segunda-feira, 22 de abril de 2019

ENTREVISTA DIA DA TERRA 2019



ENTREVISTA DIA DA TERRA 2019
A cidade do futuro não se pode limitar a “um pozinho de verde esteticamente aprazível”

Teresa Marat-Mendes, investigadora e professora universitária, afirma que tem havido muito show-off sobre sustentabilidade urbana, mas que a grande mudança ainda está por fazer.
A cidade do futuro não se pode limitar a “um pozinho de verde esteticamente aprazível”
“O PDM de Lisboa é o único, na área metropolitana, que tem no seu caderno introdutório a bandeira da sustentabilidade. Mas o que é que lá defende? Não é ecologia, nada disso. A sustentabilidade é virada para o turismo, para o lazer. É show-off.”
Teresa Marat-Mendes, investigadora e professora universitária, afirma que tem havido muito show-off sobre sustentabilidade urbana, mas que a grande mudança ainda está por fazer.

João Pedro Pincha  22 de Abril de 2019, 6:32

Teresa Marat-Mendes, que lecciona a cadeira de Urbanismo Ecológico no ISCTE, em Lisboa, está desde o ano passado envolvida no projecto SPLACH -- Spatial Planning for Change, que olha para tudo o que uma cidade faz e consome e, com base nisso, procura desenhar políticas que conduzam Portugal a sistemas urbanos mais sustentáveis.

Arquitectura brutalista com um toque de especiaria orientalPensar uma cidade não pode ser apenas pensar em dinheiro, diz a investigadora, que defende a inclusão de um factor ético no urbanismo e avisa que, para a vida citadina não se tornar insuportável, o consumo terá necessariamente de diminuir.

Urbanismo ecológico – esta expressão parece contraditória. Como é que uma cidade, com todas as suas necessidades, consegue ser ecológica?
Eu não considero contraditório. O urbanismo que temos hoje é que é contraditório dessa vontade ecológica. Já houve urbanismos mais ecológicos do que hoje. Para termos um urbanismo ecológico é necessário mudar cabeças e valores – para que o urbanismo possa ir ao encontro desses elementos da ecologia. Hoje há outros valores que estão acima quer dos valores sociais quer dos valores ambientais. São valores não tanto da economia, mas de uma crematística económica. Isso transporta-se para o urbanismo através da questão do solo. O valor que se atribui ao solo é apenas monetário ou de mercado, não é um valor que olhe para as questões da ecologia. Como não se atribui valor a isso, o urbanismo ainda não é ecológico. No dia-a-dia das cidades tem muito a ver com a mensagem que os políticos possam ir passando às pessoas, a mensagem entre vizinhos, o diálogo é muito importante. É preciso uma aculturação.

É um ónus muito individual.
Tão individual quanto global. Isto não depende só da vontade de um governo, depende também da vontade de uma pessoa, é um trabalho colectivo.

Quando se fala em arquitectura sustentável lá vem um pozinho de verde que é esteticamente aprazível. E depois? Quais são os benefícios sociais e ecológicos desse pozinho de verde?

Esta preocupação por um urbanismo mais sustentável já tem bastante tempo, mas parece esporádica, confinada a poucos arquitectos e urbanistas.
As cabeças de hoje vêem o urbanismo entregue apenas a uma personagem. Culturalmente a sociedade está ainda muito formatada neste sentido. Mas isso não é benéfico para ter um urbanismo mais ecológico. No tempo dos maias matavam-se as crianças e associa-se isso a cultos religiosos. Não era. Quando os recursos daquelas cidades terminavam, era preciso conter o volume de população. Matavam-se os mais fracos, os mais débeis, os que estavam em pior condição. Cada vez somos mais desde a Segunda Grande Guerra. A desigualdade entre os pobres e os ricos é cada vez maior e entre cidades mais sustentáveis e menos sustentáveis é também cada vez maior. Enquanto as desigualdades não forem trabalhadas, o urbanismo ecológico não se consegue.



O factor ético entra neste urbanismo?
Há um factor ético no urbanismo ecológico.

Mas no actual ainda há sobretudo um factor económico e depois um estético.
Sim, e mesmo quando se fala em sustentabilidade é muito estético. Quando se fala em arquitectura sustentável lá vem um pozinho de verde que é esteticamente aprazível. E depois? Quais são os benefícios sociais e ecológicos desse pozinho de verde? É como os corredores verdes, que afinal acabam por ser pequenas manchas e não corredores contínuos. É agradável, temos ali mais um pulmãozinho, mas não há um trabalho estratégico, global, de pensar com a sociedade e com o território. Portanto, há sempre outros valores que falam mais alto. A questão ética é muito importante.

