Associações de
moradores de Lisboa acusam pelouro do Urbanismo de “falta de transparência e
ilegalidades”
Sofia Cristino
Texto
25 Abril, 2019
Grupos de residentes e associações ligadas ao direito à
habitação criticaram, ao início da tarde desta quarta-feira, a política de
urbanismo da autarquia ao licenciar empreendimentos de luxo em bairros
históricos. E denunciaram o que consideram ser “as irregularidades, a falta de
informação e a opacidade da Câmara de Lisboa” em relação a vários projectos da
empresa imobiliária Stone Capital. Só para Alfama estão projectados 184
apartamentos de luxo. Recentemente, na Graça, abateram-se dezenas de árvores de
um logradouro para se construir um condomínio fechado, onde haverá fogos com
valores que ultrapassam os 2 milhões de euros. Os representantes dos movimentos
cívicos manifestaram-se frente aos Paços do Concelho, ao mesmo tempo que
decorria uma reunião do executivo camarário. Nesta, o vereador do Urbanismo,
Manuel Salgado, garantiu que todas as operações urbanísticas estão dentro da
legalidade e não se mostrou disponível a reconsiderar nenhuma delas.
Nos últimos dois anos, as petições e os protestos contra a
construção de condomínios de luxo, em plenos bairros históricos de Lisboa,
dispararam. Alguns dos mais polémicos pertencem a Arthur e Geoffroy Moreno,
donos da imobiliária Stone Capital. Neste momento, os dois irmãos já têm mais
de quarenta empreendimentos – em fase de construção ou concluídos – na cidade,
alguns do quais têm sido alvo de fortes críticas por parte de certos movimentos
cívicos. Ao início da tarde desta quarta-feira (24 de Abril), alguns autores de
tais abaixo-assinados, representantes de movimentos cívicos e grupos de
moradores juntaram-se à entrada da Câmara Municipal de Lisboa (CML) para
denunciarem o que consideram ser a “falta de transparência” e as “intenções
especulativas” da referida empresa e ainda acusarem a vereação do Urbanismo de
não cumprir com as suas obrigações.
Representantes do movimento Vizinhos da Rua do Paraíso,
Vizinhos do Palácio de Santa Helena, Colectivo Glória, Associação do Património
e da População de Alfama (APPA), STOP Despejos e Habita falaram, um de cada
vez, aos jornalistas, repetindo queixas comuns e salientando o que os une: “a
luta contra uma imobiliária que detém, neste momento, mais de 150 mil metros
quadrados na cidade”. Catherine Morisseau, que tem intervindo em algumas
sessões da Assembleia Municipal de Lisboa (AML), nos últimos meses, contra a
transformação do antigo Hospital da Marinha em apartamentos de luxo, foi a mais
severa nas críticas. “A autarquia criou um Plano Director Municipal (PDM) muito
evasivo em relação ao que é permitido, ou não, e a classificação como ‘projecto
estruturante’ dos projectos que envolvem muito dinheiro, um sistema que permite
ao vereador do Urbanismo decidir sozinho a aprovação final”, acusa.
A moradora da Rua do Paraíso, onde será construído um novo
condomínio, diz que “o que está a acontecer na cidade é o resultado de uma
cumplicidade entre a Stone Capital e a Câmara de Lisboa”. “A imobiliária obtém
da câmara a aprovação dos projectos num piscar de olhos, mesmo quando estes
apresentam irregularidades. Enquanto os cidadãos ‘normais’ têm grandes
dificuldades para obterem aprovações para obras mínimas. A câmara não só aprova
os projectos da Stone, como impede que os princípios básicos da democracia sejam
respeitados”, acusa. Catherine referia-se à dificuldade em aceder aos
projectos, “para que os moradores os possam contestar a tempo e horas”, e à
alegada falta de discussão pública. Catherine critica ainda o recentemente
anunciado projecto da imobiliária – colocação de seis apartamentos na Mouraria
com rendas acessíveis. “A Stone Capital lava a cara com um falso projecto de
rendas acessíveis, que, na verdade, não tem nada de acessível para um português
da classe média ou baixa”, critica.
