quinta-feira, 18 de abril de 2019

Devemos reconstruir a flecha da Notre-Dame? Sim, mas…/ Notre-Dame: “Não quero sequer pensar que este incêndio podia acontecer nos Jerónimos”



PATRIMÓNIO
Devemos reconstruir a flecha da Notre-Dame? Sim, mas…
Especialistas ouvidos pelo PÚBLICO defendem o restauro integral da catedral. Mesmo dos elementos acrescentados no século XIX por Viollet-le-Duc e que pretendiam reverter o edifício à sua pureza original.

 Isabel Salema
Isabel Salema 16 de Abril de 2019, 23:15

Quando assistimos incrédulos à queda da flecha da Catedral de Notre-Dame de Paris, lembrámo-nos imediatamente do colapso das Torres Gémeas de Nova Iorque depois do atentado de 11 de Setembro. Não foi por recearmos estar perante mais do que um acidente, mas antes porque o desenho das Torres Gémeas não deixa de ser um herdeiro longínquo da arquitectura de Notre-Dame, monumento fundador do estilo gótico.

Há um paralelo entre as linhas góticas da flecha com 93 metros de altura a desfazer-se nas chamas e os restos retorcidos dos arcos flamejantes das Twin Towers que correram o mundo no dia seguinte à tragédia de Nova Iorque. Os 800 anos de história que separam os dois edifícios mostram como Notre-Dame é um marco não só da civilização europeia mas da história mundial e um referente que não pára de regressar quando se quer construir em altura.

Se no Ground Zero de Nova Iorque não nasceram cópias das torres destruídas, tudo parece estar a encaminhar-se para que em Paris seja feito um restauro integral de Notre-Dame, que começou a ser engolida pelas chamas na segunda-feira ao final da tarde.

Com os seus oito séculos de história, Notre-Dame sofreu várias recuperações ao longo dos tempos, a mais célebre das quais iniciada em 1844 por Eugène Viollet-le-Duc e Jean-Baptiste Lassus. Foi nessa altura que se ergueu a flecha que vimos soçobrar e que dá à catedral a sua altura a raiar os cem metros, tal como se alterou substancialmente as duas torres da fachada que nunca tinham sido terminadas.

“Viollet-le-Duc pretendia reverter o edifício à sua suposta pureza original, mas também reinterpretar a essência dos edifícios, acrescentando parcelas de que se tinha conhecimento, mas que haviam sido perdidas, como no caso da flecha”, explica Paulo Almeida Fernandes, especialista em arquitectura medieval do Museu de Lisboa, lembrando que a flecha, a que também podemos chamar agulha ou pináculo, procurou inspiração nos modelos da Catedral de Orléans e da Sainte-Chapelle de Paris.

Por isso, uma das primeiras perguntas a que a equipa de restauro vai ter de responder é se vai querer reconstruir a reconstrução idealizada por Viollet-le-Duc. Ou seja, até onde deverá ir o restauro patrimonial de Notre-Dame do que foi destruído? Deve reconstruir-se algo que já não era original?

“Sim, mas…”, defende o historiador de arte Paulo Almeida Fernandes. “O carácter icónico desta flecha justifica a sua reconstrução, pois é uma marca histórica do monumento, um elemento que singulariza o skyline de Paris. A flecha da catedral de Notre-Dame é um símbolo agregador da Europa.”

Os falsos históricos
À primeira vista, o arquitecto José Aguiar diz que não tem a certeza que a flecha de Viollet-le-Duc possa ser considerada “um falso histórico” ou “um falso artístico”, mesmo que este tipo de restauro já tenha sido muito criticado, nomeadamente por Cesare Brandi, um dos grandes teóricos da área no século XX: “Sabemos que Viollet-le-Duc era extremamente rigoroso nas propostas. Se ele fez a agulha é porque, como em quase todos os seus casos de restauro, há fundamentação para o fazer.” Neste caso, trata-se de uma iluminura do Livro de Horas do Duque de Berry, datada do século XIV, que mostra a existência de uma flecha na Notre-Dame. “Ele era também um dos grandes conhecedores das técnicas construtivas e das soluções de execução. Ainda hoje estudamos muito da história construtiva da Idade Média através dos livros de Viollet-le-Duc. Sobre a sua decisão de reconstruir a agulha ou outras partes feitas no século XIX, já passou um século e meio e elas próprias são história. A imagem de Notre-Dame, a sua leitura, está neste momento ligada à visão que nos deu Viollet-le-Duc. Além dos valores históricos e artísticos, têm que se acrescentar os valores sociais.”

