IMAGEM DE OVOODOCORVO PRAÇA DO COMÉRCIO DURANTE O CORONA |
OPINIÃO
CORONAVÍRUS
Coronavírus e clima: duas emergências que se tocam
Ricardo Garcia
22 de Março de
2020, 6:56
Em Dezembro
passado, a emergência climática estava no topo dos noticiários. A mobilização
era grande e as aspirações, claras. Queríamos um mundo em que fosse possível ir
a pé para a escola, de bicicleta para o trabalho ou de comboio para as férias.
Um mundo que nos permitisse atravessar o oceano num veleiro, como faz a jovem
Greta, para evitar o crime ecológico de andar de avião.
Ninguém poderia
imaginar que, três meses depois, as estradas estariam vazias, os carros na
garagem, os aeroportos às moscas e a maior parte de nós a trabalhar em casa. E
que, por isso, a qualidade do ar melhorasse em muitas cidades e as emissões de
gases com efeito de estufa caíssem de uma hora para a outra – como já se
comprovou na China.
Pelos piores
motivos, a pandemia do coronavírus está a ter alguns efeitos colaterais
positivos no ambiente. Mas até que ponto isso pode mudar o futuro?
A melhoria da
qualidade do ar é transitória. Mas não deixa de ser relevante. A Organização
Mundial da Saúde diz que 4,2 milhões de mortes por ano são atribuíveis à
poluição atmosférica, incluindo 1,1 milhões na China e 29 mil na Itália. Embora
astronómicos, são números frios, de óbitos invisíveis, que não acompanhamos em
directo nas notícias – como tragicamente assistimos agora com o coronavírus.
A queda nas
emissões de CO2, fruto do abrandamento dos transportes e da indústria, também
não deve perdurar. Basta ver o que aconteceu na última crise económica. Em
Portugal, o consumo de gasóleo e gasolina caiu 18% entre 2010 e 2013, segundo
dados da Direcção Geral de Energia e Geologia. Mas, desde o fim da crise, tem
vindo a subir paulatinamente. Em 2019, metade daquela redução já tinha sido
anulada.
Perante as
possíveis consequências das alterações climáticas – e não nos podemos esquecer
das 72 mil pessoas que morreram na onda de calor que varreu a Europa no Verão
de 2003 –, uma redução nas emissões de CO2 este ano seria bem-vinda. Mas o
custo deste benefício é inaceitável: milhares de mortes, uma nova recessão
económica e a suspensão abrupta da vida tal como a praticávamos.
Do lado negativo,
o coronavírus pode conter avanços no combate ao aquecimento global. Num cenário
de crise económica, projectos renováveis de capital intensivo – como centrais
solares ou eólicas offshore – podem ficar comprometidos. As negociações
climáticas deste ano possivelmente serão adiadas. Na União Europeia, a
República Checa já sugeriu o adiamento do Pacto Ecológico que está sobre a mesa
em Bruxelas e a Polónia quer aligeirar os custos do Comércio Europeu de
Licenças de Emissões.
Já há vozes a
defender que os pacotes de estímulo à economia que irão surgir na esteira da
crise do coronavírus devem estar alinhados com soluções para a crise climática.
Por ora, está a acontecer o contrário. O governo dos Estados Unidos propôs
injectar 47 mil milhões de euros na aviação e quer comprar milhões de barris de
petróleo, para salvar a sua indústria petrolífera.
O que pode fazer
a diferença agora é a capacidade mobilizadora que a quarentena de milhões de
pessoas em todo o mundo encerra em si própria. Contrariamente à última crise
económica, pela qual muitos passaram incólumes, o coronavírus afecta-nos a
todos. De súbito, estamos todos no mesmo barco, experimentando coercivamente
uma forma diferente de estar no mundo, confinados em casa e impedidos de
exageros consumistas – excepto na compra de papel higiénico. Nunca houve um
teste tão amplo à capacidade do universo digital em substituir a nossa presença
física no trabalho, na escola, nas repartições públicas, nos espaços de cultura.
E os resultados podem ter impactos brutais no consumo de materiais e no uso do
nosso tempo. É um grande laboratório à escala global. Não há quem não diga que
nada será como antes quando tudo isso acabar.
