.
16h32 – Depois desta demissão, o Observador dispara com
novas perguntas, desta vez sobre as condições políticas do secretário de Estado
do Ambiente para se manter no cargo, tanto para o Ministério de Matos Fernandes
como para o gabinete do primeiro-ministro. Por esta altura a decisão já estava
tomada, mas ainda tardaria a chegar.
17h10 – Do Primeiro-Ministro, nem uma palavra. A notícia
tinha causado um mau-estar evidente e António Costa, que tinha já posto em
marcha um diagnóstico exaustivo a todos os gabinetes para detetar casos que
violassem a barreira ética que tinha imposto, não gostou de ver um caso
flagrante do qual não tinha conhecimento, nos jornais. Antes de qualquer
declaração pública sobre o assunto, havia que esperar que o ministro do
Ambiente tomasse uma posição. Ganhava força a hipótese de uma demissão
iminente, até porque em São Bento, só eram consideradas duas alternativas: ou o
secretário de Estado se demitia, ou era demitido. E este era um caso que teria
de ficar resolvido rapidamente, até porque no dia seguinte haveria debate
quinzenal no Parlamento, e era preciso conter danos antes do confronto com a
oposição. Mais: o que se passasse neste caso passaria a fazer “jurisprudência”
para outros que estivessem debaixo do radar.
20h30 – Na cerimónia de comemoração dos 50 anos da COSEC,
Marcelo Rebelo de Sousa é interpelado pelos jornalistas sobre o caso e
esquiva-se à sua maneira: “Não sei de nada. Estive em várias tarefas, estão a
dar-me uma informação, não sei de nada”. Mas também acrescenta que “talvez
amanhã” (quinta-feira) tivesse “alguma coisa a dizer”. E voltou a aconselhar a
imprensa que insistia com a questão: “Vamos esperar por amanhã”. Marcelo já
sabia que o secretário de Estado estava incontactável (ver em baixo), daí ter
adiado a sua reação.
21h06 – Ia o Sporting-Benfica com 36 minutos de jogo quando
chega uma resposta do Ministério do Ambiente sobre a continuidade de Carlos
Martins no cargo. “Situação resolvida”, declarava o esclarecimento enviado pelo
Ministério do Ambiente. “O adjunto Armindo Alves foi nomeado pelo secretário de
Estado do Ambiente de boa fé, com base nas suas competências profissionais,
acrescentava a nota do Ministério que, nessa altura, estava sem poder dizer
mais nada, embora a demissão do secretário de Estado já estivesse praticamente
garantida. Havia um pormenor que estava a atrasar tudo, Carlos Martins estava a
bordo de um voo de longo curso (mais de dez horas) a caminho da Costa Rica onde
representaria o Governo português numa reunião ministerial sobre águas e
saneamento. Estava “incontactável”, segundo garantem várias fontes contactadas
pelo Observador. Matos Fernandes decide esperar: era necessário dar a oportunidade
ao secretário de Estado para se demitir.
21h25 – A secretária-geral adjunta do PS já tem carta branca
para carregar nas tintas, no seu comentário da SIC-Notícias e não coloca panos
quentes no caso. “É profundamente errado e inadequado que um governante possa
nomear um qualquer seu familiar”, disse Ana Catarina Mendes. Ainda que acusasse
a direita de estar a fazer uma campanha “muito feia”, a secretária-geral
adjunta deixava claro que “um governante ou qualquer pessoa que tenha
responsabilidades públicas não deve, nem pode nomear um seu familiar. É
evidente que é uma questão de bom senso e também de transparência das relações
públicas”. No Governo e entre socialistas já pairavam incómodos sobre o
secretário de Estado que já tinha provocado este tipo de apreensão no mesmo
meio numa outra história que o envolveu. Em 2016, foi noticiado pelo Expresso
que Carlos Martins tinha declarado ao Tribunal Constitucional residir no
Algarve, recebendo um subsídio de alojamento, quando na verdade residia em
Cascais. Matos Fernandes voltou a segurá-lo: “O adjunto Armindo Alves foi
nomeado pelo secretário de Estado do Ambiente de boa fé, com base nas suas
competências profissionais”.
