Geopolítica do vírus: o choque América-China?
Bernardo Ivo
Cruz, Carlos Branco, Carlos Gaspar, Diana Soller, Francisco Seixas da Costa,
Luís Nuno Rodrigues, Luís Tomé, Tiago Moreira de Sá e Victor Angelo ajudam a
perceber o impacto da pandemia.
Leonídio Paulo
Ferreira
26 Março 2020 —
22:11
Títulos como
"Estados Unidos e China tornaram o coronovírus num jogo de futebol
geopolítico" (Foreign Policy), "Pequim e outras capitais tentam tirar
o máximo proveito geopolítico do coronavírus" (Japan Times) ou
"China-Estados Unidos: a guerra fria do covid-19" (Le Monde) até
podem passar despercebidos entre as notícias do número galopante de mortes em
Itália e Espanha ou a contabilidade diária dos infetados e vítimas mortais em
Portugal, mas revelam bem como o vírus identificado pela primeira vez no final
do ano passado na cidade chinesa de Wuhan pode mudar o mundo, nomeadamente a
relação entre os países ao ponto de Xi Jinping ter telefonado a Donald Trump
para se "unirem para combater o vírus", com o presidente americano a
dizer depois que teve uma "boa conversa" com o homólogo chinês e que
"a China passou por muita coisa e desenvolveu um forte conhecimento do
vírus. Estamos a trabalhar juntos. Muito respeito".
Luís Tomé,
especialista em relações internacionais, não tem, aliás, dúvidas sobre a
chegada de mudanças geopolíticas, só sobre a sua dimensão: "É quase certo
que esta pandemia venha a ter profundas repercussões na ordem internacional,
cuja amplitude dependerá de três fatores, em cada país/potência e região: 1) a
extensão do número de vítimas do covid-19 e a duração da situação de crise; 2)
a dimensão dos efeitos económicos e sociais; 3) a gestão da crise e a
capacidade de reação e de resposta das lideranças das potências e organizações
regionais e internacionais."
E o diretor do
departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa
(UAL) não hesita em apontar um potencial ganhador: "Tendo em conta estes
fatores, apesar da incerteza e da imprevisibilidade que caracterizam a situação
atual, é clara a tendência para que o reordenamento geopolítico mundial seja
favorável à China. Numa fase inicial, os passos falhados do regime chinês
puseram em causa a posição e a imagem internacional da China e também o
"papel dirigente" do Partido Comunista Chinês. Porém, com as vigorosas
medidas que implementou, Pequim começou a controlar a epidemia, ao mesmo tempo
que noutros países e regiões, com destaque para a Europa e, entretanto, os EUA,
a pandemia alastrou, expondo a negligência e a impreparação dos respetivos
sistemas e lideranças, de uma forma ainda mais grave e evidente do que na
China. Como que em 'efeito boomerang', a expansão global da pandemia, a par,
sobretudo, da incapacidade e da falta de solidariedade entre países europeus e
dos erros sucessivos e persistentes da administração Trump e das autoridades
americanas, passou a ser rápida e habilmente aproveitada por Pequim para
posicionar a China como referência e líder global na resposta à pandemia:
promove o seu próprio sistema, "lições apreendidas" e medidas;
fornece ajuda e assistência material a muitos outros países - ajudando até
outros Estados a organizar os seus sistemas de resposta - da Ásia-Pacífico ao
Médio Oriente, África e América Latina, com destaque para a Europa perante a
paralisia da UE e a incapacidade e a falta de solidariedade de outros Estados
europeus; e retomou a produção em larga escala e a exportação para todo o globo
de bens cruciais ao combate ao covid-19 como ventiladores e materiais de
proteção".
De facto, de
início a China pareceu desvalorizar a ameaça do vírus identificado em Wuhan,
cidade de 11 milhões de habitantes onde modernas indústrias coexistem com
mercados de animais vivos, e não faltaram pressões sobre os médicos que
denunciaram a hipótese de uma nova epidemia transmitida por morcegos ou afins,
do género da SARS, surgida em 2003 na província de Cantão.
De início a China
pareceu desvalorizar a ameaça do vírus identificado em Wuhan, cidade de 11
milhões de habitantes onde modernas indústrias coexistem com mercados de
animais vivos.
Mas a liderança
em Pequim foi rápida a detetar contestação na sociedade, e muito também nas
redes sociais apesar do controlo feito, e apressou-se a demitir os dirigentes
locais e regionais. Consciente do enorme desafio que o país estava a enfrentar,
o presidente Xi Jinping avançou com medidas extremas de confinamento, em
especial em Wuhan, mas também em toda a província de Hubei, com 58 milhões de
habitantes, quase tanto como França ou Itália. Hoje, a reação enérgica chinesa
é elogiada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e imitada, em doses
variáveis, por dezenas de países, apesar de se estar longe de uma verdadeira
cooperação global e as rivalidades que vinham de trás não terem desaparecido
apesar de o vírus ter já causado mais de 20 mil mortes em todo o planeta.
Acrescenta Luís
Tomé que "a guerra comercial, a 'diabolização' e a desconfiança em relação
à China promovidas pela administração Trump limitam certos esforços coletivos
para conter a pandemia e uma ação global mais concertada. Por outro lado, o
covid-19 expôs as vulnerabilidades do mercado internacionalizado, das cadeias
de produção e distribuição e dos mecanismos de regulação, bem como da quase
livre circulação de pessoas, tudo contribuindo para questionar alicerces
profundos da globalização tal como a conhecemos. A globalização não terminará,
mas ressurgirá desta crise à mercê de novas dinâmicas, lideranças e
influências. Por exemplo, com a saúde e a segurança dos seus cidadãos em jogo,
certos países podem decidir bloquear as exportações ou apreender suprimentos críticos,
mesmo que isso prejudique os seus aliados e vizinhos. Tal tornaria a
'generosidade' e a capacidade de fornecimento de outros num instrumento ainda
mais poderoso de influência para os Estados que o conseguirem ou optem por
fazer - e é o que a China já faz, enquanto os Estados Unidos ainda estão a
adaptar-se, escondidos debaixo dos seus lençóis". O académico refere-se
aqui à publicidade que Pequim tem feito das suas ofertas de material médico aos
países agora em situação mais grave, como é o caso da Itália, valendo-se de ter
conseguido controlar o vírus. Também a Portugal têm chegado abastecimentos
chineses para o combate ao covid-19, seja por oferta da embaixada chinesa seja
por encomenda do governo português a empresas da China, que são gigantes nesta
área.
