OPINIÃO
CORONAVÍRUS
Holanda: uma achega à reacção de Costa
O estilo escolhido por Costa é o da bravata lusitana e do
murro na mesa, que, julgo, prejudica os interesses português e europeu.
PAULO RANGEL
31 de Março de
2020, 6:15
1. Por mais que
se discorra, só há uma prioridade imediata: salvar vidas.
2. Estou muito à
vontade para criticar e corroborar a crítica à posição do ministro das Finanças
do Governo holandês de Mark Rutte. Ela não é nova na substância, nem inédita na
forma e no tom. Corresponde a uma posição consistente dos governos holandeses.
Estou à vontade porque critiquei esse posicionamento sistemático um dia antes
do Conselho Europeu (25 de Março, na SIC Notícias). Esse foi o Conselho em que
António Costa fez as declarações tonitruantes, que tão bem caíram à opinião
pública. Depois (27 de Março na CMTV), apoiei a crítica de Costa, sem o
acompanhar na forma e no tom. De resto, há dois anos, num debate plenário com
Mark Rutte, confrontei-o, face a face, com as posições quanto à reforma da zona
euro, à dimensão do orçamento da UE e ao quadro financeiro plurianual. Este
inventário de intervenções recentes serve apenas para deixar claro: não é
aceitável a posição “clássica” do executivo neerlandês (muito menos neste
contexto) e é altamente censurável a sobranceria com que, a espaços, falam os
seus ministros.
3. Isto assente,
merece a pena olhar não para a reacção de António Costa mas para os exactos e
precisos termos desta reacção. Compreendo bem que o primeiro-ministro, sendo um
europeísta e um humanista, não pudesse em consciência ignorar as declarações do
ministro das Finanças holandês (cujo exacto teor se desconhece). Podia tê-lo
feito, porém, de um modo igualmente veemente, convicto e firme, mas que não
criasse uma hostilidade e um antagonismo “quase pessoal” com o Governo
holandês. O tom, a linguagem e a postura podem até ser de indignação genuína,
mas prestam-se a manipulações simplistas de que quis atingir a nação holandesa
ou o povo holandês. Cria um evidente “antagonismo” pessoal, e esta questão não
configura um assunto pessoal: é assunto nacional, é assunto de Estado. O estilo
escolhido por Costa é o da bravata lusitana e do murro na mesa, que, valha a
verdade, nos enche o ego e as medidas, ocupa o espaço mediático por inteiro,
mas que, julgo, prejudica os interesses português e europeu.
4. O
primeiro-ministro fez as declarações impactantes cá fora, para os jornalistas;
mas as verdadeiras questões jogam-se lá dentro, na reunião do Conselho. É ali
que se promove e defende a nossa visão do interesse europeu e nacional. E aí
foram os primeiros-ministros italiano e espanhol que mostraram convicção, rumo,
estratégia. Giuseppe Conte, em particular, foi duríssimo e claríssimo, entrando
mesmo em debate com Mark Rutte.
Já no espaço
público e nos dias seguintes, tanto Conte como Sánchez reagiram forte e
inteligentemente à posição holandesa. No caso italiano, até o Presidente
Matarella o fez na sua alocução à nação. Eles foram duros, claros e reforçaram
a ideia de que não vão claudicar e, no entanto, abstiveram-se de criar uma
tensão ou crispação “pessoal” ou “nacional”. Não alimentaram um caso contra o
Governo holandês, que, com manipulação hábil, se pode transformar num caso
“contra os holandeses”. A Espanha e, por osmose, a Itália eram os visados e,
mesmo assim, puseram os interesses europeus e nacionais à frente de uma
compreensível indignação.
Diga-se também
que não é comum que um primeiro-ministro venha polemizar directamente com um
ministro de outro país, como se ambos estivessem no mesmo patamar. António
Costa, sem se furtar a expressar a sua indignação, poderia ter deixado a resposta
“à letra” a um ministro do seu Governo. O mais natural é que fosse Centeno,
homólogo do ministro das Finanças, embora se entenda que, enquanto presidente
do Eurogrupo, lhe fosse difícil assumir esse papel. Mas tinha sempre disponível
o ministro dos Negócios Estrangeiros, que, aliás, é um confesso adepto da “arte
de malhar”. O recado estaria dado e o primeiro-ministro preservar-se-ia para
uma “reacção” dura, em tudo semelhante à dos seus pares latinos.
5. Perguntar-se-á
porque me incomodo tanto com o tema. Porque estou convencido de que Portugal –
não estando na situação da Espanha e da Itália e comungando de visão idêntica e
similar – podia ser um actor-chave no desenho de uma solução europeia para esta
crise sem paralelo. E que, designadamente, António Costa poderia ter aí um
papel relevante, que pura e simplesmente descartou e desbaratou. Depois disto,
dificilmente Costa e Portugal poderão ser os artífices de um acordo que
realmente represente uma resposta solidária sem precedentes; um avanço único no
processo de integração europeia. Depois de uma intervenção que preencheu o
nosso orgulho nacional, mas que criou óbvios anticorpos, corremos o risco de
ter ficado “neutralizados”. Situação tanto mais preocupante quanto vamos
assumir a Presidência da União já no primeiro semestre de 2021 e teríamos aí
também uma oportunidade única para ocupar esse espaço.
Em rigor, este
padrão de táctica diplomática em Costa não é inédito. Em Junho, ele também
garantiu “à cidade e ao mundo” que, com a sua veia europeia, havia entronizado
Timmermans como presidente da Comissão – o que faria dele um influente “king
maker”. Resultado: isso simplesmente não aconteceu e o espanhol Sánchez, que
até aí o acompanhara, abandonou-o sem dó, para “sacar” para a Espanha o
alto-representante para a Política Externa.
6. Em suma, a
atitude do ministro holandês é deplorável, mas o primeiro-ministro podia
sinalizar isso de muitas formas, todas eficazes. Estará tudo perdido? Não,
Costa tem ainda na sua mão dois instrumentos substanciais. Um é Mário Centeno:
agora vai ver-se se este Cristiano Ronaldo faz ou não a diferença nos jogos
difíceis. E o outro, um tanto prejudicado por esta controvérsia, é a sua
influência no Partido Socialista Europeu. A figura-chave do imbróglio é Olaf
Scholz, ministro das Finanças alemão, do SPD e da família socialista, que é um
férreo opositor de eurobonds e quejandos (bem mais que Merkel). Se lograr
convencê-lo, prestar-nos-á a todos um inestimável serviço.
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