domingo, 15 de março de 2020

O vírus que está a matar a globalização / The economic toll of the coronavirus – from iPhones to solar panels to tourism


O vírus que está a matar a globalização

Vale a pena ler, ou reler, A Peste Escarlate de Jack London e reflectir sobre a fragilidade das sociedades humanas que se podem esvair como “a espuma do mar”

José Pedro Teixeira Fernandes
José Pedro Teixeira Fernandes 15 de Março de 2020, 21:42

1. “O trabalho do homem é efémero e esvai-se como a espuma do mar…” Esta é uma das frases mais marcantes da distopia escrita em 1912 por Jack London, pseudónimo literário de John Griffith Chaney, A Peste Escarlate (The Scarlet Plague no título original em língua inglesa). A par do britânico H. G. Wells (Herbert George Wells), criador de obras como A Máquina do Tempo (1895) ou A Guerra dos Mundos (1898), Jack London foi um dos pioneiros do género ficção científica e de distopias que imaginam para a humanidade um futuro pós-apocalíptico.

Na Peste Escarlate, a narrativa ficcional decorre à volta de uma pandemia (o termo não era usado na época) originada por uma bactéria extremamente contagiosa e mortal, que este situou no ano 2013. O enredo tem como personagem central um octogenário professor de Literatura Inglesa da Universidade da Califórnia, em Berkley, James Howard Smith, um dos escassos sobreviventes dessa catastrófica pandemia que destruiu toda a civilização humana. Ao longo do livro, James Howard Smith relata os extraordinários acontecimentos por si vividos no início do século XXI, aos seus vários netos. Estes com ouvem-no com um misto de curiosidade, incredulidade e incompreensão — há muitas palavras e realidades que desconhecem totalmente. Para eles, a realidade humana normal é o ‘estado de natureza’ uma vez já nasceram após colapso civilizacional.

2. Há paralelismos estranhos e algo perturbadores entre o imaginário ficcional de Jack London de há um século e a realidade social e económica hoje vivida com a pandemia da covid-19. No início, “ninguém se alarmou excessivamente. Houvera poucos mortos; as mortes, porém, foram rápidas ao que parece” (A Peste Escarlate, trad. port., Quasi, 2008, p. 37). Nessa altura, existia uma grande confiança na ciência médica pelo que “nós, na Califórnia, assim como por toda a parte, não nos afligíamos em excesso. Todos acreditavam que os bacteriologistas achariam meio de aniquilar o novo germe, como já tinham feito, no passado, quanto a outras doenças” (p.38).

Na distopia de Jack London, a confiança da sociedade na ciência e no progresso da medicina era muito elevada no início do século XXI. Todavia, essa confiança rapidamente se desvaneceu, dando lugar pânico e ao descontrolo social, pelo alastrar mortífero do novo germe, infectando cada vez mais seres humanos. “O que, porém, se tornava inquietante era a rapidez prodigiosa com que o germe destruía os homens; […] Podia-se estar uma noite à mesa com uma pessoa de boa saúde, e, no dia seguinte, levantar-se cedo e chegar à janela… para ver passar o caixão do nosso comensal da véspera!” (idem). Na distopia, as consequências conjugadas do falhanço da ciência, dos poderes públicos lidarem adequadamente com a pandemia e do pânico social instalado foram aterradoras: paralisia nos transportes, ruptura do abastecimento de bens e serviços, seguida eclosão de pilhagens e violência generalizadas que levaram ao colapso total.

3. Uma das coisas mais curiosas da ficção de Jack London é também a localização dos acontecimentos na Califórnia, na cidade de São Francisco e área envolvente — no que hoje é usualmente designado por San Francisco Bay Area. Na proximidade está também Silicon Valley. Como é bem conhecido, esta é uma das áreas económicas e tecnológicas mais importantes dos EUA e do mundo. Empresas fundamentais para a actual globalização e sociedade em rede, como a Google, o Twitter, o Facebook, o eBay ou a Apple, entre outras, têm as suas instalações centrais nessa região da Califórnia. A Internet e revolução digital que hoje fazem parte das nossas vidas, impregnando os nossos hábitos sociais e económicos, tiveram fundamentalmente origem na mesma área onde decorre a distopia de A Peste Escarlate.

Jack London não antecipou que São Francisco, cidade onde nasceu e viveu, nem o vizinho Silicon Valley seriam, em finais do século XX e inícios do século XXI, o maior centro tecnológico impulsionador da globalização que vivemos. Nem que a pandemia teria origem na China e rapidamente se espalharia a partir daí dada a sua centralidade na globalização de hoje. Mas antecipou como a civilização humana, mesmo a mais elevada, tecnológica e sofisticada, é frágil: “o trabalho do homem é efémero” e pode esvair-se “como a espuma do mar…”. Para além da ameaça à vida humana, que pode ser mortal, o novo vírus SARS-CoV-2 (coronavírus), que originou a pandemia da covid-19, está a matar uma outra criação humana: a economia globalizada em que vivemos.

