Assim não dá, senhores deputados
A palavra “transparência” rima com “indecência”, e não deve
ser por acaso. Esta comissão foi uma vergonha.
João Miguel Tavares
2 de Abril de 2019, 6:55
Colocar os deputados
a legislar em causa própria é assim como colocar as raposas a legislar sobre os
direitos das galinhas. A carne fica para eles; as penas ficam para nós. E se
acaso este comentário lhe parecer injusto ou demagógico, caro leitor, é porque
não acompanhou com a devida atenção a recta final da chamada Comissão da
Transparência – que manteve com a transparência uma relação semelhante àquela
que a República Democrática Alemã mantinha com a democracia.
Os deputados queixam-se muitas vezes que a classe política é
injustamente maltratada pela opinião pública. Salvo raras excepções, não é. O
desprestígio é merecido. Porque são os próprios deputados que se transformam
numa caricatura do servidor público ao aprovarem uma série de medidas
apresentadas à 25.ª hora, que basicamente são salvo-condutos para que tudo
fique na mesma em termos de ofertas, viagens ou incompatibilidades.
Convém recordar alguns factos essenciais. A Comissão da
Transparência foi criada a 20 de Abril de 2016. Na altura, tinha 180 dias para
aprovar propostas que permitissem o aperfeiçoamento do Estatuto dos Deputados,
do lobbying e do regime de incompatibilidades. Era considerada uma matéria
urgente e essencial para a credibilização da actividade política. Infelizmente,
não houve conclusões, e a Comissão da Transparência foi prorrogando o prazo
para finalizar os trabalhos, sem nunca concluir se concluía alguma coisa, ou
não. Mais de 1000 dias depois, eis que chega o fatídico 31 de Março, data
derradeira para a comissão apresentar serviço.
E o que acontece? Insatisfeito com o pouco tempo que teve
para trabalhar, o PSD entra em ritmo de contra-relógio, apresentando umas
ideias de última hora que acabaram por ser viabilizadas com a abstenção do PS.
E que ideias são essas? Basicamente, uma série de propostas para que o maior
cancro do Parlamento ao nível do conflito de interesses – o facto de ninguém
saber se os deputados-juristas fazem política em nome do povo ou se produzem
legislação em nome da sociedade de advogados para a qual trabalham – permaneça
praticamente inalterada.
Em Portugal, um deputado da nação pode perfeitamente ser
advogado, consultor, administrador e até accionista de empresas que celebram
contratos com entidades públicas. A única restrição é não deter mais de 10% do
seu capital social. O novo Estatuto de Deputados era suposto mudar isso. E, de
facto, foi votada favoravelmente a proibição de “exercer o patrocínio
judiciário” em processos “a favor ou contra o Estado”. Mas, à última hora, o PSD
decidiu introduzir uma subtileza: o deputado não pode, mas pode a sociedade de
advogados para a qual ele trabalha, desde que o próprio não intervenha no
processo.
Há mais exemplos de micro-alterações que praticamente deixam
tudo como está. Os deputados estão proibidos de prestar serviços a “empresas ou
sociedades de crédito, seguradoras e financeiras”? Sim, estão. A não ser que já
o fizessem antes de serem eleitos deputados – nesse caso, podem continuar a
trabalhar à vontade para o sector financeiro. Prendas acima dos 150 euros?
Podem receber, desde que o deputado avise os serviços do Parlamento e estes
digam que pode ficar com ela. Viagens a convite? Também está tudo OK, sem
qualquer discriminação de valor, desde que se trate de um “acto de cortesia ou
urbanidade institucional” (o próximo Europeu já está assegurado!). A palavra
“transparência” rima com “indecência”, e não deve ser por acaso. Esta comissão
foi uma vergonha.
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