Apesar de a China
estar em situação de vantagem neste momento em relação aos Estados Unidos, pelo
menos pela fase em que se encontra no combate ao vírus, o nervosismo pela
incerteza atual chegou a fazer que um porta-voz do Ministério dos Negócios
Estrangeiros acusasse os militares americanos de terem infetado a população de
Wuhan, criando mais tensão, com o embaixador chinês em Washington, Cui Tiankai,
a ter de vir a público dizer que são "loucas" as teses
conspiratórias. Quase em retribuição, Trump anunciou que iria deixar de chamar
"vírus da China" ao covid-19, cedendo por fim às críticas gerais.
Luís Tomé
sublinha que, "aparentemente, a pandemia e a crise provocada pelo covid19
são um novo tónico ao 'período de oportunidades' para a China propalado por
Pequim. E se desta crise global a China sair como referência e líder e os EUA
forem vistos como incapazes ou abdicando de o fazer, essa perceção pode alterar
substancialmente a posição de China e EUA na geopolítica global e na disputa
pela liderança no século XXI".
O professor da
UAL destaca ainda, numa perspetiva geopolítica, outras três implicações
possíveis da epidemia que desde meados de março passou a ser considerada pela
OMS pandemia: "Primeiro, levará muitos Estados a reforçarem os sistemas de
saúde e a aumentarem os seus orçamentos nessa área, eventualmente, em
detrimento da Defesa (ainda que a preparação e a resposta face a pandemias
passe a ser uma prioridade de segurança nacional), o que pode acarretar
alterações substanciais na situação estratégica entre potências e em certas
regiões, bem como a colocar em causa certos compromissos e relações anteriores
(como na NATO e nas relações transatlânticas e intraeuropeias), com
consequências imprevisíveis; segundo, dependendo do impacto da crise e das
responsabilidades atribuídas aos respetivos sistemas e líderes, a pandemia pode
favorecer certos regimes mais autocráticos (China, Coreia do Norte ou mesmo
Rússia) ou, ao invés, fragilizar determinados autoritarismos (como no Irão), do
mesmo modo que pode fazer questionar certos modelos e procedimentos mais
democráticos. Finalmente, o saldo final da experiência do covid-19 afetará
também o papel de certos atores não estatais, designadamente de conglomerados
da indústria farmacêutica e de organismos internacionais da área da saúde, só
não se sabendo ainda se em seu favor ou negativamente."
"Aparentemente,
a pandemia e a crise provocada pelo covid19 são um novo tónico ao 'período de
oportunidades' para a China propalado por Pequim"
Carlos Gaspar,
investigador do IPRI-Nova, é mais duro com o comportamento da China nestes
últimos cinco meses, ao ponto de dizer que "só por uma ironia macabra
seria possível imaginar que a epidemia provocada pelo 'vírus de Wuhan' (o nome
de batismo dado pelo Global Times de Xangai ao covid-19) e pela incapacidade do
regime comunista em controlar os seus efeitos a tempo estivesse na origem de
uma projeção acrescida do modelo autoritário chinês. É impressionante a
arrogância com que a imprensa chinesa passou a falar do 'vírus italiano', ao
mesmo tempo que a China envia as suas equipas médicas e os seus equipamentos
para assistir as autoridades italianas a enfrentar a catástrofe cuja origem
ninguém pode esquecer".
Contudo,
acrescenta o autor do recente livro O Regresso da Anarquia, sobre a competição
entre os Estados Unidos, a Rússia e a China e o seu impacto na ordem
internacional, "a epidemia do novo coronavirus é uma tragédia que não muda
nada de significativo na balança internacional, mas pode acelerar um certo
número de tendências fortes que dominam a política internacional desde a grande
recessão de 2008, que precipitou o recuo estratégico dos Estados Unidos, a
crise do euro e o declínio da ordem liberal internacional, por um lado, e abriu
as portas à ofensiva das potências revisionistas, incluindo a anexação da
Crimeia pela Rússia ou o programa de expansão da China com as suas 'Rotas da
Seda'". Ou seja: "Nesse quadro, a epidemia pode selar o fim da globalização
e consolidar a centralidade da competição entre os Estados Unidos, a China e a
Rússia, cuja lógica é o regresso do protecionismo regionalista. A
desglobalização, mais do que a desocidentalização, é a tendência mais forte na
conjuntura e pode completar o desacoplamento tecnológico entre as duas maiores
economias mundiais - a economia americana e a economia chinesa. A epidemia, de
resto, tem sido acompanhada por uma escalada na confrontação política e
ideológica nas relações entre os Estados Unidos e a China, que vai continuar no
centro da política internacional e forçar as outras potências a tomar
partido."
Esta última
afirmação é válida para bom número de países, que hesitam entre velhas alianças
e novas amizades, como é o caso, por exemplo, das Filipinas, mas pode também
aplicar-se a países europeus como Portugal, membros da NATO mas mesmo por isso,
segundo a administração Trump, pressionáveis para não aceitarem a tecnologia 5G
da Huawei, uma empresa chinesa privada, que garante não estar submetida a diretivas
governamentais.
Geopolítica do
vírus: o choque América-China?