A sustentabilidade é virada para o turismo, para o lazer. É show-off. Há um clique mental que não está a ser feito.
Se esta discussão já tem tanto tempo, porque é que leva tanto tempo a mudar?
O PDM de Lisboa é o único, na área metropolitana, que tem no seu caderno introdutório a bandeira da sustentabilidade. Mas o que é que lá defende? Não é ecologia, nada disso. A sustentabilidade é virada para o turismo, para o lazer. É show-off. Há um clique mental que não está a ser feito. Está a demorar muito. Vivemos, de há uma ou duas décadas para cá, da cultura do mostrar: “quem é o arquitecto de renome?”. Se eu lhe perguntar qual é a escola de arquitectura de referência em Portugal? Onde é que há uma corrente de arquitectura que tenha iluminado umas tantas cabeças para pensar sobre habitação, espaço colectivo e ecologia? Não há. Mas se eu disser “há aqui um arquitecto…”, “ah sim, aquele fulano tem não sei quantos projectos”. É sempre “o”, não há uma política de colectivo. Culturalmente, ainda estamos com um ego imenso, difícil de abandonar.

Isso faz lembrar o processo SAAL, que era colectivo.
E que agarrou uma geração de arquitectos, em que todos se davam bem e funcionavam em colectivo porque tinham um ideal. Hoje não há.

Era também muito politizado.
Havia um contexto político que os agarrava e os unia. Mas as questões da sustentabilidade e das alterações climáticas são uma bandeira mais do que suficiente para juntar esta gente toda. Não há essa vontade. Nós vemos os PDM e as políticas de vários sectores e a sustentabilidade está lá, mas muito vulgarizada.

O homem urbano está completamente desligado do terreno que ocupa?
Acho que sim. E hoje diz-se que a sociedade civil não intervém politicamente. Mas quem devia estar a fazer um esforço para comprometer a sociedade civil a intervir não está a fazê-lo. Não há um desígnio, vive-se de estrelas. Vivemos num Big Brother permanente. O que é bom é comentar o que o outro fez, não é contribuir para algo.

O urbanismo do futuro, numa perspectiva ecológica e sustentável, é necessariamente mais comedido no consumo?
Terá de ser. A todos os níveis. É preciso a sociedade combater um outro paradigma que tem, o do crescimento. Hoje, crescimento é “mais”. Quando o crescimento pode ser “manter, em qualidade”. Queremos uma casa maior, um carro maior, só mudamos de emprego se o salário for maior. É sempre esta cultura do engrandecimento. Para alcançarmos um urbanismo ecológico teremos de ir inevitavelmente por uma teoria de decrescimento.

Mas esse decrescimento pode, pelo menos na aparência, estar associado a uma perda de qualidade de vida.
Não necessariamente.

Como é que se contraria esta ideia?
Provando que com menos se consegue fazer bem a vida. Na alimentação, por exemplo: em vez de comer um prato cheio, em que saí enfardada e até precisei de uma grande sesta a seguir, se calhar comer apenas aquilo que é suficiente. O próprio aparelho digestivo vai acomodando. E a cidade também vai fazendo isso. Os bairros precisam de ser redesenhados para que a pessoa possa ir a pé, não dar por garantido que toda a gente tem carro e por isso vou fazer o centro comercial ali. O decrescimento passa por isto: olhar não só para o volume, mas também para as condições das pessoas.

É isso o metabolismo urbano?
Quem faz o metabolismo muito bem são os engenheiros. Calculam todos os materiais que entram na cidade, depois todos os materiais que saem. E dizem que uma cidade é mais eficiente do que outra, é mais sustentável. É isto que me interessa: como é que com estes inputs podemos reduzir os outputs, os resíduos, mexendo um pouquinho na cidade? A cidade é um reflexo da necessidade das pessoas – e se hoje temos centros comerciais e muitas infra-estruturas é porque as pessoas estão a pedi-las. Estamos a dizer que sim, que podem fazê-las porque nós vamos usá-las. No momento em que deixarmos de dizer que sim, esse decrescimento vai-se dar.

Queremos uma casa maior, um carro maior, só mudamos de emprego se o salário for maior. Para um urbanismo ecológico teremos de ir por uma teoria de decrescimento.

