ENTREVISTA DIA DA TERRA 2019
A cidade do futuro não se pode limitar a “um pozinho de
verde esteticamente aprazível”
Teresa Marat-Mendes, investigadora e professora
universitária, afirma que tem havido muito show-off sobre sustentabilidade
urbana, mas que a grande mudança ainda está por fazer.
A cidade do futuro não se pode limitar a “um pozinho de
verde esteticamente aprazível”
“O PDM de Lisboa é o único, na área metropolitana, que tem
no seu caderno introdutório a bandeira da sustentabilidade. Mas o que é que lá
defende? Não é ecologia, nada disso. A sustentabilidade é virada para o
turismo, para o lazer. É show-off.”
Teresa Marat-Mendes, investigadora e professora universitária,
afirma que tem havido muito show-off sobre sustentabilidade urbana, mas que a
grande mudança ainda está por fazer.
João Pedro Pincha 22
de Abril de 2019, 6:32
Teresa Marat-Mendes, que lecciona a cadeira de Urbanismo
Ecológico no ISCTE, em Lisboa, está desde o ano passado envolvida no projecto
SPLACH -- Spatial Planning for Change, que olha para tudo o que uma cidade faz
e consome e, com base nisso, procura desenhar políticas que conduzam Portugal a
sistemas urbanos mais sustentáveis.
Arquitectura brutalista com um toque de especiaria orientalPensar
uma cidade não pode ser apenas pensar em dinheiro, diz a investigadora, que
defende a inclusão de um factor ético no urbanismo e avisa que, para a vida
citadina não se tornar insuportável, o consumo terá necessariamente de
diminuir.
Urbanismo ecológico – esta expressão parece contraditória.
Como é que uma cidade, com todas as suas necessidades, consegue ser ecológica?
Eu não considero contraditório. O urbanismo que temos hoje é
que é contraditório dessa vontade ecológica. Já houve urbanismos mais ecológicos
do que hoje. Para termos um urbanismo ecológico é necessário mudar cabeças e
valores – para que o urbanismo possa ir ao encontro desses elementos da
ecologia. Hoje há outros valores que estão acima quer dos valores sociais quer
dos valores ambientais. São valores não tanto da economia, mas de uma
crematística económica. Isso transporta-se para o urbanismo através da questão
do solo. O valor que se atribui ao solo é apenas monetário ou de mercado, não é
um valor que olhe para as questões da ecologia. Como não se atribui valor a
isso, o urbanismo ainda não é ecológico. No dia-a-dia das cidades tem muito a
ver com a mensagem que os políticos possam ir passando às pessoas, a mensagem
entre vizinhos, o diálogo é muito importante. É preciso uma aculturação.
É um ónus muito individual.
Tão individual quanto global. Isto não depende só da vontade
de um governo, depende também da vontade de uma pessoa, é um trabalho
colectivo.
Quando se fala em arquitectura sustentável lá vem um pozinho
de verde que é esteticamente aprazível. E depois? Quais são os benefícios
sociais e ecológicos desse pozinho de verde?
Esta preocupação por um urbanismo mais sustentável já tem
bastante tempo, mas parece esporádica, confinada a poucos arquitectos e
urbanistas.
As cabeças de hoje vêem o urbanismo entregue apenas a uma
personagem. Culturalmente a sociedade está ainda muito formatada neste sentido.
Mas isso não é benéfico para ter um urbanismo mais ecológico. No tempo dos
maias matavam-se as crianças e associa-se isso a cultos religiosos. Não era.
Quando os recursos daquelas cidades terminavam, era preciso conter o volume de
população. Matavam-se os mais fracos, os mais débeis, os que estavam em pior
condição. Cada vez somos mais desde a Segunda Grande Guerra. A desigualdade entre
os pobres e os ricos é cada vez maior e entre cidades mais sustentáveis e menos
sustentáveis é também cada vez maior. Enquanto as desigualdades não forem
trabalhadas, o urbanismo ecológico não se consegue.
O factor ético entra neste urbanismo?
Há um factor ético no urbanismo ecológico.
Mas no actual ainda há sobretudo um factor económico e
depois um estético.
Sim, e mesmo quando se fala em sustentabilidade é muito
estético. Quando se fala em arquitectura sustentável lá vem um pozinho de verde
que é esteticamente aprazível. E depois? Quais são os benefícios sociais e
ecológicos desse pozinho de verde? É como os corredores verdes, que afinal
acabam por ser pequenas manchas e não corredores contínuos. É agradável, temos
ali mais um pulmãozinho, mas não há um trabalho estratégico, global, de pensar
com a sociedade e com o território. Portanto, há sempre outros valores que
falam mais alto. A questão ética é muito importante.
