domingo, 22 de março de 2020

Coronavírus e clima: duas emergências que se tocam / Covid-19 trouxe um alívio momentâneo ao ambiente. “O problema é que não pode ser um intervalo”

IMAGEM DE OVOODOCORVO
PRAÇA DO COMÉRCIO DURANTE O CORONA


OPINIÃO CORONAVÍRUS
Coronavírus e clima: duas emergências que se tocam

Ricardo Garcia
22 de Março de 2020, 6:56

Em Dezembro passado, a emergência climática estava no topo dos noticiários. A mobilização era grande e as aspirações, claras. Queríamos um mundo em que fosse possível ir a pé para a escola, de bicicleta para o trabalho ou de comboio para as férias. Um mundo que nos permitisse atravessar o oceano num veleiro, como faz a jovem Greta, para evitar o crime ecológico de andar de avião.

Ninguém poderia imaginar que, três meses depois, as estradas estariam vazias, os carros na garagem, os aeroportos às moscas e a maior parte de nós a trabalhar em casa. E que, por isso, a qualidade do ar melhorasse em muitas cidades e as emissões de gases com efeito de estufa caíssem de uma hora para a outra – como já se comprovou na China.

Pelos piores motivos, a pandemia do coronavírus está a ter alguns efeitos colaterais positivos no ambiente. Mas até que ponto isso pode mudar o futuro?

A melhoria da qualidade do ar é transitória. Mas não deixa de ser relevante. A Organização Mundial da Saúde diz que 4,2 milhões de mortes por ano são atribuíveis à poluição atmosférica, incluindo 1,1 milhões na China e 29 mil na Itália. Embora astronómicos, são números frios, de óbitos invisíveis, que não acompanhamos em directo nas notícias – como tragicamente assistimos agora com o coronavírus.

A queda nas emissões de CO2, fruto do abrandamento dos transportes e da indústria, também não deve perdurar. Basta ver o que aconteceu na última crise económica. Em Portugal, o consumo de gasóleo e gasolina caiu 18% entre 2010 e 2013, segundo dados da Direcção Geral de Energia e Geologia. Mas, desde o fim da crise, tem vindo a subir paulatinamente. Em 2019, metade daquela redução já tinha sido anulada.

Perante as possíveis consequências das alterações climáticas – e não nos podemos esquecer das 72 mil pessoas que morreram na onda de calor que varreu a Europa no Verão de 2003 –, uma redução nas emissões de CO2 este ano seria bem-vinda. Mas o custo deste benefício é inaceitável: milhares de mortes, uma nova recessão económica e a suspensão abrupta da vida tal como a praticávamos.

Do lado negativo, o coronavírus pode conter avanços no combate ao aquecimento global. Num cenário de crise económica, projectos renováveis de capital intensivo – como centrais solares ou eólicas offshore – podem ficar comprometidos. As negociações climáticas deste ano possivelmente serão adiadas. Na União Europeia, a República Checa já sugeriu o adiamento do Pacto Ecológico que está sobre a mesa em Bruxelas e a Polónia quer aligeirar os custos do Comércio Europeu de Licenças de Emissões.

Já há vozes a defender que os pacotes de estímulo à economia que irão surgir na esteira da crise do coronavírus devem estar alinhados com soluções para a crise climática. Por ora, está a acontecer o contrário. O governo dos Estados Unidos propôs injectar 47 mil milhões de euros na aviação e quer comprar milhões de barris de petróleo, para salvar a sua indústria petrolífera.

O que pode fazer a diferença agora é a capacidade mobilizadora que a quarentena de milhões de pessoas em todo o mundo encerra em si própria. Contrariamente à última crise económica, pela qual muitos passaram incólumes, o coronavírus afecta-nos a todos. De súbito, estamos todos no mesmo barco, experimentando coercivamente uma forma diferente de estar no mundo, confinados em casa e impedidos de exageros consumistas – excepto na compra de papel higiénico. Nunca houve um teste tão amplo à capacidade do universo digital em substituir a nossa presença física no trabalho, na escola, nas repartições públicas, nos espaços de cultura. E os resultados podem ter impactos brutais no consumo de materiais e no uso do nosso tempo. É um grande laboratório à escala global. Não há quem não diga que nada será como antes quando tudo isso acabar.

