terça-feira, 16 de abril de 2019

A tragicomédia do Brexit / Um texto contra-corrente: por um Brexit sem acordo


Manuel Villaverde Cabral reagiu hoje ao texto de José Manuel Fernandes, publicado anteriormente (ler em baixo )
O que continua a ser surpreendente é o percurso ideológico de José Manuel Fernandes de ex- Marxista a Sumo Sacerdote de um Neo-Liberalismo Fundamentalista.
O VOODOCORVO, cujo editor nunca foi Marxista, mantém-se céptico com relação a Ex-Marxistas reconvertidos ...
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A tragicomédia do Brexit
Manuel Villaverde Cabra
16/4/2019, 7:44

É devido às razões de fundo da construção europeia, iniciada e discutida em profundidade há mais de 60 anos, que a União Europeia não podia em caso algum facilitar a saída do Reino Unido.

O meu amigo José Manuel Fernandes, publisher do «Observador», por cujo acolhimento nas suas páginas estou grato, interpelou-me no seu último artigo acerca do que eu tinha escrito sobre o impasse trágico-cómico do Brexit, assumindo uma posição oposta à minha. Confesso que não é o primeiro a discordar de mim, como mostram as minhas caixas de comentários, e não tenho impressão que a minha opinião seja maioritária entre as pessoas que têm opinado entre nós sobre o Brexit desde 2016.

Deve-se isto a duas razões opostas mas que, na prática, acabam por convergir. Uma é a sobrevivência histórica, entre nós, de uma cultura de admiração pela Inglaterra enquanto nossa parceira na mais antiga aliança diplomática do mundo, a qual garantiu – até data mais recente do que possa parecer – a independência de Portugal em relação à Espanha assim como a longa duração do império colonial português. No oposto da tradição anglófila, a outra razão de simpatia pelo Brexit vem da extrema-esquerda e da extrema-direita internacionais, incluindo as de cá, que vêem na política da Inglaterra um sério golpe na União Europeia.

Esta última atitude tem motivações ideológicas mas corresponde sobretudo ao desejo de destruir o maior bloco económico do mundo – maior que os Estados Unidos, com um PIB superior a 15 mil milhões de euros – e, simultaneamente, com os padrões mais altos de equidade social, o «estado de bem-estar» mais desenvolvido e as mais avançadas políticas de protecção ambiental. De todas as iniciativas que a UE desenvolveu nas últimas décadas, a moeda única constitui a mais ambiciosa e unificadora do bloco europeu. Já lá vão quase 20 anos e o euro resistiu a tudo, incluindo a crise oriunda dos EUA. É por tudo isso que o desmantelamento da UE constitui um objectivo evidente de todos os regimes e movimentos autoritários, sejam pretensamente de direita ou de esquerda. Por isso, eu lamentaria sinceramente que a Inglaterra se retirasse da União, apesar de se saber desde sempre que ela tem «sentimentos mistos» em relação ao Continente. Quanto à UE, a única vantagem poderia vir a ter seria a adesão ao «euro» por parte dos países que ainda não aderiram devido aos laços comerciais que têm com as ilhas britânicas e que ficariam a perder se estas saíssem da UE. É de notar que Portugal começou a ser cada vez menos dependente do mercado britânico, em favor da Espanha e do resto do continente, conforme a geografia impunha, a partir do dia em que aderimos à UE para proteger a nossa débil democracia!

Inversamente, é devido às razões de fundo da construção europeia, iniciada e discutida em profundidade há mais de 60 anos, que a UE não podia em caso algum facilitar a saída do Reino Unido nem tão pouco interferir na sua vida política interna. Em contrapartida, a classe política inglesa não fazia a mínima ideia do grau de «soberanismo» que continuava a dominar a antiga grande potência mundial até à iniciativa despropositada de referendar a permanência do país na UE de modo – pensava o antigo primeiro-ministro Cameron – a marginalizar os populistas irresponsáveis, como Farage, Boris Johnson e quejandos, que ameaçavam o governo conservador com gritos de ódio à Europa unida.