A sustentabilidade é virada para o turismo, para o lazer. É
show-off. Há um clique mental que não está a ser feito.
Se esta discussão já tem tanto tempo, porque é que leva
tanto tempo a mudar?
O PDM de Lisboa é o único, na área metropolitana, que tem no
seu caderno introdutório a bandeira da sustentabilidade. Mas o que é que lá
defende? Não é ecologia, nada disso. A sustentabilidade é virada para o
turismo, para o lazer. É show-off. Há um clique mental que não está a ser
feito. Está a demorar muito. Vivemos, de há uma ou duas décadas para cá, da
cultura do mostrar: “quem é o arquitecto de renome?”. Se eu lhe perguntar qual
é a escola de arquitectura de referência em Portugal? Onde é que há uma
corrente de arquitectura que tenha iluminado umas tantas cabeças para pensar
sobre habitação, espaço colectivo e ecologia? Não há. Mas se eu disser “há aqui
um arquitecto…”, “ah sim, aquele fulano tem não sei quantos projectos”. É
sempre “o”, não há uma política de colectivo. Culturalmente, ainda estamos com
um ego imenso, difícil de abandonar.
Isso faz lembrar o processo SAAL, que era colectivo.
E que agarrou uma geração de arquitectos, em que todos se
davam bem e funcionavam em colectivo porque tinham um ideal. Hoje não há.
Era também muito politizado.
Havia um contexto político que os agarrava e os unia. Mas as
questões da sustentabilidade e das alterações climáticas são uma bandeira mais
do que suficiente para juntar esta gente toda. Não há essa vontade. Nós vemos
os PDM e as políticas de vários sectores e a sustentabilidade está lá, mas muito
vulgarizada.
O homem urbano está completamente desligado do terreno que
ocupa?
Acho que sim. E hoje diz-se que a sociedade civil não
intervém politicamente. Mas quem devia estar a fazer um esforço para
comprometer a sociedade civil a intervir não está a fazê-lo. Não há um
desígnio, vive-se de estrelas. Vivemos num Big Brother permanente. O que é bom
é comentar o que o outro fez, não é contribuir para algo.
O urbanismo do futuro, numa perspectiva ecológica e
sustentável, é necessariamente mais comedido no consumo?
Terá de ser. A todos os níveis. É preciso a sociedade
combater um outro paradigma que tem, o do crescimento. Hoje, crescimento é
“mais”. Quando o crescimento pode ser “manter, em qualidade”. Queremos uma casa
maior, um carro maior, só mudamos de emprego se o salário for maior. É sempre
esta cultura do engrandecimento. Para alcançarmos um urbanismo ecológico
teremos de ir inevitavelmente por uma teoria de decrescimento.
Mas esse decrescimento pode, pelo menos na aparência, estar
associado a uma perda de qualidade de vida.
Não necessariamente.
Como é que se contraria esta ideia?
Provando que com menos se consegue fazer bem a vida. Na
alimentação, por exemplo: em vez de comer um prato cheio, em que saí enfardada
e até precisei de uma grande sesta a seguir, se calhar comer apenas aquilo que
é suficiente. O próprio aparelho digestivo vai acomodando. E a cidade também
vai fazendo isso. Os bairros precisam de ser redesenhados para que a pessoa
possa ir a pé, não dar por garantido que toda a gente tem carro e por isso vou
fazer o centro comercial ali. O decrescimento passa por isto: olhar não só para
o volume, mas também para as condições das pessoas.
É isso o metabolismo urbano?
Quem faz o metabolismo muito bem são os engenheiros.
Calculam todos os materiais que entram na cidade, depois todos os materiais que
saem. E dizem que uma cidade é mais eficiente do que outra, é mais sustentável.
É isto que me interessa: como é que com estes inputs podemos reduzir os
outputs, os resíduos, mexendo um pouquinho na cidade? A cidade é um reflexo da
necessidade das pessoas – e se hoje temos centros comerciais e muitas
infra-estruturas é porque as pessoas estão a pedi-las. Estamos a dizer que sim,
que podem fazê-las porque nós vamos usá-las. No momento em que deixarmos de
dizer que sim, esse decrescimento vai-se dar.
Queremos uma casa maior, um carro maior, só mudamos de
emprego se o salário for maior. Para um urbanismo ecológico teremos de ir por
uma teoria de decrescimento.