Quinta-feira, 5 de abril
Às primeiras horas da manhã – Carlos Martins aterra na Costa
Rica e imediatamente o telemóvel começa a apitar com mensagens de Lisboa. O seu
adjunto/primo tinha-se demitido. Matos Fernandes entra em contacto, numa
conversa telefónica, com o seu secretário de Estado e a demissão torna-se
inevitável.
9h30 – Começa a reunião do Conselho de Ministros, mas o
assunto não é abordado no encontro semanal, segundo apurou o Observador junto
de fontes do Governo. Mas é durante a reunião que o ministro do Ambiente recebe
o pedido de demissão formal do seu secretário de Estado e a reenvia para o
gabinete para que a divulgue junto da comunicação social. Só agora, sim, a
situação estava verdadeiramente resolvida.
11h30 – Para a oposição, os sinais do que viria acontecer
eram fáceis de ler. Politicamente, o secretário de Estado não tinha condições
para permanecer no lugar e, antes que decisão inevitável fosse anunciada, quer
o PSD na RTP3, quer o CDS na Futuráia, vieram ocupar espaço enquanto podiam e
exigiram a demissão de Carlos Martins.
12h23 – Chega a informação oficial: Carlos Martins tinha
apresentado a demissão de secretário de Estado do Ambiente depois de descoberta
a nomeação do seu primo para funções no gabinete.
14h24 – O Observador noticia que António Costa tinha dado
uma ordem interna para que se fizesse um diagnóstico exaustivo dentro do
Executivo para apurar eventuais casos que pudessem ainda não ser conhecidos
sobre familiares nomeados diretamente por governantes. A decisão foi tomada na
sequência das palavras do primeiro-ministro, na TSF, sobre o seu limite ético
para estes casos. Não bastava ligações familiares entre gabinetes. O motivo que
colocaria em causa a ética governativa seria um membro do gabinete nomear
diretamente um familiar. E era preciso apurar se havia casos escondidos. A
revelação pelo Observador de um desses casos veio reforçar a linha estabelecida
pelo primeiro-ministro e agora com uma sanção exemplar: sai o nomeado e sai
quem o nomeou.
15h03 – António Costa chega ao debate quinzenal, no
Parlamento, às 15 horas, já com o assunto resolvido, conseguindo driblar, desta
forma, eventuais ataques da oposição sobre este caso. Na verdade, não houve
muitos. Apenas o PSD, e ao de leve, tocou no assunto. Costa passa a bola ao
parlamento e pede aos deputados que clarifiquem os critérios de nomeação para o
executivo e para outros cargos públicos. Depois do debate, Costa seguiu para o
encontro semanal com o Presidente da República. O objetivo era levar na mão o
nome do substituto de Carlos Martins, para fechar de vez e rapidamente, este
capítulo pesado para a imagem do governo. Sobre isso não houve sinais, mas à
noite Marcelo mostrava estar em sintonia com o apelo de Costa nessa tarde e
pedia uma lei mais exigente para evitar nomeações familiares.
França tem pena de prisão e multa para políticos que
empregam familiares
António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa defendem a criação
de regras para regular as nomeações entre familiares. Em França, há regras
apertadas desde 2017.
Helena Pereira
Helena Pereira 5 de Abril de 2019, 10:40
Ao contrário de Portugal, França já regulou em lei as regras
sobre a contratação de familiares por políticos. A lei para a moralização da
vida política, aprovada em 2017 por maioria absoluta de votos no Parlamento,
proíbe ministros, deputados e autarcas de empregar familiares, especificando os
laços de parentesco: mulher/marido, quer por casamento quer por união de facto;
pais ou sogros; filhos ou enteados. Quem o fizer, arrisca uma pena de prisão
até três anos e 45 mil euros de multa.
A mesma lei regula os casos em que membros do Governo
contratam familiares de outros membros do Governo, obrigando a uma comunicação
pública dos contratos: “Quando um membro do gabinete ministerial tem uma
relação familiar com outro membro do Governo, ele ou ela deve informar, sem
demora, o membro do Governo do qual é o colaborador e a Alta Autoridade para a
Transparência da Vida Pública”.
Depois de ter sido noticiado que existem várias ligações
familiares nos gabinetes ministeriais e de um secretário de Estado se ter
demitido, tanto o primeiro-ministro, António Costa, como o Presidente da
República, Marcelo Rebelo de Sousa, vieram defender em público a necessidade de
haver leis específicas para regular as nomeações.
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