Pode ser, mas não é certo. A nova ordem que estamos a enfrentar foi-nos imposta por um microrganismo, não fomos nós que optámos por viver assim. Seria uma grande hipocrisia fingir que não estamos mortinhos por voltar aos restaurantes, viajar para destinos exóticos ou encher os carrinhos de supermercado.

E é nesse ponto que a crise do coronavírus e a crise climática se tocam. Para ambas, a solução envolve uma contenção, um abrandar do ritmo. No fundo, viver uma vida mais simples, mas não menos verdadeira.


CORONAVÍRUS
Covid-19 trouxe um alívio momentâneo ao ambiente. “O problema é que não pode ser um intervalo”

O abrandamento da produção, das deslocações e do consumo provocado pelas medidas para combater a pandemia do novo coronavírus trouxe boas notícias para a crise ambiental, com uma diminuição da poluição e das emissões de gases com efeito de estuda. Mas teme-se que, passado o momento crítico que vivemos, pouco fique destas melhorias.

Patrícia Carvalho
Patrícia Carvalho 22 de Março de 2020, 7:05

Se não viu as imagens de satélite que mostram a redução de gases poluentes sobre a China ou a Itália, já deve ter visto pelo menos as fotografias surpreendentes dos cardumes de peixes nos canais de águas límpidas de Veneza. A travagem a fundo da actividade económica, das viagens aéreas e da vida em geral de milhões de pessoas afectadas pela pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2 em vários países do mundo trouxe uma momentânea redução da poluição e da emissão de gases com efeito de estufa (GEE), nomeadamente do dióxido de carbono (CO2). Mas será que vai durar? Há sinais que indicam que não. Ambientalistas ouvidos pelo PÚBLICO têm esperança de que algo de positivo possa ficar, mas não acreditam numa mudança verdadeiramente significativa.

Parte dos dados que apontam para o efeito positivo que a pandemia está a ter no ambiente chega-nos do espaço e ainda na última quinta-feira as imagens e informações recolhidas pelo instrumento Tropomi, a bordo do satélite do Sentinela-5P, do programa Copérnico da Comissão Europeia e da Agência Espacial Europeia (ESA), permitiram perceber que houve “uma drástica redução nas emissões de dióxido de azoto” na China. Este composto, proveniente, sobretudo, de centrais eléctricas, instalações industriais e veículos, registou uma quebra “em todas as principais cidades chinesas entre o final de Janeiro e Fevereiro”, revela a ESA, que indica ainda que o Serviço de Monitorização da Atmosfera Copérnico observou uma diminuição das partículas em suspensão, apontando para a possibilidade de “uma redução de cerca de 20 a 30%” destes poluentes atmosféricos em grande parte da China.

No início da semana, o mesmo programa já apontara para “o declínio da poluição do ar, especificamente, as emissões de dióxido de azoto, sobre a Itália”, o país europeu em que há mais casos registados da covid-19 e que na quinta-feira ultrapassou mesmo a China em número de mortos pela doença, tendo todo o território em quarentena.

E nem só do espaço vêm os dados que apontam para o efeito benéfico da crise da covid-19 para o ambiente. Dados compilados pelo Carbon Brief, um portal especializado em energia e clima, e actualizados a 4 de Março, davam conta de quebras acentuadas na produção e consumo na China, com as centrais a carvão a registarem uma quebra de consumo de 36% e a redução da aviação a cifrar-se nos 10%. As projecções deste portal indicam que poderíamos estar a olhar para uma queda nas emissões de CO2 superiores a um quarto do habitual em quatro semanas naquele país, o que poderia significar, em termos anuais, numa redução de 1% das emissões daquele que é o maior emissor mundial.

Do outro lado do mundo, em Nova Iorque, cientistas da Universidade de Columbia, citados pela BBC, apontavam para uma queda do monóxido de carbono, produzido sobretudo pelos veículos automóveis da cidade, de 50% em alguns dias desta semana, havendo uma diminuição de CO2 entre 5 e 10%, além de “uma queda sólida de metano”. E na Alemanha, sem avançar com números, o responsável pela agência germânica do ambiente, Dirk Messner, disse que o coronavírus pode ajudar o país a atingir a meta de redução de emissões de GEE em 40%, comparando com os valores de 1990. “Vamos assistir a uma redução por causa do coronavírus. Isso é óbvio”, disse. Mas disse também que isso de pouco vale se tudo voltasse ao que era no período pré-pandemia. E os sinais de que isso pode acontecer são muitos.