É uma pescadinha de rabo na boca?
Os centros comerciais vão continuar a existir. Mas porquê?
Porque lá fora não há soluções: o espaço público não é melhorado. Num centro
comercial onde é que estão as pessoas? Sentadas a ler o jornal, nos bancos. É
confortável, não chove, está limpo. Vai-se à rua e não está. Há ali um cuidado
que não houve no espaço público É uma pescadinha de rabo na boca, mas as
transformações vão acontecendo. Devagar, porque estas coisas não acontecem de
um dia para o outro. Se o preço da comida subir muito, isto vai impor novas organizações.
Portanto tem de ser à força?
Não é à força. Há zonas da área metropolitana de Lisboa que
vão estar mais desprotegidas, sobretudo as que foram planeadas depois dos anos
1980 e 1990.
Como é que se mexe numa cidade consolidada?
Pois…
E que não pára de crescer, de receber pressões?
Há que ter muita vontade. A sociedade tem de ir criando uma
cultura mais exigente, mas terá de haver decisores que olhem para o planeamento
de outra forma e não apenas para o preço do solo. E que avaliem as suas
decisões consoante os seus impactos éticos, sociais, económicos e ambientais.
Muitas vezes estão no papel mas não são, de facto, acautelados.
Tem-se interessado pelo sistema alimentar. Porquê?
O sistema alimentar está muito ausente do planeamento
urbano, está entregue aos privados. A questão alimentar não faz parte das
políticas urbanas. Qual é a primeira coisa que faz de manhã, quando se levanta?
Comer.
Pois. Toda a gente. A água e o alimento são os dois bens que
têm de ser considerados individual e colectivamente.
Com o crescimento das cidades e a eliminação dos terrenos
agrícolas, a alimentação foi deixada lá para fora.
Lá para fora. A cidade é hoje um espaço em que a questão
alimentar não é mais do que consumo. Estamos preocupados em perceber quais são
os supermercados que aqui podem entrar, mas a questão da agricultura, da
produção, não entra. Hoje já há arquitectura que permite fazê-lo. É preciso é
haver vontade. Se a vontade de quem decide é olhar para o preço do terreno, que
urbanizado é mais valioso do que agrícola e se for para a empresa X pode ser
urbanizado e Y vai para os cofres…
Devíamos pensar: isto não dá mais. Estamos todos ainda muito
formatados para pensar que alguém vai fazer por nós. Alguém vai tratar dos
resíduos, alguém vai tratar da questão alimentar, alguém vai tratar disto e é
dever deles e eu pago os meus impostos.
E com o lixo é o mesmo. É um dos maiores problemas da
sociedade hoje. Mas está tudo entregue a agências, não há aqui um sentido de
envolver a sociedade para reciclar ela própria. Se for à Baixa de Lisboa, onde
não vive praticamente ninguém, veja o monte de lixo que há e os horários para a
colecta. É impressionante o número de lojas que já estão a comprar ou arrendar
espaços para poderem pôr as embalagens. Para acomodar lixo. Como não conseguem
dar vazão a tudo numa só colecta, vão acumulando. Havia outra forma, que era
não haver tanto resíduo. Isto é o reflexo mais evidente de que o tecido urbano
não era para este tipo de intensidade de utilização, de comportamento de uso.
Se calhar podia ter a mesma intensidade de consumo, mas a forma como aqueles
bens ali chegam podia ser diferente. Isto é já um sinal de que o tecido urbano
não está preparado para aquilo. Devíamos pensar: isto não dá mais. Estamos
todos ainda muito formatados para pensar que alguém vai fazer por nós. Alguém
vai tratar dos resíduos, alguém vai tratar da questão alimentar, alguém vai
tratar disto e é dever deles e eu pago os meus impostos.
Nós, enquanto espécie, já soubemos tudo isto, já fizemos
tudo isto.
Sim, a cultura não é uma coisa que se faça de um dia para o
outro. É o registo dos hábitos, das crenças e valores de um colectivo. Hoje
acreditamos nisto. Mas, por exemplo, aqui em Lisboa fomos rurais até muito
tarde, até aos anos 50/60. Foi nos anos 60 que recebemos o surto migratório da
população rural. Acredito que, pelo facto de termos tido a ruralidade até tão
tarde, essa amnésia não é generalizada. Pelo facto de não termos tido
bombardeamentos na Segunda Guerra Mundial, os vestígios de ruralidade ainda cá
estão. Por outro lado, os outros países tiveram de dar a volta. A rainha de
Inglaterra fez logo uma horta na sua casa. Londres foi bombardeada e ficou sem
recursos. Promoveu-se a ideia de que, para sobreviver em Inglaterra, toda a
gente tinha de ter hortas. Aqui não passámos por esse flagelo, não passámos
pela urgência da necessidade. Havendo uma catástrofe, as coisas mudam.
