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OPINIÃO
CORONAVÍRUS
Coronavírus no
Reino Unido
A epidemia vem
somar-se a um mal-estar pós-”Brexit” que o governo britânico tem vindo a
ignorar. Fica o sabor amargo de um modelo económico que resiste mal a
imprevistos e serve cada vez com maior dificuldade a maioria da população.
Francisco
Bethencourt
19 de Março de
2020, 6:00
O Serviço
Nacional de Saúde britânico está relativamente paralisado pelo coronavírus (ou
covid-19). Todas as operações não urgentes foram adiadas para libertar camas
nos hospitais. Os centros de saúde de bairro, que funcionam como primeiro nível
de triagem, deixaram de examinar os doentes; as consultas são feitas por
telefone, incluindo a prescrição de antibióticos. Os testes de coronavírus
estão limitados aos doentes hospitalares; esta política contrasta com a da
Coreia do Sul, que tem feito 20.000 testes diários com o apoio de uma rede de
laboratórios que funcionam 24 horas por dia.
O número de casos
tem vindo a aumentar exponencialmente, embora ainda se esteja longe do pico: o
Reino Unido tem um atraso de três semanas na difusão do vírus em relação a
outros países europeus. Em todo o caso, podemos já detetar diferentes padrões
de impacto e políticas.
A taxa de mortalidade
face ao número de casos comprovados de coronavírus varia entre 8% em Itália e
0,3% na Alemanha. O Reino Unido está no meio do leque com 3,6% de mortos,
abaixo da Espanha (4,5%) e acima da França (2,3%), dos Estados Unidos (1,8%) ou
da Coreia do Sul (1%). Ainda é cedo para avaliar bem estes valores, dado que o
número de casos irá aumentar tanto no Reino Unido como nos Estados Unidos nas
próximas semanas.
As políticas são
divergentes. Nesta segunda-feira, os discursos do primeiro-ministro britânico
Boris Johnson e do Presidente francês Macron não podiam ter sido mais opostos.
No caso francês, uma intervenção decisiva no seguimento do fecho de fronteiras,
escolas e lugares públicos com penalizações, acompanhada por uma garantia de
apoio financeiro generalizado a empresas e a assalariados insolventes. No caso
britânico, o aconselhamento de isolamento sem quaisquer medidas efetivas,
embora se tenha disponibilizado um pacote financeiro significativo para apoio a
empresas em dificuldades. O Reino Unido não decidiu fechar uma única escola ou
lugar público; as escolas vão começar a fechar dado o aumento do pessoal
doente.
A lógica de
combate ao vírus é também divergente: enquanto a União Europeia decidiu fechar
fronteiras e circulação de pessoas para conter o vírus, o Reino Unido
absteve-se de enveredar por esse caminho. O modelo inicial, caucionado pelos
chefes médico e cientista junto do governo, era de facilitar a difusão do vírus
para garantir a “imunidade da manada” (sic). A lógica era explícita: o vírus
poderia reaparecer mais tarde e seria necessário obter imunidade com a infeção
de pelo menos 60% da população, ou seja, 40,7 milhões de infetados numa
população de 67,8 milhões. Mesmo que a atual taxa de mortalidade fique reduzida
de 3,6% para 2,5%, o que é duvidoso, isso significaria a morte de mais de um
milhão de pessoas.
Cerca de 300
cientistas escreveram uma carta de protesto, sublinhando que o comportamento do
vírus não é conhecido, nomeadamente a sua recorrência e possíveis formas de
transmissão depois da cura. O conservador Jeremy Hunt, anterior secretário de
Estado da Saúde e atual presidente da comissão parlamentar da saúde, teve a
coragem de criticar a estratégia do governo. Vale a pena refletir sobre os
exemplos de outros países. Na China, onde o surto epidémico começou, este
parece estar relativamente debelado ao fim de quatro meses, à custa de medidas
drásticas de isolamento das populações afetadas.
O governo
britânico parece ter recuado em palavras, mas não em atos. Existe já um
protesto surdo, mas que se começa a ouvir. Uma amiga doutorada em epidemiologia
com responsabilidade no respetivo serviço de um dos principais hospitais
britânicos disse-me que a lógica de evitar medidas radicais é errada e
conduzirá a um número desnecessário de fatalidades. Os hospitais, enfraquecidos
por anos de declínio orçamental, perda de pessoal e redução de serviços,
nomeadamente em epidemiologia, com falta de camas de cuidados intensivos,
ventiladores e máquinas de purificação de sangue, vão ficar sobrecarregados
mais cedo. Para esta amiga epidemiologista, o governo pretende apenas poupar
dinheiro.
O cenário parece
evidente: redução do Produto Nacional Bruto como inevitável consequência do
vírus, queda dos impostos, aumento significativo da dívida pública, reversão da
taxa de desemprego, incapacidade de estimular a economia no ano de negociação
da futura relação com a União Europeia. Percebe-se a tentativa do governo
britânico de adiar intervenções efetivas com custos económicos, mas neste caso
o que está em questão é um problema grave de saúde pública. Até o governo dos
Estados Unidos decidiu agora pagar cheques diretamente aos assalariados
atingidos pela crise, medida que há uns anos era rotulada pela direita como uma
fantasia da esquerda.
A resposta
financeira da União Europeia à epidemia tem sido considerada fraca, embora a
resposta de diversos governos, como o francês, possa ser considerada musculada.
É evidente que estes governos arriscam o aumento exponencial da dívida pública,
mas assumem que o Estado existe para proteger a população em caso de
emergência. São diferentes lógicas de perceção da função do Estado que estão
aqui em jogo. É ainda cedo para saber quem tem razão; a curva de difusão e
desaparecimento do vírus pode evitar consequências fatais para a economia
mundial, que se encontra já em recessão, mas é duvidoso que esse
desaparecimento ocorra espontaneamente.
O problema é que
a epidemia vem somar-se a um mal-estar pós-"Brexit” que o governo
britânico tem vindo a ignorar. A greve de três semanas nas universidades
(estamos na última semana) pelo aumento de contribuições da entidade patronal
para as pensões de reforma e por melhores condições de trabalho é um sinal. O
governo britânico não está diretamente envolvido, pois, nos anos de 1950,
alijou responsabilidades na política de pensões, transferida para as empresas e
os empregados. Mas noutros setores, situações equivalentes irão conduzir a
ações semelhantes com impacto económico.
A sociedade civil
britânica irá colmatar, em parte, a incapacidade do governo. Vejo indícios de
solidariedade nas ruas e nas redes da internet. A mudança de paradigma nas
relações entre as pessoas, com menor exposição pública e maior interação em
família e em círculos de amigos, é um fenómeno interessante, mas temporário. A
mudança de hábitos só será contínua no caso de perda do poder de compra. Caso
contrario, a espiral de consumo, viagem e lazer irá recuperar com gosto logo
que o vírus esteja domesticado.
Fica, contudo, o
sabor amargo de um modelo económico que resiste mal a imprevistos e serve cada
vez com maior dificuldade a maioria da população. Estariamos em muito melhores
condições de enfrentar este tipo de desafios se o investimento na indústria de
guerra fosse substituido pelo investimento na saúde. Mas para isso seria
necessária uma revolução mental. Nos Estados Unidos, uma das reações mais
surpreendentes ao vírus tem sido o aumento significativo da venda de armamento.
A esperança não está ali.
O autor escreve
segundo o novo acordo ortográfico
Professor no King's College de Londres
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