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CORONAVÍRUS
Uma asneira monumental de António Costa
Sou um admirador do talento político de António Costa, e
até valorizo o seu optimismo irritante – mas as politiquices do “não faltou nem
faltará” são indesculpáveis no actual contexto.
JOÃO MIGUEL
TAVARES
26 de Março de
2020, 6:31
Pela boca morre o
peixe – e há frases que têm o poder de fazer desabar uma boa estratégia, tal
como o soar das trombetas desmoronou as muralhas de Jericó. Ainda há dias eu
elogiava neste espaço o sangue frio de António Costa e o bom-senso com que tem
gerido a crise. Mas na entrevista que deu na segunda-feira à TVI, o
primeiro-ministro disse aquilo que jamais poderia ter dito sobre os meios com
que o Serviço Nacional de Saúde está a enfrentar a pandemia: “Até agora não
faltou nada e não é previsível que venha a faltar o que quer que seja.” Mais do
que esta frase ser ridícula, inaceitável e uma falsidade descarada, ela é agora
uma bomba-relógio nas mãos de António Costa. A cada falha do SNS – e haverá
muitas – ela será esfregada na sua cara, como já está a ser, e nenhuma máscara
lhe valerá.
Na segunda-feira,
dia da entrevista, 8% dos infectados com coronavírus em Portugal – 165 pessoas
– já eram profissionais de saúde. Desses, 82 eram médicos. É pouco provável que
todos se tenham infectado a passar férias na neve nas montanhas Dolomitas. É
mais provável que tenham sido infectados no cumprimento da sua missão, ou por
não terem à disposição meios eficazes para se protegerem, ou por o país ter
começado demasiado tarde a testar a população hospitalar internada com quadros
de pneumonia. Quem está na primeira linha de combate à pandemia queixa-se
diariamente de falta de material de protecção. Não há boas máscaras, não há
batas, não há óculos, há poucas luvas. Os armazéns dos hospitais são uma
tentação para funcionários menos escrupulosos. E conheço sítios onde os médicos
escondem máscaras e luvas como se estivessem a proteger as jóias da bisavó dos
exércitos de Junot.
Marcelo Rebelo de
Sousa afirmou, na sua primeira comunicação ao país pós-quarentena, que
“ninguém” iria “mentir a ninguém” a propósito do combate ao coronavírus. “Isto
vos garante o Presidente da República”, acrescentou. Eis uma promessa
rapidamente incumprida, não por sua culpa, mas por culpa do primeiro-ministro.
No dia seguinte à entrevista, o Governo enviou à comunicação social uma
longuíssima lista de todo o material entretanto encomendado, com centenas de
milhares de fatos, milhões de toucas e dezenas de milhões de máscaras. Fico
muito feliz com a dimensão da encomenda. Mas o problema da frase de António
Costa é que ela não se conjugava apenas no futuro (“não faltará nada ao SNS!”)
– o que, com boa-vontade, poderia ser encarado como uma injecção de motivação –
mas também no passado (“até agora não faltou nada ao SNS”), o que é uma retinta
aldrabice, como todos sabemos.
Ora, esta não é
uma declaração que possa passar impune, por razões bastante evidentes: ela
traduz um enorme desrespeito pelos milhares de profissionais de saúde que todos
os dias enfrentam corajosamente, com mais boa vontade do que bom equipamento,
uma pandemia que põe em causa as suas próprias vidas. Em Itália já morreram
mais de vinte médicos com covid-19. Esses mortos merecem, ao menos, o respeito
da verdade. Os números que surgiram até agora, em termos de internamentos
hospitalares, dão alguma esperança a Portugal. Mas é demasiado cedo para
embandeirar em arco, sobretudo quando existe uma flagrante ausência de testes,
muito aquém dos necessários. Sou um admirador do talento político de António Costa,
e até valorizo o seu optimismo irritante – mas as politiquices do “não faltou
nem faltará” são indesculpáveis no actual contexto e não se podem repetir.
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