China já começa a piorar
Na mesma comunicação em que dá conta da redução do dióxido de azoto na China, e que avaliou o período entre 20 de Dezembro do ano passado e 16 de Março, a ESA também diz que desde o início deste mês, quando a situação começou a ficar mais controlada no país, “os níveis de dióxido de azoto começaram a aumentar”. E já há notícias de filas à porta das lojas de luxo do país, para aqueles que não estão confinados às suas habitações. Além disso, existe o exemplo da crise financeira de 2008, quando a quebra de emissões de CO2 também foi evidente, mas acabou por ser anulada pelas medidas de incentivo ao desenvolvimento da economia que se seguiram.

É por isso que as boas notícias temporárias trazidas pela pandemia são vistas com cautela pelos ambientalistas. Jorge Palmeirim, da Liga para a Protecção da Natureza, diz que desde o início da crise da covid-19 ficou curioso com os efeitos que o abrandamento da economia traria às emissões de GEE e à poluição. “Estava à espera de que houvesse efeitos positivos e tinha curiosidade para ver se teriam um efeito mensurável, e têm, como vemos”, diz. Francisco Ferreira, da Zero, sintetiza o momento actual como “um intervalo” na crise climática em curso. “Temos um conjunto de benefícios trazidos por esta crise do coronavírus que está a dar um intervalo à crise ambiental. O problema é que não pode ser um intervalo. Tem de ser uma oportunidade”. E será? Ambos têm dúvidas.

Em Portugal, não há ainda dados sobre quebras de níveis de poluição ou de emissões de GEE, mas há indicadores que apontam para resultados positivos a esse nível. Desde logo pela enorme quebra de deslocações internas e externas que se adivinham pelas decisões e números que já se conhecem. A Metro do Porto anunciou quebras de passageiros a rondar os 80%, quando se comparam os valores de Janeiro e Fevereiro deste ano com os do ano passado. A TAP, como muitas outras companhias aéreas em todo o mundo, reduziu drasticamente o número de voos, passando a operar apenas 15 rotas e 70 voos semanais, em vez das 90 rotas e mais de 3000 voos semanais que tinha em vigor até agora. A Brisa diz que ainda não tem números actualizados sobre a passagem de veículos nas portagens (só em Abril, informa), mas sabe que há uma “actual situação de baixo tráfego rodoviário”, que a levou a fazer ajustes nos serviços prestados. E a CP cortou a frequência de comboios em 25% por causa da redução na procura. Tudo reflexos de que grande parte dos portugueses está, neste momento, em casa. O consumo caiu drasticamente (até porque a maioria das lojas está fechada) e resume-se quase ao essencial.

Estes indicadores resumem o que Jorge Palmeirim e Francisco Ferreira gostariam que se ficasse após o fim da pandemia: a percepção de que não precisamos de consumir tanto e que muitas deslocações – sobretudo aéreas, para reuniões em países europeus – são desnecessárias. E que o teletrabalho pode ser mesmo uma opção viável para muitos. “Espero que esta crise seja também uma demonstração da necessidade de minimizarmos o consumo de animais selvagens. Este consumo, que no Oriente é sobretudo de luxo, potencia a disseminação de doenças, além de prejudicar algumas espécies”, diz ainda Jorge Palmeirim.

Francisco Ferreira apela a que, no momento de pensar os apoios económicos que serão necessários para muitos sectores, incluindo a aviação, não se esqueça a crise climática, e que estes sejam atribuídos com condições, “para que essas empresas garantam emprego e se tornem mais amigas do ambiente”. Este, diz o rosto da Zero, é o momento certo para se olhar “para os impactos na poluição do ar, do ruído, e vermos como podemos corrigir”.

Jorge Palmeirim também acredita que assim é, mas as dúvidas não o largam. “Não espero muito, mas espero alguma coisa. A memória é curta e as pessoas vão esquecer-se desta como se esqueceram das últimas pandemias”, teme.

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