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Nós é que somos o vírus
A nossa
felicidade não pode ser indissociável da manutenção do equilíbrio da natureza,
porque para o planeta nós é que estávamos a ser o vírus.
Paulo Dentinho
28 de Março de
2020, 18:56
A humanidade
fecha-se em casa e a natureza agradece, porque se a pandemia entre os humanos
está a ser uma tragédia, para ela está a ser uma bênção. Com as fábricas
paradas ou a meio gás na Europa, nos Estados Unidos da América, na Índia, na
China, para apenas referir alguns dos maiores poluidores mundiais, os gases com
efeitos de estufa caíram e a qualidade do ar do planeta melhorou
substancialmente. À força, o mundo aproximou-se dos padrões definidos no acordo
de Paris para o clima e esta é, ou deveria ser, uma lição a ter em conta na
altura em que sairmos desta crise sanitária global.
À agitação da
globalização, levados pelo imperativo de produzir para consumir e consumir para
produzir, sucedeu esta quietude de confinamento, e ficámos reduzidos a uma certa
essencialidade de bens, já pouco importando o último modelo de automóvel ou a
derradeira tendência da moda do prêt-à-porter. O espectáculo da posse a que
fomos sujeitos de pouco vale quando a vida e a sua manutenção é o que agora
mais importa.
É certo que há
vozes prontas a colocar nos pratos da balança uma escolha entre a economia e a
sobrevivência, dispostas até ao sacrifico de alguns sob um argumento digno de
práticas eugenistas por “apenas se tratar das vidas das pessoas mais velhas”.
Na revista alemã Der Spiegel, destaca-se em título que “sim, podemos colocar
nos pratos da balança os danos económicos contra as vidas humanas”, e quando
chegamos aqui, quando a vida de um idoso não vale o sacrifício da economia, o
niilismo venceu. E às urtigas o juramento de Hipócrates, essa promessa solene
dos médicos de consagrar a vida ao serviço da humanidade, às urtigas aquele
mínimo que faz de nós uma civilização gerida por padrões humanistas. E quem
assim pensa, nem sequer se dá conta que o vírus pode ter mutações e dizimar
gerações, velhos e novos.
Surdos e cegos
Esses que
pretendem colocar as máquinas em marcha em nome da economia são também os
mesmos que estão surdos e cegos ao planeta, os mesmos que são indiferentes à
cor do céu em Wuhan e Pequim (sem o seu habitual manto de poluição), os mesmos
que teimam em não ver a importância da transparência das águas nos canais de
Veneza.
Há menos de um
mês, quase todos nós estávamos hipnotizados no quotidiano consumista, minados
pelo vírus do desperdício. Sem quase nos apercebermos, tínhamos a ideia de
felicidade associada à posse, sendo que muitas das nossas necessidades eram/são
criadas de forma artificial pela publicidade, boa parte delas ecologicamente
não sustentável, e tudo isso para manter a concorrência entre empresas,
obrigá-las a produzir cada vez mais, um produto dando sempre lugar a um novo
produto, numa espiral sem fim, sempre no pressuposto do nosso consumo bulímico.
Numa altura em
que os governos procuram relançar a economia, debaixo do receio e das
exigências dos mercados financeiros (insensíveis e amorais à vida), arriscamos
a voltar ao mesmo e a rebentar de vez com o planeta. A agricultura industrial é
um bom exemplo. Ela repousa sobre as energias fósseis, desde a maquinaria aos
pesticidas, a maioria nocivos para o ambiente, nocivos para a saúde. E ao ritmo
a que estávamos, grande parte dos insectos arrisca-se a desaparecer em menos de
um século, o que é muitíssimo mais problemático do que as suas eventuais
picadas. A sua taxa de extinção é mais acentuada do que a dos mamíferos,
pássaros ou répteis. É uma catástrofe anunciada. Outra catástrofe. Basta pensar
na polinização e na sobrevivência de inúmeros ecossistemas. Mas podíamos falar
da moda, dos transportes, de quase tudo o que se foi tornando em hábito…
Nesta altura em
que estamos numa emergência de saúde pública, com consequências devastadoras
sobre os nossos quotidianos, o que se reerguer daqui não pode deixar de ter em
conta o que não conseguimos fazer até aqui para salvaguardar o planeta e o
clima da Terra. E se precisamos da ciência para nos tirar deste momento de
aflição, precisamos da filosofia para hierarquizar prioridades. A nossa
felicidade não pode ser indissociável da manutenção do equilíbrio da natureza,
porque para o planeta nós é que estávamos a ser o vírus.
Jornalista
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