Logo no dia do incêndio, que está a ser considerado um acidente, o Presidente francês, Emmanuel Macron, fez eco desse valores sociais e prometeu reconstruir a catedral porque é isso que os franceses esperam. Já nesta terça-feira, defendeu que essa reconstrução duraria apenas cinco anos.

Uma tragédia emocional
Para Ana Gerschenfeld, uma parisiense que vive em Portugal há décadas e trabalha na Fundação Champalimaud, é preciso voltar a dar um telhado a Notre-Dame, que não pode ficar com três buracos. “Isto é uma vicissitude da história e não vale a pena ficar como uma ruína. A catedral deve ser restaurada, mostrando que se fez um restauro, porque as pessoas têm direito a ter de volta uma Notre-Dame de Paris funcional.”

Ao contrário do que aconteceu com o Ground Zero das Torres Gémeas ou com as Ruínas do Convento do Carmo, que se seguiram a um atentado terrorista e a um terramoto, em Paris “é mais uma tragédia emocional do que uma tragédia humana”. Ana Gerschenfeld, como outros parisienses, sentiu uma imensa tristeza e as lágrimas vieram-lhe aos olhos: “É como ter o coração da cidade arrancado de repente. É uma coisa que não se imagina, porque pensamos que as coisas estão ali para sempre e, de facto, não estão.”

Cada vez que passa pela Notre-Dame, Ana Gerschenfeld, que foi durante anos jornalista do PÚBLICO, sente essa ligação afectiva: “Faz-me sorrir cada vez que a vejo. Tal como acontece com a Sé de Lisboa, também me arranca sempre um sorriso. São proezas e obras lindas do ponto de vista estético.”

A reconstrução deve prever vários níveis de compromisso com o património, defende Paulo Almeida Fernandes​: “Em primeiro lugar, é importante que esse projecto seja discutido entre um sólido e multifacetado corpo técnico, mas alargado aos agentes da gestão patrimonial e envolver os próprios decisores políticos, pois, em última instância, haverá uma opção política a tomar.” Depois, as partes da catedral reconstruídas podem ser realizadas em materiais diferentes dos originais, ou com outro tipo de coloração, “para que exista uma leitura imediata por parte dos futuros visitantes de mais esta cicatriz provocada na longa história do edifício”. E todos os passos dados a partir de segunda-feira devem ser exaustivamente documentados, “para constituir um fundamentado relatório para memória futura e eventual musealização”.

O restauro de grande parte do que ardeu é “totalmente exequível”, diz José Aguiar, professor de conservação e restauro na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa. “A França tem de certeza disponível um levantamento com fotogrametria digital e laser, que permitem reconstruir estes elementos. Acho que se justifica o restauro integral, incluindo a flecha, porque a história de Notre-Dame também é a história de Viollet-le-Duc, que criou muitas das bases do restauro contemporâneo.”





Notre-Dame: “Não quero sequer pensar que este incêndio podia acontecer nos Jerónimos”

O incêndio de Notre-Dame faz-nos perguntar: e se fosse no mosteiro dos Jerónimos ou no da Batalha? Falámos com os seus directores e outros técnicos. Há planos de segurança actualizados e ligações aos bombeiros, mas falta ainda muita coisa, sobretudo formação. DGPC está a preparar uma Carta de Risco para o património classificado.

Lucinda Canelas 17 de Abril de 2019, 7:30

Não se sabe ainda como começou nem se conhece a dimensão dos danos patrimoniais que causou. Com o inquérito aberto pelo Ministério Público francês ainda numa fase muito inicial, o incêndio que durante a tarde e a noite de segunda-feira destruiu boa parte da catedral de Notre-Dame parece, para já, estar relacionado com os trabalhos de conservação e restauro que nela estavam a decorrer. Se a investigação vier a confirmar esta hipótese, será certamente um paradoxo que a obra que procurava protegê-la e valorizá-la tenha levado a esta tragédia.

Com milhões de pessoas em todo o mundo a assistir — atónitas, emocionadas — às imagens da grande catedral de Paris a arder, é inevitável que muitas delas tenham pensado nos monumentos que têm nos seus países. Inevitável também para os portugueses. E se fosse o Mosteiro dos Jerónimos a arder? Ou o da Batalha? Estarão os monumentos nacionais preparados para impedir tamanha catástrofe ou simplesmente isso não é possível?

Portugal tem dispersos pelo seu território quatro mil imóveis classificados. Desses, sete estão na esfera da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), que tutela também 16 museus. Entre esses sete estão quatro (Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém foram classificados em conjunto) com o selo de património da humanidade, atribuído pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Nestes, como nos restantes, há meios de combate a incêndios, plano de evacuação e saídas de emergência, informa a DGPC.