Só para Alfama, a
Stone Capital tem projectados 186 apartamentos de luxo, estando já 26
concluídos. Júlio Soares, representante dos moradores dos prédios junto ao
Palácio de Santa Helena – a ser requalificado para a construção de um
condomínio de luxo –, debate-se pela suspensão da obra desde 2017. Segundo o
habitante de Alfama, os edifícios à volta do palácio do século XVII têm
estragos decorrentes da obra da Stone Capital. “Existem rachas em todos os
prédios à volta, alguns vão ficar sem luz natural com as novas construções, e
terraços ao nível do segundo andar nos quais as pessoas vão perder a
privacidade”, critica. A petição contra o avanço da obra foi entregue há um ano
e os moradores queixam-se de continuarem com “vários problemas por resolver”.
“Não é esta a cidade que quero e não quero sair de Lisboa, onde nasci e sempre
vivi, assim como todos os moradores das zonas históricas”, afirma.
A presidente da
Associação do Património e População de Alfama (APPA), Lurdes Pinheiro, lembrou
que o bairro “continua a perder moradores, património e a ganhar muitos
condomínios fechados” e pediu um travão no avanço destas construções. “Isto tem
de parar, a câmara tem de tomar mais medidas. Hoje está previsto aprovarem um
programa de habitação com mais cem casas, mas isso não chega. A câmara tem de
se preocupar mais com Lisboa e não transformá-la numa cidade de ricos. Não
podemos continuar a fazer os condomínios sem discussão pública, tudo nas costas
de quem vive e mora na cidade”, critica.
A reabilitação de edifícios com alegados fins especulativos
e o consequente despejo de moradores não é só “um problema de Alfama, do
Castelo ou da Mouraria”, lembra Rita Silva, dirigente da associação Habita, que
tem ajudado vários habitantes da cidade a encontrarem alternativas residenciais,
quando são despejados. “É um problema da cidade inteira, há muitos fundos como
a Stone e este tipo de fundos está a apoderar-se da cidade e a açambarcar
Lisboa, para transformá-la num tipo de negócio virado para o luxo, o
arrendamento temporário e o turismo, o que está a expulsar as pessoas directa
ou indirectamente”, reforça.
A activista garante
que tem vindo a receber um número cada vez maior de pessoas “que já não
conseguem encontrar uma casa ou aparecem com carta de despejo na mão”. “Estamos
perante um momento muito difícil, a lutar pelo direito à cidade e por um lugar
para viver. A câmara e o governo são as entidades públicas que acomodam,
preparam, apoiam e incentivam este tipo de projectos e não criam a regulação
necessária para proteger as pessoas que aqui vivem e trabalham”, acusa.
Em representação da
associação STOP Despejos, Jaume Sastre denunciou a que considera ser “uma das
causas dos despejos mais frequentes nas cidade, os processos de especulação
promovidos por fundos de investimento e empresas imobiliárias como a Stone
Capital, que transforma edifícios históricos em apartamentos de luxo com a
cumplicidade da Câmara de Lisboa”. “A empresa afirma que reabilita edifícios e
bairros degradados e que, assim, preserva o património. Mas este discurso,
partilhado pela câmara, é uma armadilha. Parece que a única forma de estar e
ocupar estes edifícios é deixar que os grandes investidores lucrem com eles
fazendo apartamentos de luxo”, censura.
No início do mês
passado, no bairro da Graça, freguesia de São Vicente, foi conhecido um novo
projecto: a construção de outro empreendimento de luxo – com apartamentos a
custarem entre 600 mil e dois milhões de euros, estando entre estas nove já
vendidas –, num terreno antes com mais de cinquenta árvores, entretanto
abatidas. Os moradores tiveram conhecimento das intenções da promotora Stone
Capital quando as máquinas entraram logradouro adentro e derrubaram quase todas
as árvores.
