CORONAVÍRUS
Há 315 mil recibos verdes em risco de ficar sem apoio em
Abril
Trabalhadores independentes sem trabalho neste momento só
recebem o primeiro apoio a partir de Maio. Para os que abriram a actividade no
início deste ano, o acesso está em dúvida. Governo não esclarece.
Pedro Crisóstomo
Pedro Crisóstomo
31 de Março de 2020, 6:38
O apoio só se aplica a quem tenha pago as contribuições
durante pelo menos três meses consecutivos
Há 315 mil
trabalhadores a recibos verdes em Portugal que se arriscam a passar o mês de
Abril sem o apoio extraordinário de 438 euros que o Governo decidiu criar para
ajudar quem enfrenta uma paragem súbita da actividade por causa da propagação
do novo coronavírus.
Apesar de muitos
poderem já estar a sentir os efeitos económicos, com projectos e encomendas
cancelados ou por simplesmente não poderem ir trabalhar por causa do
confinamento, o primeiro apoio só deverá ser pago em Maio pela Segurança
Social.
Como, à luz do
diploma do Governo, esse envelope financeiro de 438,81 euros é pago a partir do
mês seguinte àquele em que é submetido o requerimento, e esse formulário só
será disponibilizado no portal Segurança Social Directa nesta quarta-feira (o
primeiro dia de Abril), ninguém vai poder apresentar o requerimento em Março
para poder beneficiar da “bóia de salvação” em Abril. E é isso que explica que,
na prática, os primeiros apoios só cheguem a milhares de cidadãos em Maio.
Caso estejam em
“situação comprovada de paragem total da sua actividade ou da actividade do
respectivo sector” por causa do surto da covid-19 e não beneficiem de outra
medida extraordinária, são 314.734 as pessoas que em teoria poderão aceder a
esse apoio, pois este é o universo de trabalhadores independentes que, segundo
os registos da administração fiscal, têm exclusivamente rendimentos do trabalho
independente em Portugal.
Questionada pelo
PÚBLICO sobre se reconhece que este universo potencial de trabalhadores ficará
sem o apoio em Abril, e se é por razões operacionais de processamento das
verbas (ou por outra razão) que o requerimento apenas é disponibilizado em
Abril, a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes
Godinho, não respondeu.
Esta medida não
deve ser confundida com o apoio à família (de 438,81 euros a 1097,025 euros)
que se destina a apoiar os trabalhadores a recibos verdes (assim como os trabalhadores
por conta de outrem) que ficam em casa a acompanhar os filhos se, durante o
período em que as escolas estão fechadas, não puderem exercer a profissão em
teletrabalho ou de qualquer outra forma.
No leque dos
trabalhadores independentes potencialmente abrangidos pelo apoio à paragem da
actividade há um subgrupo em relação ao qual não é claro se o apoio se aplica
ou não. Como para aceder a esta medida é necessário que os trabalhadores tenham
cumprido com a obrigação contributiva à Segurança Social durante três meses
consecutivos nos últimos 12 meses, quem começou a trabalhar no início de 2020
arrisca-se a ficar de fora. Pelo menos para já. Uma das questões que se colocam
neste momento — e que o Ministério do Trabalho continua sem esclarecer ao PÚBLICO
— é a de saber se, estando os trabalhadores isentos das contribuições no
primeiro ano de trabalho, ficam dentro ou fora dos apoios. Mesmo para juristas,
a norma do Governo não é de compreensão imediata.
Quem abriu
actividade em Janeiro de 2020 só completa esses três meses em Março, mas para
isso é preciso que apresente no próximo mês a declaração trimestral
relativamente aos rendimentos de Janeiro, Fevereiro e Março. Só aí e no cenário
de ter cumprido a obrigação contributiva é que uma pessoa poderá requerer o
apoio extraordinário.