Carlos Gaspar,
que conhece bem a China por ter acompanhado as negociações sobre a
transferência de Macau quando trabalhou com os presidentes Ramalho Eanes, Mário
Soares e Jorge Sampaio, chama também a atenção para a forma como este
coronavírus pôs a nu o excessivo peso da economia chinesa na economia global,
não só por ter o segundo maior PIB nem por ser o maior exportador, mas sim pelo
monopólio que tem no fabrico de vários bens: "A epidemia revelou os
perigos da interdependência das 'cadeias de valor' do 'mercado global'. Nenhum
Estado soberano pode continuar a aceitar depender de Estados terceiros em
domínios estratégicos e, bem entendido, os medicamentos e os equipamentos de
saúde, cuja produção é dominada pela China, são produtos estratégicos. A França
e a Alemanha reconhecem as vulnerabilidades europeias, mesmo se nem todos
reconhecem a impossibilidade de integrar o 'rival sistémico' como um 'parceiro
responsável' na velha ordem liberal das democracias, onde o regime autoritário
chinês não tem lugar. O regresso dos critérios políticos e estratégicos ao
comando da economia é uma mudança crucial, que pode tornar possível a
reindustrialização da Europa, para recuperar a sua competitividade em domínios
críticos: um antigo primeiro-ministro chinês disse que a China era a fábrica do
mundo e a Europa o museu do mundo (e os Estados Unidos a vanguarda do mundo).
Talvez o 'vírus de Wuhan' ainda possa salvar a Europa desse triste destino e
dar à integração europeia uma última oportunidade para dar significado à
'soberania europeia', valorizando as soberanias nacionais dos Estados
membros."
"Talvez o
'vírus de Wuhan' ainda possa salvar a Europa desse triste destino e dar à
integração europeia uma última oportunidade para dar significado à 'soberania
europeia', valorizando as soberanias nacionais dos Estados membros."
O investigador do
IPRI considera ainda que "a desglobalização e a regionalização abrem a
possibilidade de uma nova convergência entre a Europa e África: faz mais
sentido investir a fundo na industrialização do continente vizinho do que
exportar capitais e tecnologia para a China e existem bons argumentos para
reconstruir uma interdependência euro-africana, depois de terem ficado demonstrados
os malefícios de uma dependência excessiva em relação à principal potência
asiática, que começa a assumir a sua estratégia como uma grande potência
internacional e cujos objetivos incluem separar os Estados Unidos e a Europa
Ocidental."
Curiosamente,
esta ideia de aposta em África pelos 27 foi defendida numa entrevista já neste
ano ao DN pelo ministro dos Assuntos Europeus da Itália. Defendeu Enzo
Amendola, e deu assim título ao artigo, que "a irmã para o desenvolvimento
europeu neste século será a África".
Tiago Moreira de
Sá, professor da Universidade Nova, que prevê que a nível global, a haver
complicações para os Estados Unidos, estas se devam sobretudo à questão
económica, olha sobretudo para o impacto do coronavírus na sociedade americana,
nomeadamente a debilidade do país por ausência de um sistema universal de
saúde, como existe na Europa e no vizinho Canadá. E que isso influenciará as
presidenciais previstas para novembro deste ano.
Mas não acredita
que seja por causa do covid-19 que a matriz americana seja posta em causa:
"Nada - nem a crise do coronavírus, nem um atentado terrorista (como o 11
de Setembro de 2001), nem uma guerra - consegue alterar a matriz fundacional
dos Estados Unidos. É um país criado pela aplicação prática da ideia de
liberdade individual e da soberania do povo. As duas estão presentes desde a
fundação e têm a sua raiz no puritanismo, que é toda uma doutrina religiosa,
mas também uma teoria democrática e republicana. Tocqueville escreveu no livro
Da Democracia na América que em lado algum o princípio da liberdade foi tão
inteiramente aplicado e que na América io povo reina sobre o mundo político
americano tal como Deus sobre o universo. É certo que houve na história do país
certos momentos críticos - a guerra civil, as duas guerras mundiais, o
macarthismo - em que houve restrições à liberdade, mas não só nenhum deles
conseguiu destruir as ideias fundadoras da América, como, depois deles, elas
saíram mais fortes."
Mas se a matriz
resiste, já tradições como as primárias estão em risco, admite o autor de uma
história das relações diplomáticas entre Portugal e os Estados Unidos. "O
coronavírus está a afetar as eleições primárias, o que é complicado no Partido
Democrata, uma vez que nos republicanos não há adversários sérios a Donald
Trump. Já houve primárias canceladas, como por exemplo no Ohio, um estado muito
importante para medir a aceitação dos candidatos entre os chamados eleitores de
'colarinho azul' na 'cintura da ferrugem', que em 2016, na eleição
presidencial, deram a vitória a Trump. Acresce que quase sempre quem ganha o
Ohio é eleito presidente dos Estados Unidos. Se isto persistir e não houver
condições para realizar as restantes primárias o processo de escolha do
candidato a presidente nos democratas pode complicar-se bastante, não sendo
inclusive de excluir a hipótese de tudo se decidir numa 'convenção disputada',
o que acontece quando nenhum candidato consegue a maioria dos delegados. Para
já, o adiamento das primárias nos democratas está a ter uma consequência: o
adiamento da desistência de Bernie Sanders. Mas estou convencido de que ele vai
desistir em breve, para deixar o partido virar-se 'para fora' e enfrentar o
verdadeiro adversário: Donald Trump. Caso contrário, isto é, se ele não
desistir em breve, vale a pena questionar os verdadeiros motivos da agenda de
Sanders", sublinha Tiago Moreira de Sá.
No seu estilo
errático - há quem diga flexível - Trump tem minimizado a pandemia e defendido
que a economia não pode ser deixada para segundo plano. Mas ao mesmo tempo tem
aberto os cordões à bolsa para reagir ao covid-19, que durante semanas insistiu
em chamar de "vírus da China". O problema é que os excelentes números
da economia que suportavam as esperanças de reeleição de Trump vão desaparecer,
e o desemprego deverá atingir os 12% antes da ida às urnas, enquanto a quebra
no PIB deverá ser superior à da crise de 2008, segundo as previsões do Goldman
Sachs.