“Os planos de segurança dos 23 equipamentos da DGPC foram aprovados e em cada um deles há pessoas a quem foi dada formação específica, que sabem exactamente o que fazer em caso de incêndio ou de qualquer outro acidente natural”, diz ao PÚBLICO Paula Silva, directora-geral do Património. São funcionários que sabem usar os extintores e as bocas-de-incêndio existentes para darem uma resposta imediata. “É claro que este primeiro ataque não é suficiente e, por isso, na área de Lisboa, estes 23 equipamentos estão ligados em permanência, 24 sobre 24 horas, ao Regimento de Sapadores Bombeiros.”

Esta ligação é garantida pelo Sadiconnect, um sistema que informa em tempo real os sapadores. “Nas restantes regiões do país, existem ligações telefónicas normais e automáticas aos serviços de bombeiros ou a empresas de segurança”, esclarece uma nota da DGPC. A estas medidas acrescem as vistorias periódicas para aferir da adequação dos planos de segurança, obedecendo a uma resolução do Conselho de Ministros do ano passado (n.º 13/2018, de 20 de Fevereiro).

“O que aconteceu foi uma verdadeira tragédia, que infelizmente não é tão anormal como se possa pensar”, acrescenta Paula Silva. É claro que a importância patrimonial e simbólica de Notre-Dame amplia tudo, diz, “mas não é raro um monumento arder quando está em obras”.

Sublinhando que é preciso esperar pelas conclusões do inquérito às causas do incêndio, a directora-geral do Património lembra o que sucedeu com o edifício dos Paços do Concelho, em Lisboa, em 1996: “O incêndio começou precisamente na cobertura”, onde decorriam trabalhos.

Graças à “pureza do gótico”
Tanto Paula Silva quanto os directores dos mosteiros dos Jerónimos e da Batalha, dois monumentos património mundial, sublinham a importância dos planos de segurança e de outras medidas de autoprotecção, mas defendem que ninguém pode garantir a 100% que algo como o que sucedeu na catedral de Paris não acontece na sua própria “casa”.

“Não quero sequer pensar que este incêndio podia acontecer aqui”, diz Isabel Cruz Almeida, directora do Mosteiro dos Jerónimos, um dos monumentos que mais intervenções de conservação e restauro teve nos últimos anos e o mais visitado do universo da DGPC (1,1 milhões de visitantes em 2018). “Nós temos muita madeira, dentro e fora [nos altares, nas coberturas], e um fogo com aquela intensidade afecta também a estrutura de pedra. Muito do recheio do mosteiro saiu para museus ao longo de décadas, mas ainda temos património integrado importantíssimo, como o retábulo da capela-mor.”

O plano de segurança actualizado e os simulacros que recentemente foram feitos no mosteiro e na Torre de Belém são importantes para manter a diminuta equipa mais preparada para um eventual incêndio, mas há sempre uma certa inevitabilidade. “[Em Notre-Dame] não se contava… É claro que a catedral tem um plano de segurança e pessoas com formação. Ninguém acredita que um monumento daqueles, com uma importância simbólica imensa, um ícone em França e no mundo, que recebe [13] milhões de visitantes por ano, não estivesse preparado, no entanto aconteceu. França é um exemplo para todos no investimento que faz e no orgulho que tem no seu património.”
A directora-geral do património lembra, por seu lado, que em contexto de obra, por vezes, os monumentos descuram alguns aspectos da sua segurança: “Não estou a dizer que foi o que aconteceu, mas é preciso pôr essa hipótese.”

Há uma dose de inevitabilidade ou acaso, admite Joaquim Ruivo, director do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, mais conhecido como Mosteiro da Batalha, mas o que as avaliações periódicas e os planos de segurança pretendem é diminuir os factores de risco e garantir uma resposta rápida em caso de necessidade. “Ninguém está livre de uma catástrofe, mas na Batalha o incêndio nunca atingiria aquela dimensão.” E porquê? “Porque nós já só temos cobertura de madeira na Sala do Capítulo e no interior praticamente já não resta nada”, diz Ruivo, falando do incêndio em Notre-Dame como uma “perda desoladora”, daquelas de “fazer doer a alma”, que trouxe à memória as catedrais alemãs arrasadas na Segunda Guerra Mundial.

O Mosteiro da Batalha, como o de Alcobaça ou o Convento de Cristo em Tomar, entraram num período de degradação após a extinção das ordens religiosas, em 1834. Foi graças à intervenção de D. Fernando II, o rei artista que casou com D. Maria II, que a partir de 1840 foi sujeito a um amplo processo de restauro. Foi a ideia de “pureza do gótico” que orientou as intervenções no monumento entre 1840 e 1940 que “limpou” o interior do mosteiro, explica o director.