Pode ser, mas não
é certo. A nova ordem que estamos a enfrentar foi-nos imposta por um
microrganismo, não fomos nós que optámos por viver assim. Seria uma grande
hipocrisia fingir que não estamos mortinhos por voltar aos restaurantes, viajar
para destinos exóticos ou encher os carrinhos de supermercado.
E é nesse ponto
que a crise do coronavírus e a crise climática se tocam. Para ambas, a solução
envolve uma contenção, um abrandar do ritmo. No fundo, viver uma vida mais
simples, mas não menos verdadeira.
CORONAVÍRUS
Covid-19 trouxe um alívio momentâneo ao ambiente. “O
problema é que não pode ser um intervalo”
O abrandamento da produção, das deslocações e do consumo
provocado pelas medidas para combater a pandemia do novo coronavírus trouxe
boas notícias para a crise ambiental, com uma diminuição da poluição e das
emissões de gases com efeito de estuda. Mas teme-se que, passado o momento
crítico que vivemos, pouco fique destas melhorias.
Patrícia Carvalho
Patrícia Carvalho
22 de Março de 2020, 7:05
Se não viu as
imagens de satélite que mostram a redução de gases poluentes sobre a China ou a
Itália, já deve ter visto pelo menos as fotografias surpreendentes dos cardumes
de peixes nos canais de águas límpidas de Veneza. A travagem a fundo da
actividade económica, das viagens aéreas e da vida em geral de milhões de pessoas
afectadas pela pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2 em vários países do
mundo trouxe uma momentânea redução da poluição e da emissão de gases com
efeito de estufa (GEE), nomeadamente do dióxido de carbono (CO2). Mas será que
vai durar? Há sinais que indicam que não. Ambientalistas ouvidos pelo PÚBLICO
têm esperança de que algo de positivo possa ficar, mas não acreditam numa
mudança verdadeiramente significativa.
Parte dos dados
que apontam para o efeito positivo que a pandemia está a ter no ambiente
chega-nos do espaço e ainda na última quinta-feira as imagens e informações
recolhidas pelo instrumento Tropomi, a bordo do satélite do Sentinela-5P, do
programa Copérnico da Comissão Europeia e da Agência Espacial Europeia (ESA),
permitiram perceber que houve “uma drástica redução nas emissões de dióxido de
azoto” na China. Este composto, proveniente, sobretudo, de centrais eléctricas,
instalações industriais e veículos, registou uma quebra “em todas as principais
cidades chinesas entre o final de Janeiro e Fevereiro”, revela a ESA, que
indica ainda que o Serviço de Monitorização da Atmosfera Copérnico observou uma
diminuição das partículas em suspensão, apontando para a possibilidade de “uma
redução de cerca de 20 a 30%” destes poluentes atmosféricos em grande parte da
China.
No início da
semana, o mesmo programa já apontara para “o declínio da poluição do ar,
especificamente, as emissões de dióxido de azoto, sobre a Itália”, o país
europeu em que há mais casos registados da covid-19 e que na quinta-feira
ultrapassou mesmo a China em número de mortos pela doença, tendo todo o
território em quarentena.
E nem só do
espaço vêm os dados que apontam para o efeito benéfico da crise da covid-19
para o ambiente. Dados compilados pelo Carbon Brief, um portal especializado em
energia e clima, e actualizados a 4 de Março, davam conta de quebras acentuadas
na produção e consumo na China, com as centrais a carvão a registarem uma
quebra de consumo de 36% e a redução da aviação a cifrar-se nos 10%. As
projecções deste portal indicam que poderíamos estar a olhar para uma queda nas
emissões de CO2 superiores a um quarto do habitual em quatro semanas naquele
país, o que poderia significar, em termos anuais, numa redução de 1% das
emissões daquele que é o maior emissor mundial.
Do outro lado do mundo,
em Nova Iorque, cientistas da Universidade de Columbia, citados pela BBC,
apontavam para uma queda do monóxido de carbono, produzido sobretudo pelos
veículos automóveis da cidade, de 50% em alguns dias desta semana, havendo uma
diminuição de CO2 entre 5 e 10%, além de “uma queda sólida de metano”. E na
Alemanha, sem avançar com números, o responsável pela agência germânica do
ambiente, Dirk Messner, disse que o coronavírus pode ajudar o país a atingir a
meta de redução de emissões de GEE em 40%, comparando com os valores de 1990.