O governo conservador ficou ainda mais débil quando Cameron fugiu às suas responsabilidades e cedeu o lugar a uma senhora que votara contra a saída da UE e nada fez, durante quase três anos de governação, para organizar a eventual saída que a União nunca desejou mas também não podia impedir. Na realidade, a ameaça do Brexit parece não ter feito mais do que consolidar a UE, o que demonstra que as veleidades populistas e soberanistas de vários governos europeus – desde a Itália ao grupo de Visegrado – são mais «quantitativas» do que «qualitativas»… Na verdade, o mesmo se passa com governos hipócritas como o grego e o português com a sua caranguejola de anti-europeístas e anti-capitalistas…

O problema é que a Grã-Bretanha, em particular a sua classe política, tem uma visão puramente económica da UE. Pior: ela possui uma concepção economicista do mundo desde o tempo dos «economistas políticos» do século XVIII. Ora, a verdade é que já o «Mercado Comum» – a única coisa que sempre atraiu a Grã-Bretanha – era pensado com vista à manutenção da paz na Europa após a 2.ª Guerra Mundial. Daí a necessária união entre vencedores e vencidos a fim de ultrapassar as guerras na Europa ocidental e, depois da queda do comunismo, integrar os antigos satélites da Rússia na União. Paradoxalmente, a Grã-Bretanha, que chegou a estar só na luta pela liberdade na Europa durante a 2.ª Guerra Mundial, permanece obnubilada pelo soberanismo mercantil. Oxalá se dê conta disso a tempo!





Um texto contra-corrente: por um Brexit sem acordo
José Manuel Fernandes
11/4/2019, 9:51268

A crise do Brexit está a mostrar que a União Europeia é cada vez menos uma associação voluntária de nações e cada vez mais uma camisa de forças onde a vontade soberana dos povos tem muito pouco valor.

Provavelmente não deveria escrever este texto – porque a posição que vou defender vai radicalmente contra o que por todo o lado se diz e escreve sobre o Brexit. Mas não ficaria de bem comigo mesmo se não contrariasse esse discurso dominante.

O meu ponto é simples: temos de acabar depressa com este tormento, temos de fazê-lo respeitando o resultado do referendo e a única forma de o fazer neste momento é o Reino Unido sair o mais depressa possível da União Europeia e sem acordo. Vai doer mas vai passar.

Passo a explicar como chego a esta conclusão.

Primeiro que tudo, tenho pena (como escrevi na altura) que os britânicos tenham votado pelo Brexit. Eles eram um contrapeso às tendências centralizadoras de Bruxelas, eles contribuiam para que a Europa olhasse mais para o Atlântico e não tanto para o Leste e para o Mediterrânico e a sua economia é, das grandes economias europeias, a mais aberta ao mundo. Sem eles os eurocratas e os federalistas vão ter as mãos mais livres, e isso, como veremos, é mau para a Europa, para a democracia na Europa e para Portugal.

Mas não há nada a fazer: os britânicos votaram como votaram, e o que tinha de ser feito era criar as melhores condições para que saíssem da Europa nas melhores condições. Há uma longa lista de motivos e uma homérica sucessão de episódios que permitem explicar porque é que isso não sucedeu, e o espectáculo dado pelos políticos britânicos nos últimos meses é tudo menos glorioso.

Não tomemos porém a nuvem por Juno. Admito que a maior parte das pessoas julgue que os quase três anos que passaram desde o referendo foram ocupados a negociar os termos das futuras relações entre o Reino Unido e a União Europeia, pois isso era o mais lógico. Mas não foi isso que sucedeu. Nas horas seguintes ao referendo os líderes europeus concertaram uma estratégia que dividia a negociação em duas fases – a primeira, até à saída dos britânicos, trataria apenas das condições dessa saída; só depois se iniciariam as negociações sobre o tipo de acordos comerciais que vigorariam no futuro.

Compreendem-se as prioridades de Bruxelas – nos escritórios das instituições europeias há uma verdadeira obsessão sobre como se vai tapar o buraco orçamental criado pela saída do Reino Unido, e por isso o “cheque” a pagar por Londres esteve sempre à cabeça das negociações. O resultado só podia ser mau para o Reino Unido, pois deixando para uma segunda fase a negociação das relações futuras a sua posição ficaria sempre enfraquecida, pois no jogo do “toma lá dá cá” que é sempre uma negociação, com este método Bruxelas garantia na primeira fase tudo o que verdadeiramente lhe interessava.