Neste caso, tal
como para a generalidade dos recibos verdes, a primeira verba também só chegará
ao terreno em Maio. E este é o cenário em que a actividade tenha sido aberta em
Janeiro, porque o problema arrasta-se para quem só a tenha iniciado em
Fevereiro ou mesmo até meados de Março antes de a situação epidemiológica do
novo coronavírus se agravar.
Primeiro ano em
dúvida
É preciso ter em
conta a situação de quem está no primeiro ano de trabalho, pois só ao fim do
12.º mês do início da actividade é que se entra no regime dos trabalhadores
independentes e, por isso, a apresentação da declaração trimestral (em Abril,
Julho, Outubro e Janeiro) não é obrigatória.
Justamente
algumas dúvidas têm chegado à Plataforma Resposta Solidária — um projecto
lançado há poucos dias para responder por e-mail a dúvidas dos cidadãos sobre
questões laborais e de habitação — por parte de trabalhadores que estão no
primeiro ano e querem perceber se, estando isentos das contribuições nesses
primeiros 12 meses, podem beneficiar do apoio, conta Mafalda Pinto, uma das
dinamizadoras da iniciativa que junta a Associação de Combate à Precariedade —
Precários Inflexíveis e a Rés do Chão — Associação pelo Direito à Habitação.
Não é apenas
entre potenciais trabalhadores abrangidos que a redacção do diploma gera
incertezas — também as há entre juristas. Se, à luz do diploma, os
trabalhadores independentes que reiniciaram actividade em 2020 são abrangidos
pela medida extraordinária, pois, como sublinha a advogada Sílvia A. Araújo, da
RSN Advogados, podem “ter registo de contribuições em três meses consecutivos”
no tal período de referência dos 12 meses, o mesmo já não acontece com aqueles
que efectivamente iniciaram a actividade, que “parecem efectivamente estar
(pelo menos para já) excluídos” do apoio. “Digo pelo menos para já pois entendo
não existir no diploma qualquer impedimento a que estes trabalhadores acedam ao
apoio extraordinário num momento posterior, após e se, entretanto, passarem a
cumprir o requisito do registo de contribuições em três meses consecutivos”,
explica a mesma advogada.
Também Francisco
Aventino Pinheiro, advogado da Aventino & Associados, considera que os
trabalhadores independentes que tenham iniciado actividade em Janeiro só ficam
aptos se cumprirem com as obrigações contributivas relativamente aos “meses de
Janeiro, Fevereiro e Março de 2020”, de forma a pedirem o apoio em Abril e receberem
no mês seguinte “se os serviços da Segurança Social tiverem possibilidade de
processar o pedido atempadamente”.
De acordo com
dados da AT, há 58.214 trabalhadores independentes que iniciaram ou reiniciaram
a actividade em 2020 e que se mantêm activos em sede de IVA (não sendo claro,
porém, se alguns acumulam recibos verdes com trabalho dependente, o que
automaticamente os deixa de fora do apoio).
Para Ricardo
Lourenço da Silva, advogado da sociedade Antas da Cunha ECIJA, o diploma do
Governo “levanta sérias dúvidas de interpretação” e isso, adverte, “agudiza o
clima de incerteza (e conflitualidade legal)” num momento “já de si
suficientemente inquieto devido à pandemia”. Sabendo o Governo do número de pessoas
que iniciaram a actividade este ano, parece ao advogado que, tendo esses
números em mãos, o executivo não poderia “ter legislado de modo a criar algum
apoio específico que não contemplasse, de algum modo, uma parte considerável
destes trabalhadores” e que, por hipótese, “venham a necessitar de requerer o
apoio em Abril”.
O apoio em causa
dura um mês e pode ser prolongado até um máximo de seis meses. Embora
corresponda ao valor da remuneração registada como base de incidência
contributiva, o Governo impôs um tecto que limita o valor a 438,81 euros
mensais (o equivalente a um Indexante de Apoios Sociais).
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