“Vamos assistir a uma redução por causa do coronavírus. Isso é óbvio”, disse.
Mas disse também que isso de pouco vale se tudo voltasse ao que era no período
pré-pandemia. E os sinais de que isso pode acontecer são muitos.
China já começa a
piorar
Na mesma
comunicação em que dá conta da redução do dióxido de azoto na China, e que
avaliou o período entre 20 de Dezembro do ano passado e 16 de Março, a ESA
também diz que desde o início deste mês, quando a situação começou a ficar mais
controlada no país, “os níveis de dióxido de azoto começaram a aumentar”. E já
há notícias de filas à porta das lojas de luxo do país, para aqueles que não
estão confinados às suas habitações. Além disso, existe o exemplo da crise
financeira de 2008, quando a quebra de emissões de CO2 também foi evidente, mas
acabou por ser anulada pelas medidas de incentivo ao desenvolvimento da
economia que se seguiram.
É por isso que as
boas notícias temporárias trazidas pela pandemia são vistas com cautela pelos
ambientalistas. Jorge Palmeirim, da Liga para a Protecção da Natureza, diz que
desde o início da crise da covid-19 ficou curioso com os efeitos que o abrandamento
da economia traria às emissões de GEE e à poluição. “Estava à espera de que
houvesse efeitos positivos e tinha curiosidade para ver se teriam um efeito
mensurável, e têm, como vemos”, diz. Francisco Ferreira, da Zero, sintetiza o
momento actual como “um intervalo” na crise climática em curso. “Temos um
conjunto de benefícios trazidos por esta crise do coronavírus que está a dar um
intervalo à crise ambiental. O problema é que não pode ser um intervalo. Tem de
ser uma oportunidade”. E será? Ambos têm dúvidas.
Em Portugal, não
há ainda dados sobre quebras de níveis de poluição ou de emissões de GEE, mas
há indicadores que apontam para resultados positivos a esse nível. Desde logo
pela enorme quebra de deslocações internas e externas que se adivinham pelas
decisões e números que já se conhecem. A Metro do Porto anunciou quebras de
passageiros a rondar os 80%, quando se comparam os valores de Janeiro e
Fevereiro deste ano com os do ano passado. A TAP, como muitas outras companhias
aéreas em todo o mundo, reduziu drasticamente o número de voos, passando a
operar apenas 15 rotas e 70 voos semanais, em vez das 90 rotas e mais de 3000
voos semanais que tinha em vigor até agora. A Brisa diz que ainda não tem
números actualizados sobre a passagem de veículos nas portagens (só em Abril,
informa), mas sabe que há uma “actual situação de baixo tráfego rodoviário”,
que a levou a fazer ajustes nos serviços prestados. E a CP cortou a frequência
de comboios em 25% por causa da redução na procura. Tudo reflexos de que grande
parte dos portugueses está, neste momento, em casa. O consumo caiu
drasticamente (até porque a maioria das lojas está fechada) e resume-se quase
ao essencial.
Estes indicadores
resumem o que Jorge Palmeirim e Francisco Ferreira gostariam que se ficasse
após o fim da pandemia: a percepção de que não precisamos de consumir tanto e
que muitas deslocações – sobretudo aéreas, para reuniões em países europeus –
são desnecessárias. E que o teletrabalho pode ser mesmo uma opção viável para
muitos. “Espero que esta crise seja também uma demonstração da necessidade de
minimizarmos o consumo de animais selvagens. Este consumo, que no Oriente é
sobretudo de luxo, potencia a disseminação de doenças, além de prejudicar
algumas espécies”, diz ainda Jorge Palmeirim.
Francisco
Ferreira apela a que, no momento de pensar os apoios económicos que serão
necessários para muitos sectores, incluindo a aviação, não se esqueça a crise
climática, e que estes sejam atribuídos com condições, “para que essas empresas
garantam emprego e se tornem mais amigas do ambiente”. Este, diz o rosto da
Zero, é o momento certo para se olhar “para os impactos na poluição do ar, do
ruído, e vermos como podemos corrigir”.
Jorge Palmeirim
também acredita que assim é, mas as dúvidas não o largam. “Não espero muito,
mas espero alguma coisa. A memória é curta e as pessoas vão esquecer-se desta
como se esqueceram das últimas pandemias”, teme.
Sem comentários:
Enviar um comentário