Tiago Moreira de
Sá, coautor de Donald Trump, o Método no Caos , faz a seguinte leitura das
possibilidades do magnata do imobiliário que chegou a presidente em 2016 sem
nunca ter tido cargos políticos ou militares, uma novidade nos mais de dois
séculos de democracia americana: "Não só Trump revelou ao longo de toda a
sua vida uma extraordinária capacidade de se adaptar às circunstâncias, como
essa adaptação é uma das chaves do sucesso do chamado populismo, que consiste,
no essencial, em perceber o sentimento popular e dizer ao povo o que o povo
quer ouvir. Essa capacidade de adaptação foi uma das chaves do seu triunfo em
2016, quando percebeu, antes de todos, que o sentimento da população tinha
mudado, por várias causas, mas sendo a causa próxima as 'ondas de choque' do
colapso financeiro de 2008 e da 'grande recessão' que se lhe seguiu, o que
gerou uma rutura definitiva entre o povo e a elite. Se somarmos a isto os
efeitos da globalização, dos grandes acordos de comércio livre, a imigração
ilegal descontrolada e as guerras inúteis no 'grande Médio Oriente', percebemos
a agenda de Trump e o seu sucesso: o discurso antielites de Washington, contra
'as falsas promessas da globalização', protecionista, dura com a imigração
ilegal, nacionalista e antimultilateralista."
E acrescenta:
"É certo que ele tem revelado ao longo de décadas um certo número de
convicções. Desde finais dos anos 1980 que tem insistido persistentemente em
três temas: na crítica dos aliados permanentes dos Estados Unidos, por serem
free riders, indo à boleia da segurança oferecida pela América e não pagando
por ela; na crítica dos grandes acordos de comércio livre, que, segundo ele,
leva empresas e empregos para fora da América, para países que são 'batoteiros
comerciais'; na tolerância dos regimes não democráticos e, mais tarde, dos
líderes políticos fortes, como, por exemplo, Vladimir Putin. Mas, mesmo nesses
casos, soube adaptar-se. No final de 1980, os aliados alvos das críticas eram o
Japão e a Arábia Saudita, dois Estados com os quais tem hoje a melhor relação
possível. Na parte comercial, o alvo passou a ser a China. Já durante a crise
do coronavírus revelou uma grande capacidade de adaptação, começando por
desvalorizar o seu alcance, para depois chegar ao ponto de designar o
vice-presidente Mike Pence para liderar a luta contra a o vírus. Mas, em última
análise, por mais capacidade de adaptação que tenha, o coronavírus não vai
facilitar nada a vida a Donald Trump, podendo mesmo ser o seu 'momento Lehman
Brothers' (recorde-se que a queda do Lehman Brothers, símbolo do colapso
financeiro de 2008, custou a eleição presidencial aos Republicanos). Ao nível
da saúde, os EUA podem vir a tornar-se no país do mundo com mais casos, e isto,
em parte, devido à abordagem inicial da atual Administração. Mas, o que pode
ser mesmo decisivo, são as consequências ao nível económico. Isto não é culpa
de Trump e, por muito que faça, parece impossível evitar nova "grande
recessão", ou mesmo uma "grande depressão". Mas quem está no
poder acaba sempre por ser culpado pelo povo quando este tem de sofrer".
"Em última
análise, por mais capacidade de adaptação que tenha, o coronavírus não vai
facilitar nada a vida a Donald Trump, podendo mesmo ser o seu 'momento Lehman
Brothers' (recorde-se que a queda do Lehman Brothers, símbolo do colapso
financeiro de 2008, custou a eleição presidencial aos Republicanos)."
Para Diana
Soller, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais
(IPRI)-Nova, em primeiro lugar, esta crise poderá acelerar a transição de poder
em curso - que vem de trás e tem visto o Ocidente ceder posição no top 10 das
grandes economias a países emergentes ao ponto de a China ser hoje número dois
só atrás dos Estados Unidos - pois "a forma como os Estados mais poderosos
do sistema internacional estão a fazer face ao que se está a passar vai
determinar o seu potencial de liderança internacional. Da mesma forma, pode
haver um enfraquecimento de alguns Estados que os tornará menos competitivos
internacionalmente quando a pandemia começar a dissipar-se". E para a
académica, "até agora, a China tem sido o Estado mais eficaz neste
sentido. Apesar, e nunca é demais sublinhar, de o vírus ter começado na China e
as autoridades o terem escondido durante cerca de dois meses, Pequim (e também,
em menor medida, Moscovo) têm-se empenhado em oferecer apoio internacional aos
Estados mais afetados pela pandemia. Esta condição pode ter impacto na forma
como a liderança chinesa é percecionada internacionalmente. E pode ter
consequências graves, porque independentemente da ajuda internacional a China é
um Estado com um projeto internacional autoritário como se viu na forma como
geriu a pandemia no seu próprio país - sem grande consideração pelas vidas da
população dentro e fora da China."
Diana Soller, que
é junto com Tiago Moreira de Sá, autora de Donald Trump, o Método no Caos ,
considera que "os Estados Unidos estão a ter muita dificuldade em gerir a
pandemia internamente. Donald Trump está a ter as mesmas dificuldades que
outros governos populistas. Foi eleito com a promessa de encontrar soluções simples
para problemas complexos e vai ter muitos problemas para conseguir gerir as
expectativas dos norte-americanos. Internacionalmente, não está a haver
qualquer esforço dos EUA em retomar o seu papel de líder internacional contra a
pandemia. Da mesma forma que a China tenderá a beneficiar do seu esforço
internacional para fazer face à pandemia - apesar das suas fortes
responsabilidades na sua disseminação -, os Estados Unidos também tenderão a
sofrer as consequências da falta de liderança internacional".