É uma pescadinha de rabo na boca?
Os centros comerciais vão continuar a existir. Mas porquê? Porque lá fora não há soluções: o espaço público não é melhorado. Num centro comercial onde é que estão as pessoas? Sentadas a ler o jornal, nos bancos. É confortável, não chove, está limpo. Vai-se à rua e não está. Há ali um cuidado que não houve no espaço público É uma pescadinha de rabo na boca, mas as transformações vão acontecendo. Devagar, porque estas coisas não acontecem de um dia para o outro. Se o preço da comida subir muito, isto vai impor novas organizações.

Portanto tem de ser à força?
Não é à força. Há zonas da área metropolitana de Lisboa que vão estar mais desprotegidas, sobretudo as que foram planeadas depois dos anos 1980 e 1990.

Como é que se mexe numa cidade consolidada?
Pois…


E que não pára de crescer, de receber pressões?
Há que ter muita vontade. A sociedade tem de ir criando uma cultura mais exigente, mas terá de haver decisores que olhem para o planeamento de outra forma e não apenas para o preço do solo. E que avaliem as suas decisões consoante os seus impactos éticos, sociais, económicos e ambientais. Muitas vezes estão no papel mas não são, de facto, acautelados.

Tem-se interessado pelo sistema alimentar. Porquê?
O sistema alimentar está muito ausente do planeamento urbano, está entregue aos privados. A questão alimentar não faz parte das políticas urbanas. Qual é a primeira coisa que faz de manhã, quando se levanta?

Comer.
Pois. Toda a gente. A água e o alimento são os dois bens que têm de ser considerados individual e colectivamente.

Com o crescimento das cidades e a eliminação dos terrenos agrícolas, a alimentação foi deixada lá para fora.
Lá para fora. A cidade é hoje um espaço em que a questão alimentar não é mais do que consumo. Estamos preocupados em perceber quais são os supermercados que aqui podem entrar, mas a questão da agricultura, da produção, não entra. Hoje já há arquitectura que permite fazê-lo. É preciso é haver vontade. Se a vontade de quem decide é olhar para o preço do terreno, que urbanizado é mais valioso do que agrícola e se for para a empresa X pode ser urbanizado e Y vai para os cofres…

Devíamos pensar: isto não dá mais. Estamos todos ainda muito formatados para pensar que alguém vai fazer por nós. Alguém vai tratar dos resíduos, alguém vai tratar da questão alimentar, alguém vai tratar disto e é dever deles e eu pago os meus impostos.
E com o lixo é o mesmo. É um dos maiores problemas da sociedade hoje. Mas está tudo entregue a agências, não há aqui um sentido de envolver a sociedade para reciclar ela própria. Se for à Baixa de Lisboa, onde não vive praticamente ninguém, veja o monte de lixo que há e os horários para a colecta. É impressionante o número de lojas que já estão a comprar ou arrendar espaços para poderem pôr as embalagens. Para acomodar lixo. Como não conseguem dar vazão a tudo numa só colecta, vão acumulando. Havia outra forma, que era não haver tanto resíduo. Isto é o reflexo mais evidente de que o tecido urbano não era para este tipo de intensidade de utilização, de comportamento de uso. Se calhar podia ter a mesma intensidade de consumo, mas a forma como aqueles bens ali chegam podia ser diferente. Isto é já um sinal de que o tecido urbano não está preparado para aquilo. Devíamos pensar: isto não dá mais. Estamos todos ainda muito formatados para pensar que alguém vai fazer por nós. Alguém vai tratar dos resíduos, alguém vai tratar da questão alimentar, alguém vai tratar disto e é dever deles e eu pago os meus impostos.

Nós, enquanto espécie, já soubemos tudo isto, já fizemos tudo isto.
Sim, a cultura não é uma coisa que se faça de um dia para o outro. É o registo dos hábitos, das crenças e valores de um colectivo. Hoje acreditamos nisto. Mas, por exemplo, aqui em Lisboa fomos rurais até muito tarde, até aos anos 50/60. Foi nos anos 60 que recebemos o surto migratório da população rural. Acredito que, pelo facto de termos tido a ruralidade até tão tarde, essa amnésia não é generalizada. Pelo facto de não termos tido bombardeamentos na Segunda Guerra Mundial, os vestígios de ruralidade ainda cá estão. Por outro lado, os outros países tiveram de dar a volta. A rainha de Inglaterra fez logo uma horta na sua casa. Londres foi bombardeada e ficou sem recursos. Promoveu-se a ideia de que, para sobreviver em Inglaterra, toda a gente tinha de ter hortas. Aqui não passámos por esse flagelo, não passámos pela urgência da necessidade. Havendo uma catástrofe, as coisas mudam.

