Crises políticas avançam na Europa: chegou a vez da França.
Por Jorge Almeida Fernandes in Público
14/04/2013
Nos primeiros meses do ano, adensaram-se as crises políticas na Europa do Sul. Descontada alguma dramatização mediática, aparecem como um fenómeno em desenvolvimento, mas sob diferentes formas. Se o pano de fundo é a crise económica, a "crise da política" ocupa um lugar cada vez mais relevante. E chegou a vez da França.
A Itália continua a ser o "laboratório": o espectro da ingovernabilidade agravou-se com o resultado das eleições de 25 de Fevereiro enquanto a economia se afunda e o descrédito da política atinge níveis impensáveis, o que serve de mola ao populismo de Beppe Grillo. Bruxelas teme que a paralisia e o eventual desmoronamento do sistema político - por incapacidade de auto-reforma - façam, por sua vez, explodir a zona euro. É uma retórica de dramatização, mas não completamente irrealista.
A Espanha debate-se com uma crise do Estado: o modelo das autonomias abriu falência; a Catalunha reabriu a questão da unidade nacional; os dois grandes partidos, PP e PSOE, estão em acelerada erosão; o PP defronta-se com escândalos; o PSOE corre o risco de se fragmentar, tendo praticamente perdido o seu ramo catalão; estes factores são agora potenciados pelo "escândalo Urdangarin", que enfraquece a coroa e a função unificadora do rei.
Em Portugal, é patente o desgaste do Governo e dos partidos do "arco governamental" - designadamente do PS. O Tribunal Constitucional acaba de introduzir um novo factor de incerteza ao condicionar a política de austeridade do Governo.
A Grécia "está na mesma", com um Governo fraco a cumprir um papel de Sísifo. "O problema da Grécia não é económico", afirma o economista Panayotis Ioakeimidis. "É político e cultural. O sistema político é o primeiro responsável pela crise que assola a Grécia." Mas, sobretudo, não há um Estado moderno, há uma estruturada máquina clientelar e uma economia de renda que não se mudam em três anos.
Chipre não tem a ver com crises políticas. É um país dividido desde a ocupação do Norte pelos turcos (1974) e cuja reunificação (confederal) foi recusada pelos cipriotas gregos no referendo de 2004. O que implodiu foi o seu modelo económico, assente na banca.
Faltava a França
A novidade é a França, que não é um "país do Sul" mas do núcleo duro da UE - o eixo franco-alemão. Em 2012, após a derrota de Nicolas Sarkozy, temeu-se a fractura do grande partido do centro-direita, a UMP, o que levaria a uma recomposição do quadro partidário em benefício de Marine Le Pen.
Hoje, François Hollande está confrontado com o declínio económico francês e responde com uma política de ziguezagues. Ao contrário da Itália, a França tem um Estado forte. O escândalo da conta suíça do ministro Cahuzac exasperou a suspeição em relação às elites, pondo em causa a confiança dos cidadãos no próprio Estado. O politólogo Dominique Moïsi escreveu no Financial Times que Hollande se arrisca a ter o destino de Luís XVI: não o da guilhotina mas o de ser "varrido" por uma nova revolta contra as elites. Os opostos populismos, de esquerda e sobretudo de extrema-direita, alimentam-se do clima de suspeição. O enfraquecimento político da França seria mais um grave factor de desequilíbrio político na Europa.
A Irlanda, que não é "do Sul", é o único "intervencionado" de onde vêm boas notícias. A nota mais curiosa é política. Os irlandeses aceitaram com relativa facilidade a austeridade, vista como um "choque de competitividade" para restabelecer o crescimento. E, explica a jornalista Elaine Byrne, porque os irlandeses "sentem-se parcialmente responsáveis pela crise".
A crise teve consequências políticas, mas as instituições permaneceram sólidas. O Fianna Fail (centro-esquerda), que dominou a cena política durante quase 80 anos, afundou-se nas eleições de Fevereiro de 2011. Cedeu o lugar ao Fine Gael (centro-direita), coligado com os trabalhistas. Uma alternância sem drama.
O argumento de Bauman
Desde o fim do século XX, com a construção europeia e a globalização, a velha "crise da política" assumiu uma forma nova, reflectindo a erosão das soberanias nacionais. O sociólogo Zygmunt Bauman declarou há dias em Lisboa que, enquanto o poder se globaliza, a política permanece local (Ípsilon, 5 de Abril). O carácter especial da actual crise reside neste "divórcio entre a política e o poder".
Explicou há meses numa entrevista: "O poder é a capacidade de exercer um comando. A política é a capacidade de tomar decisões e de as orientar num sentido ou noutro. Os estados-nação tinham o poder de decidir e uma soberania nacional. Mas este mecanismo foi subvertido pela globalização. Esta "globalizou" o verdadeiro poder, sobrepondo-se à política", que continua a ter como tabuleiro o quadro nacional.