A forma como o
covid-19 irá afetar os Estados Unidos pode ter também efeitos nas eleições
presidenciais, acrescenta Diana Soller, já que "Trump partia com grande
vantagem, mas a gestão da crise pode mudar a perceção norte-americana da sua
liderança". E uma eventual derrota de Trump, depois da surpresa que foi o
seu triunfo frente a Hillary Clinton em 2016, significaria não só uma mudança
na América, mas também uma mudança na relação da América com o mundo, o
regresso do multilateralismo praticado por Barack Obama e na realidade pelos
seus antecessores, mesmo quando do Partido Republicano, pois Trump é excecional
na sua defesa do "América Grande de Novo". A vencer Joe Biden, que
foi vice de Obama, a Casa Branca "tenderá a ter outra perspetiva do papel
internacional dos Estados Unidos, nomeadamente no que respeita à liderança
internacional da pandemia e noutros assuntos. Também tenderá a reunir à volta
dos Estados Unidos as democracias ocidentais, retomando o modelo de comunidade
atlântica (e democrática) interrompido por Donald Trump. Assim, o resultado das
eleições norte-americanas vai ser central na ordem internacional
pós-coronavírus e nos anos que se avizinham. Trump tenderá a isolar-se, Biden a
exercer liderança internacional", afirma Diana Soller.
Comentando o que
parece ser o cada um por si nos 27, poucas semanas depois do Brexit, a
investigadora do IPRI-Nova Diana Soller nota que no espaço europeu "os
Estados substituíram a União Europeia no combate à pandemia, numa situação sem
precedentes. E a ajuda internacional aos Estados europeus veio essencialmente
da China e da Rússia. É certo que passado o pico da pandemia, e especialmente
quando começarem a sentir-se as profundas dificuldades económicas que vamos
atravessar, os governos nacionais terão muitas dificuldades em manter o grau de
aprovação que têm agora. Mas é possível que se gere uma relação de maior
confiança entre as populações nas soluções nacionais. Há três consequências
imediatas: a primeira são as crises políticas que poderão gerar-se no seio dos
países. A segunda é que, dessas crises políticas poderão sair novos governos de
pendor muito mais nacionalista, incluindo as suas derivações extremistas e
populistas. A terceira é que a União Europeia vai passar por um período de
ameaça existencial, pelas duas razões anteriores e por ter sido quase
irrelevante no combate à pandemia. Será necessário um grande esforço das elites
europeias para darem uma resposta firme e solidária à crise económica que nos
espera. Poderá ser a única forma de sobreviver à pandemia".
A chegada de um
avião a Itália com assistência médica chinesa, incluindo material mas também
especialistas no tratamento do covid-19, foi amplamente divulgada pela imprensa
chinesa, e também pela russa. Aliás, foi um antigo ministro dos Negócios
Estrangeiros italiano, também ex-vice-presidente do Parlamento Europeu, Franco
Fratinni, que a televisão russa RT citou para suportar o título "A UE
deixou a Itália praticamente sozinha a lutar contra o coronavírus", artigo
que noticiava também a chegada de ajuda enviada por Moscovo a uma base próxima
de Roma. Isto numa altura em que, por razões diferentes, Alemanha e França
travavam qualquer exportação de máscaras cirúrgicas, tão em falta na Itália.
A chegada de um
avião a Itália com assistência médica chinesa, incluindo material mas também
especialistas no tratamento do covid-19, foi amplamente divulgada pela imprensa
chinesa, e também pela russa.
E teve de ser a
Comissão Europeia em Bruxelas a alertar para a violação das regras do mercado
comum, apesar de as motivações tanto francesa (controlo do Estado para evitar
especulação com os preços) como alemã (garantir fornecimento à população em
risco) fossem meritórias do ponto de vista nacional e procurassem salvar vidas
- agora Alemanha e França juntas já deram mais máscaras a Itália do que a China.
O encerramento de fronteiras, decidido por vários países dos 27 sem consultar
os vizinhos (não foi o caso de Portugal e de Espanha) foi simbolicamente a mais
triste celebração dos 25 anos do espaço Schengen, sinónimo de livre circulação
para os europeus, com um lisboeta a poder conduzir o carro até Helsínquia,
enquanto agora, culpa da pandemia, nem a Badajoz pode ir.
Bernardo Ivo
Cruz, académico que se destacou nos últimos tempos como editor do The London
Brexit Monthly Digest, mostra-se preocupado sobretudo com o pós-pandemia,
temendo tentações autoritárias. "Tal como o próprio vírus, a ciência não
tem ideologia: o isolamento social necessário para combater a pandemia pede
instituições públicas fortes e com capacidade de substituírem mecanismos do
mercado. O reforço do papel dos Estados exige o reforço dos mecanismos de
controlo democrático das instituições. Não podemos permitir que a democracia
seja uma das vítimas desta pandemia." Ao mesmo tempo, o antigo
subsecretário de Estado dos Negócios Estrangeiros lamenta o fechar dos países
sobre si próprios, pois "muitos acreditámos que seria necessária uma
ameaça comum para criar laços de cooperação e solidariedade entre as nações que
gerassem um verdadeiro multilateralismo. A crise atual parece desmentir essa
ideia."
Geopolítica do
vírus: o choque América-China?
A cimeira
europeia extraordinária desta quinta-feira, realizada por videoconferência,
assim como todas as medidas prometidas de estímulos financeiros e de
flexibilidade orçamental para recuperar a economia dos 27 é para já um sinal
semipositivo apesar das divergências óbvias, mas cuja concretização só se verá
mais para a frente, dependendo da vontade política de cada líder e do próprio
contexto internacional. Itália e Espanha precisam de solidariedade urgentemente
e estamos a falar de dois colossos da UE, com tremendo peso político.
Provando ser de
uma fibra diferente da maioria dos seus pares, Angela Merkel dirigiu-se há dias
aos alemães para estarem unidos no maior desafio "desde a Segunda Guerra
Mundial" e tanto falou da necessidade absoluta de confinamento como da
obrigação de todos os setores da sociedade serem solidários para sair da dupla
crise, a sanitária e a económica. Recordando-se como a chanceler liderou a
União Europeia durante a anterior crise, talvez não seja má notícia que se
ergam vozes a defender que se recandidate a um quinto mandato em 2021.