Mas precisamos de uma?
Não sabemos o rumo da coisa. Há governos que se estão a
preparar. A Grécia está a dar a volta, sobretudo porque viveu uma crise muito
profunda. Há muita miséria, muita desigualdade. O problema da sustentabilidade
é a desigualdade.
E é uma coisa que se tende a agravar, com as pressões cada
vez maiores sobre a cidade?
Sim. Enquanto se der continuidade ao modelo de planeamento
que temos, com base num sistema capitalista em que o solo é que é o valor, não
há outro rumo. O solo tem um valor que deve ser reconhecido, mas há valor no
solo que não está a ser reconhecido. A sua capacidade produtiva, a sua
capacidade de regeneração do resíduo, tudo isso. Quando constrói um prédio,
devia também dar a provar outras componentes, porque o valor do prédio não pode
ser só aquele. Enquanto não se entender a capacidade produtiva e social do
solo, as coisas não mudam. Mas eu não quero dar uma ideia fatalista!
Então fale-nos de bons exemplos.
Uns alunos meus belgas trouxeram-me este exemplo da Bélgica.
Há um bairro que tem um lote onde as pessoas vão pôr os resíduos orgânicos do
que consomem em casa. E esse bairro tem um porco que vai lá alimentar-se disso.
Quando há a matança do porco, a carne é dividida por todos. Nós rimo-nos ao
pensar num porco no meio do bairro. Pois, mas o porco está ali a fazer qualquer
coisa. Isto é urbano, não é uma experiência rural! Há pequenos gestos que
mostram que as coisas podem ir mudando. O problema está em que muitos deles não
são um negócio, não se consegue retirar dali lucro. Em Portugal ainda existe
muito este culto de que a inovação tem de estar ao serviço da economia. E a
economia é uma disciplina quase só voltada para a questão crematística, de
aumentar o lucro. Mas a economia não é só o lucro financeiro, é saber trabalhar
outras questões.
O solo tem um valor que deve ser reconhecido, mas há valor
no solo que não está a ser reconhecido. Enquanto não se entender a capacidade
produtiva e social do solo, as coisas não mudam.
O governo da casa.
Sim. E não está a conseguir. Há muitos economistas com
valores sociais, mas quem de facto está a fazer a gestão da casa está muito
voltado para o lucro, para o crescimento. O urbanismo ecológico não se vai
conseguir de outra forma se não com passos modestos. E com arquitectura modesta
e personalidades que podem até nem ter nome. As pessoas. Os arquitectos.
Enquanto continuarmos a achar que é preciso o supra-sumo, o topo não sei de
quê, que venha cá o Frank Gehry…não vamos sair daqui. Estamos à espera de uma
solução-milagre para a forma urbana, mas ela não existe. A forma urbana só é
boa quando é bem utilizada. Não é a forma urbana que está errada, são as
actividades que fazemos na cidade de hoje. A agricultura é uma actividade
nossa, nós é que não a quisemos. Não queremos nem exigimos, o que eu acho que é
errado. A sustentabilidade não é se vamos ter um edifício sustentável, todo
ecológico, é pensar que ele precisa de recursos. Aquilo que mais vai mudar as
cidades no futuro é quando elas atingirem um nível de cultura que permita que
as pessoas tenham outras práticas. A primeira coisa que o urbanismo tem de
dizer é: vamos preparar, para as pessoas não dizerem que não.
Esta questão da sustentabilidade ainda é muito vista como
uma preocupação da classe média-alta. As pessoas que andam a lutar para
sobreviver não têm tempo para pensar nisto.
Fazem-no inconscientemente. As pessoas que lutam para
sobreviver, é essa mesmo a palavra, não põem tudo no lixo. Guardam coisas com a
esperança de um dia as reciclar, não dizem é que o propósito é esse. Um frasco
de vidro pode servir para o doce de morango da próxima vez. As pessoas com mais
dificuldades económicas não referem nunca que estão a trabalhar para a
sustentabilidade, mas usam os princípios da reciclagem e da resiliência das
coisas por uma questão de necessidade. Limitar o resíduo faz parte do seu
corolário diário. Têm uma consciência do limite dos recursos.
tp.ocilbup@ahcnip.oaoj
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