O edifício, continua Ruivo, sofrera já muito com a terceira invasão napoleónica, que deitou por terra dois dos seus quatro claustros. “O que no interior pode arder foi reduzido ao mínimo pelas intervenções que quiseram deixar no mosteiro praticamente só a pedra. Ainda temos algum mobiliário, uma imagem ou outra, mas os retábulos, os altares de madeira, as tapeçarias e até os confessionários já não estão cá. O mosteiro foi reduzido ao seu esqueleto, à tal beleza do gótico.”

Na Batalha, o quartel dos bombeiros fica a 200 metros e não há constrangimentos urbanos – nem trânsito, nem edifícios que dificultem o acesso ao monumento.

Mais formação
O acesso dos bombeiros é importante, diz Esmeralda Paupério, investigadora do Instituto da Construção da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, mas está longe de ser o único factor determinante.

Para esta engenheira civil que muito tem trabalhado na área dos riscos em património, habituada a cenários de catástrofe em virtude de sismos, Portugal tem ainda um longo caminho pela frente no que toca à preservação perante incêndios, tsunamis, inundações e terramotos, apesar de ter já dado alguns passos seguros. É preciso garantir mais formação aos bombeiros e aos gestores do património, é preciso criar documentos estratégicos capazes de clarificar prioridades em termos de intervenção — em cada equipamento e também no território.

“Quando um bombeiro está a combater um incêndio num monumento ou num museu ele é chamado, naturalmente, a salvaguardar primeiro as pessoas e, depois, as obras de arte. Em Portugal, a maioria dos museus não tem sequer planos de evacuação de património móvel. O bombeiro não sabe o que resgatar primeiro, não sabe como retirar e transportar as peças. Tem de haver mais formação, mais articulação entre os sapadores, a protecção civil, o Património”, defende Esmeralda Paupério, membro do comité de risco do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), que no ano passado organizou no Porto, com o regimento de sapadores da cidade, uma formação piloto para gestores do património e bombeiros. “Estamos no bom caminho, mas há que ir mais longe, dar formação contínua.”

Carta de risco
Para saber onde intervir primeiro no que diz respeito aos imóveis dispersos pelo território, a Direcção-Geral do Património está a preparar uma Carta de Risco para o património nacional classificado, o que está à guarda do Estado, mas também o que se encontra sob a alçada de privados e da Igreja. Até ao fim do Verão, Paula Silva gostaria de ver terminada a primeira fase do levantamento que a DGPC está a fazer com as Direcções Regionais de Cultura. O seu objectivo é apurar o estado de conservação de bens/imóveis classificados como de Interesse Público ou Monumento Nacional em Portugal continental.

“Nesta primeira fase vamos incluir apenas os que são propriedade do Estado [1580], mas depois incluiremos os restantes até a um total de 4000, que são os que estão classificados”, explica a directora-geral. “Sem se conhecerem as necessidades, não podemos decidir, não podemos estabelecer prioridades. A Carta de Risco [do Património Arquitectónico e Arqueológico Nacional Classificado] é um documento estratégico que já devia existir há muito tempo.”

Esmeralda Paupério concorda. “Sem a Carta de Risco não saberemos por onde começar”, acrescenta a engenheira civil que faz questão de lembrar que, tirando Inglaterra, que criou “normas indicativas”, nenhum outro país dispõe de planos de segurança específicos para o património em contexto de obra.

“Não é por acaso que isto acontece na grande catedral de Paris quando estão obras a decorrer nas coberturas. Os espaços são exíguos, há muitas especialidades [profissionais de várias áreas] a trabalhar ao mesmo tempo, há rebarbadoras, extensões [eléctricas] e geralmente prazos curtos. Há regras a seguir para a segurança dos trabalhadores mas não para a do património.” E estas regras são também importantes nos centros históricos, mesmo quando se trata de reabilitar edifícios não classificados: “Facilmente um incêndio passa de um prédio ou de uma casa para uma igreja com centenas de anos.”

Tragédias como a de Notre-Dame, diz Esmeralda Paupério, obrigam os políticos a olhar para o património e a repensar o seu financiamento. “Muitos políticos tendem a minimizar a importância do património e fazem mal. Quando estive nos sismos do Nepal [2015] e do México [2017] pude ver o valor identitário que um templo, uma igreja, um monumento pode ter para uma comunidade. As pessoas preferem que sejam reconstruídos primeiro do que as suas próprias casas. O património é um símbolo de resiliência.”

tp.ocilbup@salenacl


Sem comentários: