A perseguição dos cristãos é um assunto sério
No século XXI, as comunidades cristãs já não são as
opressoras. Elas são, na sua esmagadora maioria, as vítimas. Isto não é normal,
e não pode ser aceite com um encolher de ombros.
João Miguel Tavares
22 de Abril de 2019, 20:51
Para quem olha para si próprio como membro de uma comunidade
privilegiada e historicamente opressora, eu sei que esta é uma conversa difícil
de ter. Mas já vai sendo hora de começarmos. A capa do PÚBLICO de segunda-feira
tinha a coragem de sublinhar o aspecto mais importante do bárbaro massacre no
Sri Lanka: ele foi, em primeiro lugar, um atentado religiosamente motivado,
contra cristãos, em dia de Páscoa.
Não foi um caso isolado. Os cristãos estão a ser diariamente
perseguidos no Médio Oriente, no norte de África e na Ásia, com uma intensidade
e uma violência como há muito não se via. Compreendo que a má consciência
ocidental em relação a países que há 75 anos eram colónias suas complexifique
certas tomadas de posição. Ninguém tem quaisquer dúvidas acerca da brutal
violência que acompanhou os processos de missionação cristã. Mas esse mundo
acabou, e o discurso da tolerância religiosa não pode ser hoje só para os
outros. O facto de um branco supremacista atacar duas mesquitas em
Christchurch, causando 50 mortos, não nos pode fazer esquecer a dureza de
outros números. E eles não deixam margem para dúvidas: no século XXI, as
comunidades cristãs já não são as opressoras. Elas são, na sua esmagadora
maioria, as vítimas.
Aos 290 mortos deste domingo no Sri Lanka, há que juntar os
147 que morreram na Universidade Católica de Garissa, Quénia, na Sexta-Feira
Santa de 2015, às mãos de um grupo islâmico somali. E os 72 cristãos que
morreram num parque de Lahore, Paquistão, no domingo de Páscoa de 2016,
enquanto celebravam o feriado, num ataque reivindicado pelos talibãs locais.
Mais as 45 pessoas que morreram no Egipto em ataques do Estado Islâmico a duas
igrejas cristãs coptas, no Domingo de Ramos de 2017. E ainda as 21 que morreram
no duplo atentado (também ele reivindicado pelo Estado Islâmico) durante uma
missa na catedral de Jolo, Filipinas, em Janeiro deste ano. Os exemplos
poderiam continuar, desde logo com a situação dramática dos cristãos sírios.
Ainda no fim-de-semana passado, o ministro dos Negócios
Estrangeiros britânico, Jeremy Hunt, escreveu 40 cartas a líderes cristãos para
celebrar a Páscoa, onde dava conta de que 300 cristãos são assassinados todos
os meses por causa da sua fé. E que há 245 milhões de cristãos, no mundo
inteiro, que estão a ser actualmente perseguidos devido à religião que
professam. Infelizmente, estes números tardam em chegar aos telejornais, tal
como não tem chegado – ou tem chegado de forma demasiado envergonhada – o
número espantoso de actos de vandalismo contra igrejas cristãs em França,
durante o ano de 2019 (e não, não estou a contar com o incêndio, ao que tudo
indica acidental, em Notre-Dame). Isto não é normal, e não pode ser aceite com
um encolher de ombros.
Note-se que, no caso de alguma das comunidades cristãs do
Médio Oriente, nem sequer estamos a falar de cristãos nascidos das campanhas de
missionação do século XVI ou XVII. Muitas daquelas comunidades estão ali desde
a fundação do cristianismo, e resistiram a séculos de dificuldades e
perseguições (incluindo o impressionante genocídio dos cristãos arménios). A
passividade com que encaramos os massacres destes cristãos – que são também
massacres culturais, dada a sobreposição entre identidade e religião – começa a
ser cada vez mais difícil de aceitar. Até porque no dia em que assumirmos que o
multiculturalismo é só para o paladar ocidental, a falência dos nossos valores
estará definitivamente decretada.
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