Mas precisamos de uma?
Não sabemos o rumo da coisa. Há governos que se estão a preparar. A Grécia está a dar a volta, sobretudo porque viveu uma crise muito profunda. Há muita miséria, muita desigualdade. O problema da sustentabilidade é a desigualdade.

E é uma coisa que se tende a agravar, com as pressões cada vez maiores sobre a cidade?
Sim. Enquanto se der continuidade ao modelo de planeamento que temos, com base num sistema capitalista em que o solo é que é o valor, não há outro rumo. O solo tem um valor que deve ser reconhecido, mas há valor no solo que não está a ser reconhecido. A sua capacidade produtiva, a sua capacidade de regeneração do resíduo, tudo isso. Quando constrói um prédio, devia também dar a provar outras componentes, porque o valor do prédio não pode ser só aquele. Enquanto não se entender a capacidade produtiva e social do solo, as coisas não mudam. Mas eu não quero dar uma ideia fatalista!

Então fale-nos de bons exemplos.
Uns alunos meus belgas trouxeram-me este exemplo da Bélgica. Há um bairro que tem um lote onde as pessoas vão pôr os resíduos orgânicos do que consomem em casa. E esse bairro tem um porco que vai lá alimentar-se disso. Quando há a matança do porco, a carne é dividida por todos. Nós rimo-nos ao pensar num porco no meio do bairro. Pois, mas o porco está ali a fazer qualquer coisa. Isto é urbano, não é uma experiência rural! Há pequenos gestos que mostram que as coisas podem ir mudando. O problema está em que muitos deles não são um negócio, não se consegue retirar dali lucro. Em Portugal ainda existe muito este culto de que a inovação tem de estar ao serviço da economia. E a economia é uma disciplina quase só voltada para a questão crematística, de aumentar o lucro. Mas a economia não é só o lucro financeiro, é saber trabalhar outras questões.

O solo tem um valor que deve ser reconhecido, mas há valor no solo que não está a ser reconhecido. Enquanto não se entender a capacidade produtiva e social do solo, as coisas não mudam.

O governo da casa.
Sim. E não está a conseguir. Há muitos economistas com valores sociais, mas quem de facto está a fazer a gestão da casa está muito voltado para o lucro, para o crescimento. O urbanismo ecológico não se vai conseguir de outra forma se não com passos modestos. E com arquitectura modesta e personalidades que podem até nem ter nome. As pessoas. Os arquitectos. Enquanto continuarmos a achar que é preciso o supra-sumo, o topo não sei de quê, que venha cá o Frank Gehry…não vamos sair daqui. Estamos à espera de uma solução-milagre para a forma urbana, mas ela não existe. A forma urbana só é boa quando é bem utilizada. Não é a forma urbana que está errada, são as actividades que fazemos na cidade de hoje. A agricultura é uma actividade nossa, nós é que não a quisemos. Não queremos nem exigimos, o que eu acho que é errado. A sustentabilidade não é se vamos ter um edifício sustentável, todo ecológico, é pensar que ele precisa de recursos. Aquilo que mais vai mudar as cidades no futuro é quando elas atingirem um nível de cultura que permita que as pessoas tenham outras práticas. A primeira coisa que o urbanismo tem de dizer é: vamos preparar, para as pessoas não dizerem que não.

Esta questão da sustentabilidade ainda é muito vista como uma preocupação da classe média-alta. As pessoas que andam a lutar para sobreviver não têm tempo para pensar nisto.
Fazem-no inconscientemente. As pessoas que lutam para sobreviver, é essa mesmo a palavra, não põem tudo no lixo. Guardam coisas com a esperança de um dia as reciclar, não dizem é que o propósito é esse. Um frasco de vidro pode servir para o doce de morango da próxima vez. As pessoas com mais dificuldades económicas não referem nunca que estão a trabalhar para a sustentabilidade, mas usam os princípios da reciclagem e da resiliência das coisas por uma questão de necessidade. Limitar o resíduo faz parte do seu corolário diário. Têm uma consciência do limite dos recursos.

tp.ocilbup@ahcnip.oaoj

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