O choque não é
entre democracia e ditadura
"Há que ter
cautela em tirar conclusões apressadas de natureza geopolítica sobre as
consequências da pandemia originada pelo coronavírus. Há muitos elementos por
identificar ainda. Não vejo razões para o regime político passar a servir de
modelo para outros países. Nem vejo que a China esteja empenhada nisso. Pequim
nunca tentou alterar os regimes políticos dos países com que se relaciona
económica e politicamente. Nunca tentou fazer operações de mudança de regime.
Ao contrário do seu opositor, não tenta espalhar nem promover uma ideologia
política. Já o fez no passado, mas agora não. Vão longe os tempos em que a
China apoiava movimentos de libertação no terceiro mundo", afirma Carlos
Branco, major-general e investigador do IPRI-Nova, que não vê na concorrência
acrescida entre Estados Unidos e China um confronto entre uma democracia e uma
ditadura, mas sim uma luta de poder, com Pequim a esforçar-se por ganhar
clientelas (dai a estratégia Uma Faixa, Uma Rota, e agora toda esta
solidariedade no combate ao vírus), mas a vantagem ainda a ser grande para
Washington, com a produção de riqueza americana ainda bem superior, tal como a
capacidade militar, apesar da extraordinária multiplicação do PIB chinês 175
vezes desde que Mao Tsé-tung proclamou a República Popular há 70 anos (na
verdade, o crescimento deu-se nos últimos 40 anos, mérito de Deng Xiaoping e
sucessores, já depois da morte de Mao).
Acrescenta ainda
o militar, com experiência na ex-Jugoslávia, no Médio Oriente e no Afeganistão,
que "as democracias dão-se bem com Estados autoritários, desde que sejam
submissos e a relação seja de soma zero. Quando os Estados autoritários deixam
de ser submissos, as democracias deixam de se dar bem com eles. Isso acontece
também com democracias que não sejam submissas. A América Latina está cheia de
exemplos desses, assim como o Médio Oriente. Ao contrário daquilo que é
propalado ardentemente em muitos fóruns, a dualidade do mundo atual não é
democracia vs. autoritarismo. O que está em causa é a luta pelo poder na ordem internacional.
Se a China fosse uma democracia comportar-se-ia do mesmo modo. Os Estados
Unidos já fizeram o mesmo ao Reino Unido, e eram ambas democracias. A questão
central é perceber como se vai operar essa transição de poder: violenta ou
pacífica. E quem terá a iniciativa confrontacional. Esta é a questão
central".
Geopolítica do
vírus: o choque América-China?
Carlos Branco
também evita dar demasiada importância à nova diplomacia da máscara (por
analogia à tradicional diplomacia do panda, em que a China oferecia aos líderes
estrangeiros o animal quando queria melhorar relações). "Os europeus não
vão trocar a aliança com os EUA por um alinhamento político com a China ou com
a Rússia. A diferença de poder entre os EUA e a China ainda é imensa. Isso mesmo
foi reconhecido publicamente pelo presidente Xi Ji Ping, aconselhando realismo
e parcimónia nos excessos de confiança dos seus concidadãos sobre o poder do
país."
Acrescenta o
major-general que "o sucesso chinês na gestão da epidemia do coronavírus
não tem que ver com o regime, mas com a capacidade do Estado, a oportunidade da
resposta e a proatividade das lideranças. Não é verdade que os Estados
autocráticos tenham mais sucesso no controlo da epidemia do que as democracias.
Não é empiricamente correto estabelecer uma relação de causa-efeito entre o
regime político e a eficácia da resposta. Há, no entanto, alguns aspetos que
merecem observação atenta. O impacto que a crise terá na ordem política interna
dos Estados afetados, sobretudo naqueles em que a resposta dos seus dirigentes
não foi adequada. Não é de excluir uma vaga de contestação. A pandemia pode ter
impacto na globalização e no futuro do comércio internacional, conduzindo ao
aumento do protecionismo, reforçando uma tendência já em curso, quando as economias
industrializadas começaram a perceber que não controlavam a globalização nem
eram as principais ganhadoras".
Carlos Branco,
reconhecendo a força da América, não deixa, porém, de notar que esta crise
mostrou a debilidade causada pela ausência de um sistema de saúde público. Mas
considera que "a maior debilidade reside na falta de proatividade na
resposta do sistema, da qual Trump é o principal responsável. A probabilidade
de esta falta de liderança ter uma consequência desfavorável na campanha eleitoral
de 2020 é muito grande. Quem se arrisca a ser um dos grandes perdedores da
epidemia é o presidente Trump. O efeito vai ser demolidor nas suas pretensões à
reeleição. Os seus opositores não lhe perdoarão a negligência com que enfrentou
o problema. A bolsa de valores afundou-se e a economia americana vai entrar em
declínio".
O tango pode
dançar-se a três ou até a quatro?
Com a América
debilitada pelo vírus e pela inação de Trump, e talvez com outro líder eleito
em novembro mais na linha tradicional de alinhamento com a Europa, levanta-se a
questão das relações da América também com a Rússia, por agora aliada de
conveniência da China. Ora, sobre a Rússia de Putin, que se prepara para ficar
mais uma década ou mais no poder graças a uma revisão constitucional, e o
choque desta com o Ocidente, Carlos Branco tem uma visão um pouco
contracorrente: "A Rússia não se tenta fechar. Quem a ostracizou foram os
EUA secundados pelos seus aliados europeus. Bem gostava a Rússia de ter
relações normais com a Europa. Moscovo não abraçou com alegria as sanções nem o
impedimento do financiamento às suas empresas pelo setor bancário europeu. A
tentativa de tornar a Rússia um Estado pária e a demolir económica e
politicamente causou alguma mossa, mas longe daquilo que se pretendia e estava
planeado. Virou-se para outras regiões do globo, em primeiro lugar para a Ásia.
A lista de compradores do seu armamento comprova que a Rússia não se fechou nem
foi isolada. O mundo deixou de ser eurocêntrico. São muitos os exemplos da nova
orientação russa, começando pelo paulatino reforço dos seus gasodutos para
leste."
E, de facto,
Moscovo, na aparência lidando com uma economia do tamanho da italiana, conta
com instrumentos de grande potência, sejam militares, a começar pelo arsenal
nuclear e a acabar na capacidade de intervir em países fora da sua vizinhança
como é o caso da Síria e também o da República Centro-Africana, seja
económicos, como o fez agora com o petróleo, com efeitos diretos na
rentabilidade da produção americana.
Fronteiras fechadas
foi a solução para muitos países no combate ao vírus, como fez a Polónia
Fronteiras
fechadas foi a solução para muitos países no combate ao vírus, como fez a
Polónia© Odd Andersen/AFP
Segunda maior
economia mundial, se as contas forem feitas a 27, a União Europeia continua a
ter algumas dificuldades em justificar o nome, como se viu na falta de ação
concertada frente à pandemia, mas Carlos Branco sublinha que "é preciso
ter novamente cautela na abordagem deste problema. Vendo a resposta apenas da perspetiva
de proteção civil (excluindo medidas de ajuda económica que foram concertadas
multilateralmente), o Mecanismo de Proteção Civil da UE foi desenhado para
reforçar a cooperação entre Estados membros no domínio da proteção civil,
quando a escala da emergência supera a capacidade de resposta de um país, não
quando supera a capacidade de todos os membros, ainda por cima quase
simultaneamente. Quando isso acontece o Estado pode pedir ajuda à UE através
deste mecanismo. Ora o mecanismo não foi desenhado para responder a um desafio
da dimensão da epidemia, em que "todos" os países necessitavam de
ajuda em simultâneo, os recursos disponibilizados pelos países eram escassos, e
não havia excedentes para libertar. O facto de a China já ter ultrapassado o
problema, para além da sua óbvia capacidade industrial, permitiu ajudar. Tal
seria impossível aos EUA porque estava a tentar encontrar soluções para
resolver os seus próprios problemas".
Quanto ao
encerramento de fronteiras, no mundo, mas o militar e investigador não mostra
grande cuidado. "Não nos devemos preocupar com o regresso das fronteiras.
É uma medida necessária, mas de caráter temporário. Quando a epidemia estiver
debelada Schengen voltará à normalidade. Não me aflige, nem tenho receios
quanto a essa matéria. Nem os cidadãos devem ter", afirma, numa mensagem
de otimismo.
É a economia que
no final de contas vai contar
O embaixador
Francisco Seixas da Costa considera ser "prematuro tentar retirar ilações
quanto a uma eventual alteração da relação geopolítica de forças à escala
global, por virtude desta crise. A meu ver, tudo vai depender bastante mais do
saldo económico final, isto é, da capacidade relativa de recuperação das
grandes economias, do que dos impactos humanos da tragédia. Estes podem levar,
no curto prazo, a movimentos emocionais de opinião, que não deixarão de se
refletir na sobrevivência de alguns governos. A reeleição de Trump está nesta
equação. Mas o importante vai ser observar como é que, no prazo de um ano,
China, América e União Europeia estão a sair disto".
O diplomata, que
foi embaixador junto da ONU, em Nova Iorque, e também na França e no Brasil,
analisa as possíveis evoluções geopolíticas de um mundo pós-vírus: "A
China é uma incógnita. Sendo uma ditadura, pode controlar melhor o seu processo
produtivo, mas sendo uma potência exportadora por essência, é muito dependente
do crescimento dos seus parceiros comerciais a ocidente. E o estado destes,
como consumidores, vai depender de vários fatores. Já a capacidade de adaptação
americana é imensa e, a menos que ali ocorra um cataclismo que não consigo
prever, a experiência mostra-nos que a flexibilidade da América é sempre a que
permite maiores e mais rápidas taxas de recuperação do crescimento. As razões
são estruturais e radicam na sua cultura empresarial, pouco limitada pelas
preocupações sociais que tolhem a Europa no seu 'modelo'. Mas assentam,
essencialmente, na confiança que os mercados sempre sentem nos EUA, como
economia liderante do capitalismo mundial. Resta uma outra questão. Será que,
no termo de tudo isto, com toda a 'boa vontade' que a China está a demonstrar
para ajudar os países vítimas da pandemia, muito daquilo que eram as crescentes
resistências, no mundo ocidental, face à projeção geopolítica chinesa, não
acabarão por se diluir? É aqui que a Europa pode ter uma palavra decisiva. Se a
sua fragilidade, no termo desta crise, não conseguir ser compensada com a
restauração de uma relação mais substantiva e de confiança com os EUA (por
exemplo, se Trump ganhar), manter-se-á a ideia, que vinha a fazer o seu
caminho, de tentar travar o caminho à China nos variados setores em que esta
estava a 'entrar' no seu mercado? O 5G da Huawei tem caminho aberto? Os
investimentos da Nova Rota da Seda têm via livre? Não deixaria de ser irónico
que um vírus originado na China acabasse por ser um reforço para o seu poderio.
Os maluquinhos das teorias da conspiração teriam aqui o seu grande momento de
glória especulativa."
"Não
deixaria de ser irónico que um vírus originado na China acabasse por ser um
reforço para o seu poderio. Os maluquinhos das teorias da conspiração teriam
aqui o seu grande momento de glória especulativa."
Victor Angelo,
antigo alto quadro das Nações Unidas, é outra voz cautelosa: "Não tenho
uma bola de cristal nem pratico a arte da adivinhação, uma disciplina muito
popular em certos meios intelectuais. Por outro lado, falta-nos ainda conhecer
uma variável fundamental, que é a da duração da fase aguda da crise, a fase em
curso. Se se prolongar por vários meses, o impacto será profundo, sobretudo nas
áreas da economia e dos rendimentos das famílias. Por isso, as duas grandes
preocupações atuais, que devem ser tratadas em simultâneo, são o combate à
pandemia e o evitar a falência das empresas e das famílias. Os governos serão
avaliados pela maneira como venham a responder a esse tandem de questões. É aí,
por exemplo, que se joga a eleição presidencial americana."
