“Institucionalizar uma classificação racial para acabar com
o racismo é querer atingir um objetivo fazendo, para tal, o exato oposto do que
se pretende obter.”
(…) De facto, não é
possível combater o racismo e, em simultâneo, institucionalizar a classificação
racial, pelo Estado, de todos e cada um dos cidadãos. Quando o Estado introduz
categorias raciais nas estatísticas oficiais contribui para legitimar e
naturalizar essas mesmas categorias. Ora, o fundamento do racismo não é o
tratamento desigual das “raças”, mas a ideia de que as pessoas são socialmente
diferentes por terem diferentes características fenotípicas, biológicas.
“Considerando os efeitos perversos e riscos que resultam de
estatísticas públicas raciais, é totalmente desaconselhável a sua introdução na
próxima operação censitária.”
Rui Pena Pires
É possível combater o racismo com a classificação racial dos
cidadãos?
É totalmente desaconselhável a introdução de estatísticas
públicas raciais na próxima operação censitária.
Rui Pena Pires
29 de Abril de 2019, 4:58
1. Há, em Portugal, problemas sérios de racismo. Não porque
vivamos num país com ordenamento jurídico e político segregacionista (não
vivemos), mas porque existem práticas e discursos racistas sistemáticos. E
porque existe, também, uma racialização, historicamente construída, da
desigualdade social, o que facilita e naturaliza o preconceito. Precisamos,
pois, de conhecer melhor o racismo existente, produzindo informação útil para
sustentar políticas públicas de igualdade mais eficazes. Foi neste contexto que
surgiu, recentemente, a proposta de introduzir, no próximo Recenseamento Geral
da População, perguntas que permitam uma classificação racial de todos os
portugueses. Esta solução é, em minha opinião, inadequada e contribui para
reforçar o fenómeno que se pretende contrariar: o racismo.
2. De facto, não é possível combater o racismo e, em
simultâneo, institucionalizar a classificação racial, pelo Estado, de todos e
cada um dos cidadãos. Quando o Estado introduz categorias raciais nas estatísticas
oficiais contribui para legitimar e naturalizar essas mesmas categorias. Ora, o
fundamento do racismo não é o tratamento desigual das “raças”, mas a ideia de
que as pessoas são socialmente diferentes por terem diferentes características
fenotípicas, biológicas. A categoria “raça” pressupõe, nomeadamente, que
diferenças na cor de pele correspondem a diferenças culturais. Por isso, o uso
institucionalizado da categoria “raça” reforça os fundamentos cognitivos do
racismo. Não é possível combater o racismo e salvar a categoria “raça”.
Institucionalizar uma classificação racial para acabar com o racismo é querer
atingir um objetivo fazendo, para tal, o exato oposto do que se pretende obter.
O combate ao racismo, como, em regra, a todas as discriminações, requer a
afirmação da semelhança essencial de todos os seres humanos, não a enfatização
de uma das suas múltiplas diferenças.
3. O argumento fundamental dos defensores das estatísticas
raciais é simples: estas fariam falta para se conhecer melhor o racismo. O que
será em parte verdade mas é insuficiente como argumento. A ideia de que um ato
pode ser plenamente justificado pela sua utilidade é o princípio da
amoralidade. Estatísticas raciais têm, como quase todas as práticas sociais,
vantagens e desvantagens que devem ser ponderadas. Nessa ponderação, o estatuto
do autor da produção dos dados é relevante. Os efeitos de legitimação da
categorização racial não são os mesmos quando o autor das estatísticas é o
Estado ou quando é, por exemplo, uma equipa de investigação. Como também não
são idênticos os efeitos que resultam da utilização daquelas categorias em
inquéritos por amostragem a uma pequena parte da população e os que resultam do
seu uso universal e sistemático em operações censitárias ou em registos administrativos
que abrangem, regularmente, a totalidade ou a maioria dos cidadãos. A não
inclusão de questões conducentes à classificação racial nos censos não implica,
pois, a ausência de informação útil para a avaliação da discriminação racial.
Esta pode ser obtida por meios alternativos, em especial através de estudos e
inquéritos por amostragem com fins científicos ou técnicos, casos em que as
vantagens suplantam as desvantagens.
4. Em vez de racializar o Censo seria preferível criar um
observatório público do racismo e da xenofobia. Entretanto, muito pode ser
feito com o que já se sabe. Por exemplo, não precisamos de estatísticas raciais
para enfrentar os problemas da segregação racial em termos territoriais, por
definição de grande visibilidade. Como também não precisamos de estatísticas
raciais para colocar em prática processos de discriminação positiva que
corrijam a falta de diversidade da representação política ou da participação no
espaço mediático.
5. Na tomada de decisão sobre a melhor forma de obter
informação útil para combater o racismo seria ainda importante avaliar que
resultados tiveram medidas semelhantes às agora propostas nos poucos países em
que foram concretizadas: no caso da Europa, apenas no Reino Unido e na Irlanda.
Que eu saiba, não existe qualquer prova de que, nesses países, a produção de
estatísticas raciais tenha contribuído para conter ou diminuir o racismo.
Sabe-se, isso sim, que facilitaram a adoção de políticas de identidade
racializadas. Há quem entenda que este é o melhor caminho no combate ao
racismo. Não partilho a opinião. O combate ao racismo ganha em ser colocado no
campo das políticas de igualdade, mais do que no das políticas de identidade.
As primeiras permitem afirmar princípios universalistas de organização das sociedades
na base dos quais tem sido possível reduzir progressivamente discriminações com
uma longa história. As segundas celebram os particularismos, afirmam, em regra,
o predomínio das heranças coletivas sobre as escolhas individuais, fragmentam
as pertenças sociais, conduzem a uma erosão do sentido de pertença comum à
coletividade política e promovem uma perceção tribal da diversidade. Ou seja,
criam terreno fértil para a explosão de todas as formas de discriminação em
torno das diferenças cuja irredutibilidade promovem.
6. No contexto atual de crescimento dos populismos
nacionalistas, em particular na Europa, a relação entre racismo e políticas de
identidade envolve não apenas desvantagens mas riscos. O contexto mudou e,
hoje, o uso identitário de estatísticas raciais, que se fará assim que essas
estatísticas estiverem disponíveis, independentemente da vontade e intenções
dos seus produtores, facilitará menos a emergência de políticas de
reconhecimento de minorias do que de políticas de afirmação nacionalista da
maioria. Na Europa, isso significará o reforço de perceções racistas afirmando
a superioridade branca, que se alimentarão de uma apropriação preconceituosa e
discriminatória de eventuais estatísticas raciais.
7. Considerando os efeitos perversos e riscos que resultam
de estatísticas públicas raciais, é totalmente desaconselhável a sua introdução
na próxima operação censitária.
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