Nikolas Sousa,
representante do Colectivo da Glória, lançou uma petição contra este projecto
que, em pouco mais de um mês, já conta com 1107 assinaturas. “Este condomínio
fechado, denominado Jardim da Glória, destrói o tecido social e económico do
bairro. Devido ao impacto enorme que vai ter em termos de volumetria, deveria
haver uma consulta pública”, critica Nikolas Sousa, que momentos depois interveio
na reunião camarária. O morador acusa ainda o executivo camarário de não ter em
conta a opinião dos cidadãos. “O projecto foi aprovado em 2016, não houve
consulta pública. Quando a câmara apresentou o Plano Director Municipal (PDM),
em 2012, disse ‘a cidade é das pessoas e para as pessoas, é com elas e para
elas que deve ser planeada’, mas em sete anos não fez nada disso”, critica.
O morador deslocou-se
à reunião camarária desta quarta-feira (24 de Abril) para entregar a petição
contra o projecto da promotora. E aproveitou a ocasião para pedir mais
habitação acessível e questionou os vereadores se foram avisados da existência
deste projecto. O presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, recordou os
programas de habitação acessível municipais em curso e o contributo do programa
Uma Praça em Cada Bairro para a criação de espaços de lazer na capital. “Não
podemos adquirir todos os terrenos privados onde se desenvolvem projectos na
cidade. Lutamos para encontrar os recursos para fazermos os investimentos no
património que a câmara já tem”, sublinha. “O que a câmara tem de fazer é
cumprir a lei relativamente aos direitos de edificabilidade, não podemos fazer
diferente”, garante.
O vereador do
Urbanismo, Manuel Salgado, também em resposta à intervenção, garante que o
projecto Jardim da Glória, da Stone Capital, cumpre o Plano Director Municipal
(PDM), o qual prevê, explica, que aquela área “seja um interior de quarteirão
edificável, com excepção de uma parte verde que ficou assegurada e respeitada”.
“Não contesto que se trate de um empreendimento de luxo, mas, quando a câmara
aprova projectos, não pode pôr um rótulo a dizer que isto é de luxo ou é
social, ou aqui só se pode vender com as rendas x e y ou z, não é da nossa
competência”, frisou.
O vereador do
Urbanismo admitiu “concordar com algumas coisas” que ouviu do munícipe, mas, a
maioria “não concorda”. “Não concordo com uma municipalização dos solos em
Lisboa, não vejo que se justifique a expropriação de toda aquela área para
habitação acessível e um jardim público”, afirma. Salgado lembrou ainda que a
operação urbanística para aquela parte da cidade, aprovada em 2016, “não é uma
operação de loteamento”, mas de “um projecto de operação urbanística de um
edifício único”. “Esse edifício tem uma área de construção com um índice
inferior ao índice fixado no plano director. Alguns edifícios que existiam são
reabilitados”, explicou.
A resposta do
vereador suscitou várias reacções na oposição, reacendendo o debate sobre a
alegada falta de transparência da autarquia na aprovação de empreendimentos
deste cariz, ao não levar estes projectos urbanísticos a reunião pública ou
camarária. O vereador do CDS João Gonçalves Pereira perguntou a Salgado se as
obras estão licenciadas e se já arrancaram, questões às quais obteve resposta
positiva. Muita crítica em relação processo, a vereadora do PCP Ana Jara acusou
a câmara de promover “um jogo urbanístico por forma a licenciar estes
gigantescos edifícios como edifícios únicos, que nunca foram”.
“Mais que um edifício único, tem a aparência de um
loteamento. Na apreciação do projecto, há várias recusas à construção neste
loteamento, durante vários anos, e depois aparece um PDM de 2012 que
proporciona isto. E esta construção dentro de um logradouro, que é uma área
verde tão rara, e cada vez mais rara, devia ser compatibilizada com uso
público”, disse a vereadora comunista, que se alongou em várias críticas à
forma de actuação do pelouro do Urbanismo. “Temos um vereador a dizer que está
sempre tudo dentro da legalidade e o nosso trabalho dos eleitos fica
extremamente reduzido. Não se percebe como este projecto é licenciado e
aprovado. Chama-se Jardim da Glória, o que até parece um pouco irónico câmara”,
concluiu.
O Corvo enviou
perguntas à Stone Capital, confrontando-a com as acusações, mas não teve
respostas até ao momento da publicação deste artigo.
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