O politólogo francês Bertrand Badie relativiza esta análise. "Entrámos claramente num mundo pós-soberano e o que está em jogo é saber como será regulada e governada esta interdependência, ou seja, como será reinventada uma política capaz de se construir para lá da soberania e respeitando o direito de todos os cidadãos participarem realmente na deliberação global." Mas, sobretudo, "não se deve confundir o défice de soberania com o défice de democracia. Se a globalização veio negar os princípios clássicos de soberania, ela não pode ser vista como antagónica da democracia."
Ambos pensam que a solução passa pela "Europa". Mas, anota Badie, numa entrevista ao Monde, "ao criar uma moeda comum, os europeus colocaram a fasquia muito alto. Para acompanhar a nova moeda, deviam ter acelerado o processo de integração. (...) E, subitamente, perante as tensões que surgem na economia mundial a partir de 2008, a Europa torna-se paradoxalmente numa máquina de recompor nacionalismos e, até, de reactivar a concorrência entre os estados-nações."
Adverte: "Os erros são ao mesmo tempo inerentes às instituições europeias e ao seu modo de funcionamento, aos governos que não souberam construir a Europa de modo democrático, mas também há erros nacionais, de todos os governos, que não souberam adaptar a democracia ao seu país."
O argumento de Bauman é pertinente mas num horizonte muito largo. Tomado à letra, arrisca-se a redundar em fatalismo. Nas suas diferentes dimensões, a globalização suscitou reacções populistas mas nenhuma ameaça directa à democracia. O que aconteceu em muitos países é que governos e partidos não souberam ou não quiseram responder nem à globalização nem à crise económica.
Deslegitimação da política
Mais do que a corrupção, a deslegitimação da política deve-se à ineficácia, à incapacidade de tomar decisões impopulares. "Ninguém ignorava o declínio demográfico e os desastres anunciados no campo das reformas, da saúde, da educação", escreve o filósofo polaco Marcin Król. "Tudo era perfeitamente conhecido, mas os políticos não quiseram ver ou não estavam à altura de captar intelectualmente os problemas. Todas as respostas sérias exigem decisões impopulares, aquilo que os responsáveis políticos mais temem nas democracias ocidentais."
O alemão Gerhard Schröder desafiou a norma, fez as reformas necessárias e perdeu as eleições. Mas esse foi o capital que permitiu a actual fortuna da chanceler Merkel. Escrevia há dias um jornal italiano: "Suceder a uma Thatcher é o sonho de toda a esquerda europeia."
Concentrar fogo sobre os políticos é algo injusto, anota o filósofo espanhol Manuel Cruz. Os políticos ocupam-se da "pequena política" e recusaram-se ver chegar a crise. "Cada país tem os políticos que merece. Mas, por acaso, os nossos banqueiros, juízes, jornalistas, professores universitários, etc., etc., serão também aqueles que merecemos?"
A Itália continua a ser o caso paradigmático da irresponsabilidade da "casta política" mas também da demissão da elite. Há mais de uma década que soam os alarmes: estagnação, perda de competitividade, declínio demográfico, inacção, deslegitimação do sistema político. Vem a seguir a ressaca. Explica o politólogo Piero Ignazi: "Sob a pressão da queda da bolsa, da explosão da dívida, da fuga dos investimentos, os sistemas democráticos revelaram a sua fraqueza noutra vertente - a política." E eclode a "antipolítica". Sem partidos, não há democracia representativa. Mas eles tornaram-se meras máquinas de disputar eleições e proteger clientelas: pagam agora o preço - a deslegitimação.
A lista dos "doentes"
O "grillismo" não tem a ver com austeridade. "O sucesso extraordinário de Grillo é apenas o último e mais potente grito de protesto contra um sistema político malsão que se arrasta há muitíssimos anos" e remonta à década de 1990, escreve o escritor italiano Alexander Stille.
Aproxima-se entretanto nova conjuntura crucial. A Comissão Europeia fez uma nova lista dos "doentes" da UE. Deixemos Portugal, Grécia, Irlanda e Chipre. A Espanha e a Eslovénia apresentam desequilíbrios "excessivos". E o elenco dos casos de desequilíbrios "sérios" é bem longo: Itália, Bélgica, Bulgária, Dinamarca, França, Malta, Hungria e mesmo as virtuosas Holanda e Finlândia. O quadro abre uma "janela" para repensar o modelo da austeridade: corrigi-lo ou agravá-lo. É mais uma rara oportunidade para a política - é para isso que serve.
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