sexta-feira, 20 de março de 2020

Covid-19: poluição cai a pique, mas pode ser apenas "fogo-de-vista"

Por exemplo em Veneza, a redução drástica de turistas e de movimento fez com que os canais da cidade ganhassem uma limpeza como há muito não via ao ponto de ser possível ver cardumes de peixes, de cisnes e de golfinhos.

Covid-19: poluição cai a pique, mas pode ser apenas "fogo-de-vista"

O consumo de combustíveis fósseis está a decrescer e as emissões poluentes seguem o mesmo caminho com a pandemia de covid-19. Mas ambientalistas e ativistas climáticos não estão otimistas. O que até está a ter um efeito positivo a curto prazo nas alterações climáticas pode não passar de uma situação transitória, tal como aconteceu aquando da crise financeira de 2008-09. Para já os canais de Veneza parecem estar mais limpos.

Sandra Gonçalves
20 Março 2020 — 00:28

Com as atenções desviadas das alterações climáticas para o coronavírus, a jovem ativista sueca Greta Thunberg apelou aos jovens de todo o mundo para continuarem a manifestar-se online. Através da sua conta na rede social Twitter, Greta instou os seus seguidores a não abrandarem a luta contra as alterações climáticas, ainda que devam evitar a todo o custo grandes concentrações de pessoas e marchas de protestos, por causa da pandemia.

O apelo da jovem ativista significa que, face ao covid-19, milhares de jovens terão de mudar a forma como se manifestam, transferindo as ações de luta para o mundo virtual, usando e abusando de tags como #DigitalStrike e #ClimateStrikeOnline.

"A luta pela pandemia não pode fazer esquecer a luta pelo ambiente", avisou Greta

"Mantenham o entusiasmo e vamos enfrentar uma semana de cada vez. Juntem-se ao movimento #DigitalStrike e publiquem fotos dos vossos protestos e dos vossos cartazes usando as hashtags #ClimateStrikeOnline, #fridaysforfuture, #climatestrike, #schoolstrike4climate", rematou a jovem.

Entretanto, estimativas indicam que as emissões mundiais de CO2 podem diminuir neste ano em cerca de 7%, valor próximo ao que o planeta devia atingir com as metas traçadas no Acordo de Paris sobre alterações climáticas.

Dados conhecidos nesta semana com base em relatórios internacionais revelam que o mundo está a emitir menos um milhão de toneladas de dióxido de carbono por dia com a quebra no consumo de petróleo devido à pandemia de covid-19. A quebra deve-se, essencialmente, à contração da China. Um balanço publicado no Carbon Brief, atualizado a 4 de março, indica que a paralisação de grandes regiões da China reduziu em 25% as emissões de CO2 do país.

Devido ao covid-19, que surgiu em dezembro de 2019 na China, no primeiro trimestre de 2020 o consumo de carvão nas fábricas caiu 36% e a produção de carvão 29%, tendo a capacidade de refinar petróleo sido reduzida em 34%. Ao todo, segundo o Carbon Brief, as medidas da China para conter o coronavírus levaram a uma redução de entre 15% e 40% da produção nos principais setores industriais.

"É provável que isso tenha impedido um quarto ou mais das emissões de CO2 do país nas últimas quatro semanas", refere-se no portal, acrescentando que em 2019 a China emitiu cerca de 800 milhões de toneladas de CO2, pelo que o vírus poderá ter impedido a libertação de 200 milhões de toneladas até ao momento.

Extrapolando para o ano inteiro, com a redução na produção de carvão da China mais a redução na venda de barris de petróleo, a quebra das emissões de CO2 no país será acima de 6%.

A China é um dos países mais poluentes do mundo, com as cidades de Hotan e Kashgar no top 20, de acordo com um relatório da IQAir. A NASA publicou no sábado imagens de satélite que mostram os níveis de dióxido de azoto na China antes e depois de o país ter começado a impor bloqueios, a 23 de janeiro. Também mostrou quedas drásticas nas emissões de gases ao redor de Wuhan, a primeira cidade a ser colocada em quarentena.

O dióxido de azoto é emitido pela queima de combustível, carros e centrais termoelétricas, e pode levar a insuficiências respiratórias, como asma, entre outros efeitos negativos

Também em Itália, o país europeu mais afetado pelo covid-19, imagens de satélite da Agência Espacial Europeia (ESA) mostram um declínio na poluição do ar. Uma animação feita com base nos dados do satélite Copernicus Sentinel-5P, recolhidos entre 1 de janeiro e 11 de março, mostra uma diminuição nas emissões na Europa, principalmente em Itália, quando o coronavírus provocou bloqueios e obrigou à redução da atividade no país.

