PATRIMÓNIO
Devemos reconstruir a flecha da Notre-Dame? Sim, mas…
Especialistas ouvidos pelo PÚBLICO defendem o restauro
integral da catedral. Mesmo dos elementos acrescentados no século XIX por
Viollet-le-Duc e que pretendiam reverter o edifício à sua pureza original.
Isabel Salema
Isabel Salema 16 de Abril de 2019, 23:15
Quando assistimos incrédulos à queda da flecha da Catedral
de Notre-Dame de Paris, lembrámo-nos imediatamente do colapso das Torres Gémeas
de Nova Iorque depois do atentado de 11 de Setembro. Não foi por recearmos
estar perante mais do que um acidente, mas antes porque o desenho das Torres
Gémeas não deixa de ser um herdeiro longínquo da arquitectura de Notre-Dame,
monumento fundador do estilo gótico.
Há um paralelo entre as linhas góticas da flecha com 93
metros de altura a desfazer-se nas chamas e os restos retorcidos dos arcos
flamejantes das Twin Towers que correram o mundo no dia seguinte à tragédia de
Nova Iorque. Os 800 anos de história que separam os dois edifícios mostram como
Notre-Dame é um marco não só da civilização europeia mas da história mundial e
um referente que não pára de regressar quando se quer construir em altura.
Se no Ground Zero de Nova Iorque não nasceram cópias das
torres destruídas, tudo parece estar a encaminhar-se para que em Paris seja
feito um restauro integral de Notre-Dame, que começou a ser engolida pelas
chamas na segunda-feira ao final da tarde.
Com os seus oito séculos de história, Notre-Dame sofreu
várias recuperações ao longo dos tempos, a mais célebre das quais iniciada em
1844 por Eugène Viollet-le-Duc e Jean-Baptiste Lassus. Foi nessa altura que se
ergueu a flecha que vimos soçobrar e que dá à catedral a sua altura a raiar os
cem metros, tal como se alterou substancialmente as duas torres da fachada que
nunca tinham sido terminadas.
“Viollet-le-Duc pretendia reverter o edifício à sua suposta
pureza original, mas também reinterpretar a essência dos edifícios,
acrescentando parcelas de que se tinha conhecimento, mas que haviam sido
perdidas, como no caso da flecha”, explica Paulo Almeida Fernandes,
especialista em arquitectura medieval do Museu de Lisboa, lembrando que a
flecha, a que também podemos chamar agulha ou pináculo, procurou inspiração nos
modelos da Catedral de Orléans e da Sainte-Chapelle de Paris.
Por isso, uma das primeiras perguntas a que a equipa de
restauro vai ter de responder é se vai querer reconstruir a reconstrução
idealizada por Viollet-le-Duc. Ou seja, até onde deverá ir o restauro
patrimonial de Notre-Dame do que foi destruído? Deve reconstruir-se algo que já
não era original?
“Sim, mas…”, defende o historiador de arte Paulo Almeida
Fernandes. “O carácter icónico desta flecha justifica a sua reconstrução, pois
é uma marca histórica do monumento, um elemento que singulariza o skyline de
Paris. A flecha da catedral de Notre-Dame é um símbolo agregador da Europa.”
Os falsos históricos
À primeira vista, o arquitecto José Aguiar diz que não tem a
certeza que a flecha de Viollet-le-Duc possa ser considerada “um falso
histórico” ou “um falso artístico”, mesmo que este tipo de restauro já tenha
sido muito criticado, nomeadamente por Cesare Brandi, um dos grandes teóricos
da área no século XX: “Sabemos que Viollet-le-Duc era extremamente rigoroso nas
propostas. Se ele fez a agulha é porque, como em quase todos os seus casos de
restauro, há fundamentação para o fazer.” Neste caso, trata-se de uma iluminura
do Livro de Horas do Duque de Berry, datada do século XIV, que mostra a
existência de uma flecha na Notre-Dame. “Ele era também um dos grandes
conhecedores das técnicas construtivas e das soluções de execução. Ainda hoje
estudamos muito da história construtiva da Idade Média através dos livros de
Viollet-le-Duc. Sobre a sua decisão de reconstruir a agulha ou outras partes
feitas no século XIX, já passou um século e meio e elas próprias são história.
A imagem de Notre-Dame, a sua leitura, está neste momento ligada à visão que
nos deu Viollet-le-Duc. Além dos valores históricos e artísticos, têm que se
acrescentar os valores sociais.”
Logo no dia do incêndio, que está a ser considerado um
acidente, o Presidente francês, Emmanuel Macron, fez eco desse valores sociais
e prometeu reconstruir a catedral porque é isso que os franceses esperam. Já
nesta terça-feira, defendeu que essa reconstrução duraria apenas cinco anos.
Uma tragédia emocional
Para Ana Gerschenfeld, uma parisiense que vive em Portugal
há décadas e trabalha na Fundação Champalimaud, é preciso voltar a dar um
telhado a Notre-Dame, que não pode ficar com três buracos. “Isto é uma
vicissitude da história e não vale a pena ficar como uma ruína. A catedral deve
ser restaurada, mostrando que se fez um restauro, porque as pessoas têm direito
a ter de volta uma Notre-Dame de Paris funcional.”
Ao contrário do que aconteceu com o Ground Zero das Torres
Gémeas ou com as Ruínas do Convento do Carmo, que se seguiram a um atentado
terrorista e a um terramoto, em Paris “é mais uma tragédia emocional do que uma
tragédia humana”. Ana Gerschenfeld, como outros parisienses, sentiu uma imensa
tristeza e as lágrimas vieram-lhe aos olhos: “É como ter o coração da cidade
arrancado de repente. É uma coisa que não se imagina, porque pensamos que as
coisas estão ali para sempre e, de facto, não estão.”
Cada vez que passa pela Notre-Dame, Ana Gerschenfeld, que
foi durante anos jornalista do PÚBLICO, sente essa ligação afectiva: “Faz-me
sorrir cada vez que a vejo. Tal como acontece com a Sé de Lisboa, também me
arranca sempre um sorriso. São proezas e obras lindas do ponto de vista
estético.”
A reconstrução deve prever vários níveis de compromisso com
o património, defende Paulo Almeida Fernandes: “Em primeiro lugar, é
importante que esse projecto seja discutido entre um sólido e multifacetado
corpo técnico, mas alargado aos agentes da gestão patrimonial e envolver os
próprios decisores políticos, pois, em última instância, haverá uma opção
política a tomar.” Depois, as partes da catedral reconstruídas podem ser
realizadas em materiais diferentes dos originais, ou com outro tipo de
coloração, “para que exista uma leitura imediata por parte dos futuros
visitantes de mais esta cicatriz provocada na longa história do edifício”. E
todos os passos dados a partir de segunda-feira devem ser exaustivamente documentados,
“para constituir um fundamentado relatório para memória futura e eventual
musealização”.
O restauro de grande parte do que ardeu é “totalmente
exequível”, diz José Aguiar, professor de conservação e restauro na Faculdade
de Arquitectura da Universidade de Lisboa. “A França tem de certeza disponível
um levantamento com fotogrametria digital e laser, que permitem reconstruir
estes elementos. Acho que se justifica o restauro integral, incluindo a flecha,
porque a história de Notre-Dame também é a história de Viollet-le-Duc, que
criou muitas das bases do restauro contemporâneo.”
Notre-Dame: “Não quero sequer pensar que este incêndio podia
acontecer nos Jerónimos”
O incêndio de Notre-Dame faz-nos perguntar: e se fosse no
mosteiro dos Jerónimos ou no da Batalha? Falámos com os seus directores e
outros técnicos. Há planos de segurança actualizados e ligações aos bombeiros,
mas falta ainda muita coisa, sobretudo formação. DGPC está a preparar uma Carta
de Risco para o património classificado.
Lucinda Canelas 17 de Abril de 2019, 7:30
Não se sabe ainda como começou nem se conhece a dimensão dos
danos patrimoniais que causou. Com o inquérito aberto pelo Ministério Público
francês ainda numa fase muito inicial, o incêndio que durante a tarde e a noite
de segunda-feira destruiu boa parte da catedral de Notre-Dame parece, para já,
estar relacionado com os trabalhos de conservação e restauro que nela estavam a
decorrer. Se a investigação vier a confirmar esta hipótese, será certamente um
paradoxo que a obra que procurava protegê-la e valorizá-la tenha levado a esta
tragédia.
Com milhões de pessoas em todo o mundo a assistir —
atónitas, emocionadas — às imagens da grande catedral de Paris a arder, é
inevitável que muitas delas tenham pensado nos monumentos que têm nos seus
países. Inevitável também para os portugueses. E se fosse o Mosteiro dos
Jerónimos a arder? Ou o da Batalha? Estarão os monumentos nacionais preparados
para impedir tamanha catástrofe ou simplesmente isso não é possível?
Portugal tem dispersos pelo seu território quatro mil
imóveis classificados. Desses, sete estão na esfera da Direcção-Geral do
Património Cultural (DGPC), que tutela também 16 museus. Entre esses sete estão
quatro (Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém foram classificados em
conjunto) com o selo de património da humanidade, atribuído pela UNESCO
(Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Nestes,
como nos restantes, há meios de combate a incêndios, plano de evacuação e
saídas de emergência, informa a DGPC.
“Os planos de segurança dos 23 equipamentos da DGPC foram
aprovados e em cada um deles há pessoas a quem foi dada formação específica,
que sabem exactamente o que fazer em caso de incêndio ou de qualquer outro
acidente natural”, diz ao PÚBLICO Paula Silva, directora-geral do Património.
São funcionários que sabem usar os extintores e as bocas-de-incêndio existentes
para darem uma resposta imediata. “É claro que este primeiro ataque não é
suficiente e, por isso, na área de Lisboa, estes 23 equipamentos estão ligados
em permanência, 24 sobre 24 horas, ao Regimento de Sapadores Bombeiros.”
Esta ligação é garantida pelo Sadiconnect, um sistema que
informa em tempo real os sapadores. “Nas restantes regiões do país, existem
ligações telefónicas normais e automáticas aos serviços de bombeiros ou a
empresas de segurança”, esclarece uma nota da DGPC. A estas medidas acrescem as
vistorias periódicas para aferir da adequação dos planos de segurança,
obedecendo a uma resolução do Conselho de Ministros do ano passado (n.º
13/2018, de 20 de Fevereiro).
“O que aconteceu foi uma verdadeira tragédia, que
infelizmente não é tão anormal como se possa pensar”, acrescenta Paula Silva. É
claro que a importância patrimonial e simbólica de Notre-Dame amplia tudo, diz,
“mas não é raro um monumento arder quando está em obras”.
Sublinhando que é preciso esperar pelas conclusões do
inquérito às causas do incêndio, a directora-geral do Património lembra o que
sucedeu com o edifício dos Paços do Concelho, em Lisboa, em 1996: “O incêndio
começou precisamente na cobertura”, onde decorriam trabalhos.
Graças à “pureza do gótico”
Tanto Paula Silva quanto os directores dos mosteiros dos
Jerónimos e da Batalha, dois monumentos património mundial, sublinham a
importância dos planos de segurança e de outras medidas de autoprotecção, mas
defendem que ninguém pode garantir a 100% que algo como o que sucedeu na
catedral de Paris não acontece na sua própria “casa”.
“Não quero sequer pensar que este incêndio podia acontecer
aqui”, diz Isabel Cruz Almeida, directora do Mosteiro dos Jerónimos, um dos
monumentos que mais intervenções de conservação e restauro teve nos últimos
anos e o mais visitado do universo da DGPC (1,1 milhões de visitantes em 2018).
“Nós temos muita madeira, dentro e fora [nos altares, nas coberturas], e um
fogo com aquela intensidade afecta também a estrutura de pedra. Muito do
recheio do mosteiro saiu para museus ao longo de décadas, mas ainda temos
património integrado importantíssimo, como o retábulo da capela-mor.”
O plano de segurança actualizado e os simulacros que
recentemente foram feitos no mosteiro e na Torre de Belém são importantes para
manter a diminuta equipa mais preparada para um eventual incêndio, mas há
sempre uma certa inevitabilidade. “[Em Notre-Dame] não se contava… É claro que
a catedral tem um plano de segurança e pessoas com formação. Ninguém acredita
que um monumento daqueles, com uma importância simbólica imensa, um ícone em
França e no mundo, que recebe [13] milhões de visitantes por ano, não estivesse
preparado, no entanto aconteceu. França é um exemplo para todos no investimento
que faz e no orgulho que tem no seu património.”
A directora-geral do património lembra, por seu lado, que em
contexto de obra, por vezes, os monumentos descuram alguns aspectos da sua
segurança: “Não estou a dizer que foi o que aconteceu, mas é preciso pôr essa
hipótese.”
Há uma dose de inevitabilidade ou acaso, admite Joaquim
Ruivo, director do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, mais conhecido como
Mosteiro da Batalha, mas o que as avaliações periódicas e os planos de
segurança pretendem é diminuir os factores de risco e garantir uma resposta rápida
em caso de necessidade. “Ninguém está livre de uma catástrofe, mas na Batalha o
incêndio nunca atingiria aquela dimensão.” E porquê? “Porque nós já só temos
cobertura de madeira na Sala do Capítulo e no interior praticamente já não
resta nada”, diz Ruivo, falando do incêndio em Notre-Dame como uma “perda
desoladora”, daquelas de “fazer doer a alma”, que trouxe à memória as catedrais
alemãs arrasadas na Segunda Guerra Mundial.
O Mosteiro da Batalha, como o de Alcobaça ou o Convento de
Cristo em Tomar, entraram num período de degradação após a extinção das ordens
religiosas, em 1834. Foi graças à intervenção de D. Fernando II, o rei artista
que casou com D. Maria II, que a partir de 1840 foi sujeito a um amplo processo
de restauro. Foi a ideia de “pureza do gótico” que orientou as intervenções no
monumento entre 1840 e 1940 que “limpou” o interior do mosteiro, explica o
director.
O edifício, continua Ruivo, sofrera já muito com a terceira
invasão napoleónica, que deitou por terra dois dos seus quatro claustros. “O
que no interior pode arder foi reduzido ao mínimo pelas intervenções que
quiseram deixar no mosteiro praticamente só a pedra. Ainda temos algum
mobiliário, uma imagem ou outra, mas os retábulos, os altares de madeira, as
tapeçarias e até os confessionários já não estão cá. O mosteiro foi reduzido ao
seu esqueleto, à tal beleza do gótico.”
Na Batalha, o quartel dos bombeiros fica a 200 metros e não
há constrangimentos urbanos – nem trânsito, nem edifícios que dificultem o
acesso ao monumento.
Mais formação
O acesso dos bombeiros é importante, diz Esmeralda Paupério,
investigadora do Instituto da Construção da Faculdade de Engenharia da
Universidade do Porto, mas está longe de ser o único factor determinante.
Para esta engenheira civil que muito tem trabalhado na área
dos riscos em património, habituada a cenários de catástrofe em virtude de
sismos, Portugal tem ainda um longo caminho pela frente no que toca à
preservação perante incêndios, tsunamis, inundações e terramotos, apesar de ter
já dado alguns passos seguros. É preciso garantir mais formação aos bombeiros e
aos gestores do património, é preciso criar documentos estratégicos capazes de
clarificar prioridades em termos de intervenção — em cada equipamento e também
no território.
“Quando um bombeiro está a combater um incêndio num
monumento ou num museu ele é chamado, naturalmente, a salvaguardar primeiro as
pessoas e, depois, as obras de arte. Em Portugal, a maioria dos museus não tem
sequer planos de evacuação de património móvel. O bombeiro não sabe o que
resgatar primeiro, não sabe como retirar e transportar as peças. Tem de haver
mais formação, mais articulação entre os sapadores, a protecção civil, o
Património”, defende Esmeralda Paupério, membro do comité de risco do Conselho
Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), que no ano passado organizou no
Porto, com o regimento de sapadores da cidade, uma formação piloto para
gestores do património e bombeiros. “Estamos no bom caminho, mas há que ir mais
longe, dar formação contínua.”
Carta de risco
Para saber onde intervir primeiro no que diz respeito aos
imóveis dispersos pelo território, a Direcção-Geral do Património está a
preparar uma Carta de Risco para o património nacional classificado, o que está
à guarda do Estado, mas também o que se encontra sob a alçada de privados e da
Igreja. Até ao fim do Verão, Paula Silva gostaria de ver terminada a primeira
fase do levantamento que a DGPC está a fazer com as Direcções Regionais de
Cultura. O seu objectivo é apurar o estado de conservação de bens/imóveis
classificados como de Interesse Público ou Monumento Nacional em Portugal
continental.
“Nesta primeira fase vamos incluir apenas os que são
propriedade do Estado [1580], mas depois incluiremos os restantes até a um
total de 4000, que são os que estão classificados”, explica a directora-geral.
“Sem se conhecerem as necessidades, não podemos decidir, não podemos
estabelecer prioridades. A Carta de Risco [do Património Arquitectónico e
Arqueológico Nacional Classificado] é um documento estratégico que já devia
existir há muito tempo.”
Esmeralda Paupério concorda. “Sem a Carta de Risco não
saberemos por onde começar”, acrescenta a engenheira civil que faz questão de
lembrar que, tirando Inglaterra, que criou “normas indicativas”, nenhum outro
país dispõe de planos de segurança específicos para o património em contexto de
obra.
“Não é por acaso que isto acontece na grande catedral de
Paris quando estão obras a decorrer nas coberturas. Os espaços são exíguos, há
muitas especialidades [profissionais de várias áreas] a trabalhar ao mesmo tempo,
há rebarbadoras, extensões [eléctricas] e geralmente prazos curtos. Há regras a
seguir para a segurança dos trabalhadores mas não para a do património.” E
estas regras são também importantes nos centros históricos, mesmo quando se
trata de reabilitar edifícios não classificados: “Facilmente um incêndio passa
de um prédio ou de uma casa para uma igreja com centenas de anos.”
Tragédias como a de Notre-Dame, diz Esmeralda Paupério,
obrigam os políticos a olhar para o património e a repensar o seu financiamento.
“Muitos políticos tendem a minimizar a importância do património e fazem mal.
Quando estive nos sismos do Nepal [2015] e do México [2017] pude ver o valor
identitário que um templo, uma igreja, um monumento pode ter para uma
comunidade. As pessoas preferem que sejam reconstruídos primeiro do que as suas
próprias casas. O património é um símbolo de resiliência.”
tp.ocilbup@salenacl
Sem comentários:
Enviar um comentário