Com toda uma
carreira ao serviço das Nações Unidas, sendo equiparado a secretário-geral
adjunto, Victor Angelo sublinha como o vírus pode reforçar os nacionalismos e
assim abalar tudo o que são entidades promotoras do multilateralismo, seja a UE
seja as Nações Unidas. Não por acaso, o secretário-geral António Guterres fez
um apelo desesperado para que cessassem os conflitos e os países se unissem
contra uma pandemia que, como qualquer da sua natureza, não reconhece
fronteiras.
"Em termos
geopolíticos, deve ter-se presente que a crise fez renascer o sentimento
nacional, a convicção de que as fronteiras dos Estados protegem os cidadãos.
Nacionalistas ferrenhos e políticos demagogos procurarão investir nesse
sentimento e sacar dividendos da coisa. Esse poderá ser um dos maiores perigos
que teremos de enfrentar no período pós-coronavírus. A demagogia
ultranacionalista, o aproveitamento do medo pelos populistas. A partir daí,
estará em perigo toda a arquitetura multilateral e intergovernamental,
sobretudo o sistema das Nações Unidas e a União Europeia. Como também ficará
ameaçada a cooperação internacional, quer no domínio humanitário, de ajuda aos
refugiados, por exemplo, quer no campo do desenvolvimento e da luta contra a
pobreza", diz Victor Angelo.
"Em termos
geopolíticos, deve ter-se presente que a crise fez renascer o sentimento
nacional, a convicção de que as fronteiras dos Estados protegem os cidadãos.
Nacionalistas ferrenhos e políticos demagogos procurarão investir nesse
sentimento e sacar dividendos da coisa. Esse poderá ser um dos maiores perigos
que teremos de enfrentar no período pós-coronavírus."
Que acrescenta:
"Um outro aspeto particularmente importante terá que ver com a competição
pela hegemonia entre a China e os Estados Unidos. Essa disputa acentuar-se-á e
marcará de modo determinante a agenda das relações internacionais. A China já
entrou num período de recuperação económica e política, enquanto os Estados
Unidos se afundam na crise e se emaranham numa resposta caótica. Os chineses
ficam, assim, em vantagem e vão tentar tirar o maior proveito político possível
desse desfasamento. Nomeadamente, na ajuda sanitária a outros países, como está
a acontecer com a Itália e a Sérvia, para mencionar apenas dois países que
pertencem a esferas geopolíticas próximas, mas distintas. Mas não só. A
ofensiva diplomática e económica da China ganhará uma nova dinâmica e um outro
nível de subtileza, de modo a ganhar terreno sem criar anticorpos."
Depois da China e
da Europa, o desafio é americano
O vírus começou
por matar na China e na Ásia Oriental, depois passou a matar na Europa, agora
nos Estados Unidos a cifra de vítimas mortais já ultrapassa as mil, e a
tendência é para subir ainda mais pois o país já é recordista de infetados,
desafiando a capacidade de resposta da sociedade americana e sobretudo da
administração Trump. E se o Reino Unido adiou eleições municipais e a Rússia um
referendo constitucional, para já não passa pela cabeça de ninguém adiar as
presidenciais americanas, aquelas que sagradamente se realizam na primeira
terça-feira depois da primeira segunda-feira de novembro (neste ano calha no
dia 3). Em risco está sim a reeleição de Trump, se bem que o presidente pode
ainda revelar-se eficaz no combate à dupla crise sanitário-económica.
"A crise de
saúde pública causada pelo novo coronavírus pode, de facto, levar o eleitorado
americano a pensar duas vezes no modo como os americanos têm acesso à saúde e,
porventura, influenciar as escolhas a fazer em novembro. Mas não me parece que
esta questão venha a tornar-se decisiva em termos eleitorais. Poderá, quando
muito, reforçar as ideias e as convicções que cada setor do eleitorado já tem
acerca do assunto. Aos olhos do eleitorado de Trump, por exemplo, vai estar
muito mais em avaliação o modo como o presidente enfrentar a crise e aí a
estratégia de comunicação e as perceções do eleitorado poderão ser mais
importantes do que uma reflexão generalizada sobre o sistema de saúde nos
Estados Unidos", considera Luís Nuno Rodrigues, diretor do Centro de Estudos
Internacionais do ISCTE.
Geopolítica do
vírus: o choque América-China?
O historiador,
doutorado por uma universidade americana, é também cauteloso sobre a pandemia
como oportunidade para a China ultrapassar os Estados Unidos em termos de
influência global: "Em termos internacionais, a história mostra-nos que
eventos traumáticos e de grande impacto, como por exemplo a Segunda Guerra
Mundial, podem funcionar como aceleradores de mudanças já em curso no sistema
internacional. Sabemos que o momento unipolar dos Estados Unidos já terminou há
muito, com a gradual ascensão da China. Mas poderá ser a crise que atravessamos
o momento em a China de forma definitiva se tornará a potência decisiva, quiçá
hegemónica, em termos internacionais? Não é prudente formular uma opinião sobre
este assunto sem que seja com um ponto de interrogação no fim."
Há um século, no
final da pandemia que surgiu no Kansas mas ficou conhecida como gripe
espanhola, os Estados Unidos emergiram como primeira potência mundial. Mas
antes tinha acontecido a Primeira Guerra Mundial, com os americanos a terem de
vir salvar franceses e britânicos, apesar dos seus imensos impérios mundiais,
do poderio alemão. É arriscado, como fizeram notar os académicos, prever
demasiado. Basta olhar para as inúmeras publicações que há meses faziam a
avaliação da década que se iniciava para perceber como ninguém pensava em
vírus, a preocupação sobretudo na Europa era com a saída do Reino Unido, esse
Brexit de que já pouco se fala.
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