Por exemplo em Veneza, a redução drástica de turistas e de movimento fez com que os canais da cidade ganhassem uma limpeza como há muito não via ao ponto de ser possível ver cardumes de peixes, de cisnes e de golfinhos.

A autarquia da cidade adiantou, entretanto, que o regresso dos peixes não se deve à melhoria da qualidade da água, sendo que esta "parece mais limpa por causa do tráfego reduzido nos canais, permitindo que os sedimentos assentem no fundo". Ainda assim, assume que a poluição na água pode não ter diminuído, a qualidade do ar melhorou consideravelmente.


Gianluca De Santis
@b8taFPS
Venice hasn't seen clear canal water in a very long time. Dolphins showing up too. Nature just hit the reset button on us

"O declínio nas emissões de dióxido de nitrogénio na planície Padana, no norte de Itália, é particularmente evidente", disse Claus Zehner, responsável pela missão do Copernicus Sentinel-5P, em comunicado à imprensa. "Embora possa haver pequenas variações nos dados devido à cobertura de nuvens e às alterações climáticas, estamos muito confiantes de que a redução de emissões que podemos ver coincide com o bloqueio em Itália, causando menos tráfego e atividades industriais."

Os dados foram coletados pelo instrumento Tropomi, que mapeia poluentes do ar em todo o mundo. "O Tropomi é o instrumento mais preciso hoje em dia que mede a poluição do ar no espaço", disse Josef Aschbacher, diretor de programas de observação da Terra da ESA. "Essas medições, disponíveis globalmente graças à política de dados gratuitos e abertos, fornecem informações cruciais para cidadãos e tomadores de decisão", concluiu.

Atingir a meta de redução de 7,6% é muito pouco provável, diz Zero

Por cá, ainda não há dados sobre a redução de emissões poluentes. As recomendações da Direção-Geral da Saúde (DGS) e do governo para o isolamento social só começaram a surtir efeitos a 14 de março (sábado), com maior visibilidade na segunda-feira, com o encerramento das escolas e grande parte da população a receber indicações para trabalhar a partir de casa.

O presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, publicou na segunda-feira, na sua página no Facebook, duas imagens em que "se constata a brutal diminuição do trânsito na cidade". Segundo o autarca, "os lisboetas perceberam a gravidade do momento que estamos a atravessar. No domingo, o número de passageiros na Carris desceu 70%", destacou. E deixou ainda o apelo: "É importante cumprir com as recomendações e limitar as viagens ao essencial."

Já a Agência Internacional de Energia (AIE) emitiu nesta semana um relatório segundo o qual a procura global de petróleo deve contrair neste ano pela primeira vez desde 2009, devido ao covid-19, estando em causa menos 90 000 barris de petróleo por dia em relação ao ano passado, não ultrapassando os 99,9 milhões de barris por dia.

Transpondo a quebra no consumo de petróleo para as emissões de dióxido de carbono (CO2) no primeiro trimestre, houve uma redução de emissões calculada em 9,6 milhões de toneladas, o equivalente a menos 1,4 vezes as emissões de Portugal em 2017.

Se à redução na procura de petróleo se juntar o abrandamento do consumo de carvão, com base em números divulgados pelo portal Carbon Brief, as estimativas indicam que as emissões mundiais de CO2 podem reduzir-se neste ano em cerca de 7%, um valor próximo do que o planeta devia atingir em 2020 com os esforços dos países para cumprir o Acordo de Paris sobre alterações climáticas.

Todavia, todas estas evidências de abrandamento não deixam os ambientalistas otimistas. Apesar da quebra na procura mundial de petróleo, o presidente da associação Zero, Francisco Ferreira, disse em declarações ao DN que "ainda é muito baixa" e lembrou que "é preciso uma redução de 7,6%" em cada ano.

De acordo com Francisco Ferreira, "para que sejam atingidos os números de redução de emissões para este ano, era preciso que o cenário se mantivesse, o que se traduziria em graves impactos para a economia, e consequentemente para o emprego, o que também não é desejável", sublinhou.

De recordar que na crise financeira de 2008-09 também houve uma grande queda de emissões. Mas depois foi aprovado um conjunto de medidas pelos governos para estimular a economia global. Consequentemente, as emissões de CO2 voltaram em força. A evolução positiva da China pode indicar que a crise do covid-19 será mais curta do que a crise de 2008-09, e o mais provável é que as emissões voltem aos níveis habituais.

Sem comentários: