O vírus do medo
já contagiou as democracias
As democracias
vão resistir ao avanço inexorável do novo coronavírus? Já estão infectadas,
respondem os especialistas. Com o mundo bloqueado pelo medo, apontam o risco:
ainda convalescente da crise de 2008, a Europa dificilmente conseguirá ter uma
resposta concertada às consequências económicas e sociais da covid-19. Eis-nos
na iminência de uma nova crise.
Natália Faria 15
de Março de 2020, 6:45
Para além do
presente imediato, das estatísticas febris, dos serviços encerrados e dos
cidadãos ainda a digerirem o isolamento forçado, o novo coronavírus arrasta
perigos nem sempre detectáveis na avalanche noticiosa que acompanha o avanço da
covid-19, a doença a que dá origem e que, qual tsunami em câmara lenta, se
imiscuiu em casa de todos, varrendo para debaixo do tapete o problema da crise
climática, dos refugiados, das desigualdades sociais, dos ataques cardíacos,
das mortes por cancro. A máquina da globalização irá gripar? E que danos
infligirá o SARS-Cov-2 à democracia, à medida que a curva ascendente e
enlouquecedora dos contágios começar a abrir brechas e a desacelerar as
economias, apesar dos 65 mil milhões de euros disponibilizados pela Comissão Europeia?
Sendo prematuro
pormo-nos a tentar adivinhar quão diferente ficará o mundo governado por Xi
Jinping e Donald Trump quando a poeira desta pandemia assentar, como começa por
ressalvar ao PÚBLICO o historiador Manuel Loff, há danos colaterais já bem
visíveis na máquina da globalização. “O que gripou desde logo foi aquilo que
nós descrevíamos como a parte positiva da globalização: sermos livres de nos
mover em todo o planeta, de entrarmos em contacto uns com os outros, e tomar
como positivo o contributo e o conhecimento dos outros. O anátema sobre ‘o
estrangeiro que nos traz a peste’ está lançado”, diagnostica o docente da
Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Na prática, esta
ordem para recuar tanto pode encontrar tradução na suspensão do turismo ou no
confinamento doméstico para teletrabalhar como, para dar exemplos menos
prosaicos, no encerramento das fronteiras entre os países e aos refugiados. Mas
a constatação que o politólogo francês Dominique Moïsi defendeu numa entrevista
ao jornal espanhol El País mergulhava mais fundo: “A epidemia intervém num
momento em que já púnhamos em causa a globalização. E acelera e confirma
potencialmente a ideia segundo a qual a globalização feliz era uma ilusão
temporal que ia durar poucos anos e que acabaríamos por nos confrontar com a
globalização infeliz.”
Conseguirá então
o vírus pôr de joelhos o actual modelo de negócios da globalização, do mesmo
modo que a Peste Negra, que no século XIV dizimou um quarto da população
Ocidental, pôs fim ao dinamismo social da Idade Média? Mesmo que não duvidemos
que este tsunami paralisou a China, a fábrica do mundo, Manuel Loff não arrisca
ir tão longe. “Se me é evidente que isto vem acelerar a crise da vertente
positiva da globalização (que já se percebia na tese, que não era exclusiva da
extrema-direita, de que o Ocidente tinha de se virar para dentro e de se
proteger da invasão dos migrantes), duvido que a universalização financeira e
das trocas comerciais, todos os ramos da economia que possam passar pela
vertente virtual, venham também a ser postos em causa, pelo menos com um
carácter duradouro”, relativiza o investigador.
Desarranjo
institucional e político
Mais
declaradamente optimista, Luís Aguiar-Conraria, professor da Escola de Economia
e Gestão da Universidade do Minho, antevê que “qualquer solavanco ou recuo na
globalização serão temporários”. O que não o impede de antecipar os riscos de
cairmos numa crise como a de 2008. “A paragem que está a haver na actividade
económica é tão violenta como foi na anterior crise a paragem dos fluxos financeiros
entre países, nomeadamente com a queda brutal das importações e exportações. Na
altura, os governos coordenaram-se para evitar medidas proteccionistas e para
repor esses fluxos. Vamos ver se o conseguem voltar a fazer, com essa
dificuldade adicional de estarmos perante uma crise que se sucede a outra
grande crise que teve consequências em termos de fragmentação política”,
admite.
Somando “o efeito
social e económico do coronavírus à luta em torno do preço do petróleo e à
gestão do poder comercial norte-americano”, o politólogo Pedro Adão e Silva
também encontra “um cenário propício” à reedição da crise de 2008. “A herança
política da última crise foi a fragmentação política, a pulverização dos
sistemas partidários e a ingovernabilidade na maior parte dos países europeus,
com a consequente diminuição de compromisso e de consensos a nível europeu”,
diz, justificando assim a sua preocupação com os efeitos do SARS-Cov-2. “Duvido
muito da capacidade da Europa ter uma resposta concertada em torno das suas
consequências económicas e sociais”, sublinha.
Se as coisas
correrem mal, vamos ter um problema de desarranjo institucional e político
Pedro Adão e
Silva, politólogo
Independentemente
da letalidade que vier a revelar, o vírus “aproveita-se de um contexto
político, social e mediático novo que torna sua propagação diferente”. Nas
redes sociais, o contágio corre tão célere como fogo em rastilho de pólvora.
“As redes sociais são, como sabemos, terreno fértil para a propagação da ideia
de que as instituições – Estado, governos mas também os meios de comunicação
social tradicionais – não nos estão a contar a verdade, com a veiculação de
mensagens falsas atribuídas a fontes fidedignas sobre as mortes que nos estão a
ocultar… E, portanto, são o contexto ideal para a desconfiança, para o
ressentimento e para a clivagem entre o ‘nós’ e o ‘eles’ que é o traço
distintivo do populismo”, alerta Pedro Adão e Silva, convicto de que, a seu
tempo, a epidemia vai trazer à tona o “ressentimento profundo” de que se
alimenta o populismo. “Vamos ter aqui três tempos: o primeiro, que é o que
estamos a viver agora, é de grande mobilização social e com convergência
política quanto à importância de as respostas serem comuns; o segundo tempo
será marcado pelas críticas aos erros e pelo sublinhar da incompetência de quem
tinha responsabilidades para gerir a crise; na terceira fase, vai-se começar a
apontar os tipos que são responsáveis por aquilo que está a acontecer na
economia e na sociedade”, antevê, dizendo-se convicto de que, “se as coisas
correrem mal, vamos ter um problema de desarranjo institucional e político”.
Entre Jinping e
Trump
Na China, a
capacidade de controlo de Xi Jinping vai ao ponto de conseguir medir a
temperatura dos distribuidores de comida a cada duas horas e, na embalagem, é
obrigatório que constem igualmente os valores da temperatura de quem
confeccionou a refeição, bem como o seu contacto. Os passos de cada cidadão são
controlados por uma aplicação instalada no telemóvel. Em contrapartida, cada
cidadão tem, por exemplo, garantidas cinco máscaras gratuitas por semana. Por
oposição ao exemplo italiano e ao que se passa nos Estados Unidos, com Donald
Trump a recusar responsabilizar-se pelo que quer que seja que esteja
relacionado com “o vírus estrangeiro” e a mostrar-se incapaz de tornar
acessíveis os cuidados de saúde de que os norte-americanos precisam, não falta
já quem questione se uma ditadura não estará mais bem preparada para conter o
vírus. “Se se confirmar o aparente sucesso que a China está a ter a controlar
isto, por contraste com outros países democráticos, mais gente pode começar a
concluir que, afinal, o autoritarismo pode dar jeito, mesmo que em sacrifício
de alguns direitos”, preocupa-se Aguiar-Conraria. O facto de a China ter, por
via do seu extraordinário desempenho económico, “deitado por terra aquela ideia
dos anos 80 e 90 de que eram os países com democracias mais sólidas que tinham
melhores performances económicas”, não ajuda a pôr travão a tais ameaças aos
regimes democráticos.
“O perigo de as democracias saírem
fragilizadas desta pandemia é enorme”, vaticina também Manuel Loff. “O que é
que disse [o deputado do CDS] Telmo Correia? Disse que é preciso uma ‘voz de
comando’. E de onde é que isto está a sair? Está a sair de onde sempre esteve:
durante a II Guerra Mundial, nos debates à escala internacional, a questão,
mesmo nas democracias que se opunham ao nazismo, era se uma ditadura não seria
muito mais eficaz a mobilizar os seus soldados, a dar-lhes moral para enfrentar
os inimigos. Em pleno século XXI está a voltar à superfície este elogio
permanente do autoritarismo, da tal ‘voz de comando’”, compara.
O que mais
preocupa o historiador é perceber que, à boleia da covid-19 tal como à boleia
da crise dos refugiados há uns meses, grassa a ideia de que a complexificação
das relações sociais e dos problemas sociais e políticos requer um “comando
forte”. “Essa crítica nacional-populista ao funcionamento da democracia, que
não dispensa uma retórica oportunista e retórica de mais democracia, foi o que
levou Bolsonaro ao poder e foi o que deu força ao Orbàn na Hungria e ao Putin
na Rússia”, insiste o historiador, para quem, ao reavivar medos ancestrais, a
covid-19 pode “reforçar discursos de natureza messiânica ou autárcica, que,
perante um vírus que vem de fora, defendem que o país tem é de se fechar sobre
si próprio”.
Submergidas pelo
pânico social, as pessoas tornam-se permeáveis a que os seus direitos sejam
erodidos. “A lógica de que os países têm de fechar o contacto com os outros é
uma discussão que em 2017, logo a seguir à tomada de posse de Donald Trump, e,
do dia para a noite, esse passo foi dado”, situa Loff, referindo-se à decisão
do Presidente norte-americano “fechar” todos os voos provenientes da Europa. A
Itália, por seu turno, “isolou-se a si própria, com este estado de emergência
que tem efeitos de natureza policial e militar”, aponta ainda o historiador,
dizendo-se convencido de que, “criados os mecanismos legais, todas estas
medidas terão impactos duradouros”.
Os processos de
securitização de áreas da nossa vida, colectiva e individual, só têm sucesso
quando a sociedade os entende como naturais e conclui que a democracia deixa de
se aplicar porque o momento é de excepção
Manuel Loff,
historiador
“Se incorporarmos
este estado de emergência dentro das nossas cabeças, ninguém se lembrará de ir
perguntar ao Estado quando é que isto acaba. E efectivamente os processos de
securitização de áreas da nossa vida, colectiva e individual, só têm sucesso
quando a sociedade os entende como naturais e conclui que a democracia deixa de
se aplicar porque o momento é de excepção”, prossegue o investigador,
subscrevendo as teorias do filósofo italiano Giorgio Agamben, que no livro
Estado de Excepção (Edições Setenta, 2018) conclui que um dos problemas é que o
mundo vive em permanente estado de excepção, pelo menos desde os ataques
terroristas de 11 de Setembro de 2001. “A ideia que perdura desde então”,
conclui Loff, “é que sempre que temos um ataque terrorista temos que suspender
a Declaração Universal dos Direitos do Homem, permitindo, por exemplo, detenções
vigilâncias de pessoas sem necessidade de qualquer autorização judicial”. No
caso português, “é sintomático que uma das primeiras discussões suscitadas pela
covid-19 visava perceber se, à luz da Constituição, o Estado tem ou não direito
de impor determinadas práticas de reclusão domiciliária”, recorda Luís
Aguiar-Conraria, para acrescentar que, se se concluir que não tem, “de certeza
absoluta que, bem ou mal, na próxima revisão constitucional isso é alterado”. E
assim “ficaremos com mais um exemplo de como as crises são aproveitadas para
erodir direitos e tornar as sociedades menos liberais”.
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