Aquilo a que assistimos no Parlamento de Westminster foi uma consequência dessa estratégia agressiva e intransigente de Bruxelas: o acordo proposto à senhora May é mesmo um péssimo acordo para o Reino Unido, não há outra forma de o descrever. Como alguns políticos alemães já reconheceram, se algo de semelhante fosse apresentado ao Bundestag, o parlamento de Berlim também nunca o aprovaria. Eu também me recusaria a votá-lo.

De novo, porém, falamos de águas passadas. Tal como não posso mudar a forma como os britânicos votaram pelo Brexit, não posso mudar a intransigência dos 27 que dizem que não mudam uma linha nas mais de 500 páginas que deveriam regular o processo de saída “ordenada” do Reino Unido da União Europeia.

Sendo assim, que fazer?

O tormento dos últimos meses tem sido o de arrastar a novela do Brexit até conseguir vencer pelo cansaço os deputados de Westminster ou esperar um milagre qualquer, o que prejudica a imagem das instituições e desestabiliza a economia. Só temos a ganhar terminando com a novela.

Continuando o Reino Unido irremediavelmente dividido – é um país partido ao meio pelo Brexit, uma linha de fractura que não se moveu de acordo com as sondagens e que atravessa os dois principais partidos – não devemos ter a ilusão de que resolveríamos o problema revertendo o Brexit com um novo referendo. A meu ver isso seria um tremendo erro por duas ordens de razões.

Primeiro, porque se eventualmente o sentido de voto mudasse, a agora vencesse o “remain”, a acrimónia dos “leavers” seria imensa, pois sentir-se-iam traídos, e com razão. As escolhas democráticas podem ser revertidas depois de testadas – é o que fazemos quando despedimos uma maioria e elegemos uma nova. Agora reverter escolhas democráticas porque se achou que na campanha houve mentiras, que os eleitores estavam mal informados, que afinal o Brexit não era como dizia que iria ser sem que ele realmente tenha acontecido, é não respeitar um voto popular que se prometeu respeitar. E, por favor, não venham agora debater se gostam ou não de referendos como formas de deliberação democrática, pois é tarde demais.

Depois, e mais, muito mais importante, não é aceitável, não é mesmo tolerável que na Europa se torne regra a repetição dos referendos que não agradam a Bruxelas. Isso já aconteceu demasiadas vezes em países pequenos, que por serem pequenos aceitaram a humilhação. O Reino Unido não é um país pequeno.

E aqui chego aquele que é porventura o meu argumento central – aquele que mais frontalmente me distancia do pelotão dos chamados “europeístas”. Para mim a União Europeia tem de ser uma união voluntária de nações, um clube a que se pertence porque sentimos que isso é vantajoso para todos. Não pode ser uma camisa de forças.

Manuel Villaverde Cabral escreveu aqui no Observador que “a UE foi feita para construir e aprofundar gradualmente esta experiência política, económica e financeira extraordinária que já dura há mais de 60 anos, mas não para ser abandonada”, e que é por isso “natural e desejável que a UE torne tão difícil quanto possa a ruptura inglesa e galesa” (e note-se como alguém tão cioso na preservação da integridade da União Europeia trata já de cindir as diferentes partes do Reino Unido).

É exactamente contra tudo o que esta forma de pensar representa que eu me revolto. Esta ideia de a UE tem um e um só destino e que dela não se pode sair, que esse destino é o da crescente integração (a “ever closing union”), que estamos para sempre amarrados a esse destino e que todas as resistências serão sempre formas serôdias de soberanismo ou desprezíveis populismos é, na minha perspectiva, a tradução contemporânea, bruxelense, da “seta da História” que os marxistas diziam que nos levaria irremediavelmente em direcção ao comunismo. É uma versão doce, suave, desse historicismo fatal, mas é igualmente um vanguardismo que tolera mal a vontade popular sempre que esta o contraria.

No passado o Reino Unido prestou inestimáveis serviços à democracia e à liberdade, salvando ou ajudando a salvar a Europa várias vezes das muitas sombras e messianismos que a cruzaram. Pagou por isso um alto preço. Egoisticamente peço-lho que volte a sacrificar-se e saia sem acordo, que não aceite as 500 páginas de humilhação a que o querem submeter, que prove que é possível entrar mas também sair da União Europeia.

Vai ser um choque ao princípio, mas será seguramente melhor do que esta indefinição sem fim.

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