4. Em Fevereiro, no Fórum Económico Mundial um artigo assinado por John Letzing, enunciava cruamente o problema: “A covid-19 tem implicações potencialmente graves para a economia global”. As consequências da sua difusão estão a afectar “sectores económicos em todo o mundo, desde os produtores agrícolas nas Américas até aos fabricantes de painéis solares na Índia passando pelos trabalhadores de turismo na Ásia.” Notava-se no mesmo texto que, para além das preocupantes repercussões na saúde humana da covid-19 “o impacto económico do surto deste vírus tem também implicações potencialmente desastrosas”. Em inícios de Março tornou-se ainda mais evidente esse risco e sua real dimensão.

A covid-19 está a afectar, crescentemente, as cadeias de abastecimento das empresas e a atrasar, ou interromper, operações de fabrico de produtos um pouco por todo o mundo. As empresas e organizações mais vulneráveis começaram por ser aquelas que dependem largamente, ou de forma exclusiva, de fábricas na Ásia, em particular na China, mas também da Coreia do Sul e Japão. Entretanto, a pandemia alastrou para a Europa e EUA, dando-lhe uma outra amplitude ainda mais global. Está a levar a uma semi-paralisação das suas sociedades e economias, com particular gravidade em países como a Itália. As populações e sectores mais globalizados — do comércio internacional ao turismo, passando pelos estudantes Erasmus — vistos até agora como um way of life sofisticado e modelo a seguir, estão as primeiras vítimas de um vírus que ameaça destruir a globalização.

5. Fronteiras fechadas, aeroportos quase vazios, circulação de pessoas drasticamente limitada a nível internacional e no interior das cidades, cadeias de abastecimento   desarticuladas e lojas sem clientes ou encerradas. Estamos a viver uma desglobalização acelerada de consequências potencialmente desastrosas para a economia e o emprego. Não tenhamos ilusões. Não é uma questão de termos, ou não termos, simpatia pelas elites desglobalizadas, nacionais e internacionais, que gravitam à volta do Fórum Económico Mundial, as quais são os maiores beneficiários do sistema económico-social-político instituído nas últimas décadas. Mas uma desglobalização nestas circunstâncias — forçada pelo multiplicar de casos um vírus potencialmente mortal e no meio do pânico social —, nunca irá corrigir as muitas assimetrias e injustiças da globalização. Muito pelo contrário, provavelmente irá acentuá-las, afectando, ainda mais, as partes da população já mais frágeis e desfavorecidas.

Na realidade, a nível internacional, está já a desencadear uma espiral de competição ainda mais predatória do que a já existente, onde cada um tentará minimizar os danos económicos e sobreviver no mercado à custa dos restantes. A guerra de preços que se desencadeou nos mercados petrolíferos, numa triangulação que envolve a Arábia Saudita, a Rússia e indústria de shale oil dos EUA é um primeiro sinal inequívoco da engrenagem em marcha. Pode arruinar famílias, empresas e países inteiros que dependem crucialmente de receitas do petróleo. Mas se esta competição predatória na energia pode favorecer alguns, que a compram a preço mais baixo, chegará a outros sectores da actividade económica, despertando os piores instintos do ser humano.

Entre um vírus potencialmente fatal e medidas para o travar que podem deixar a economia seriamente danificada, ou mesmo em ruínas, há nos próximos tempos decisões extraordinariamente difíceis a tomar.  Vale a pena ler, ou reler, Jack London e reflectir sobre a fragilidade das sociedades humanas que se podem esvair como “a espuma do mar”.

The economic toll of the coronavirus – from iPhones to solar panels to tourism

The novel coronavirus COVID-19 is having a long economic reach, in China and beyond.

21 Feb 2020
John Letzing
Digital Editor, Strategic Intelligence, World Economic Forum

COVID-19 has potentially serious implications for the global economy.
Apple revised its revenue guidance, due to a slowdown at manufacturing sites in China as well as reduced demand by Chinese consumers.
The spreading coronavirus is taking a toll on economic players around the world, from farmers and ranchers in the Americas to manufacturers of solar panels in India to tourism workers across Asia.
For many people outside of China – not least the sizeable number who have a retirement account that includes Apple stock – the impact of COVID-19 got a lot more tangible when the iPhone maker had to revise its revenue guidance earlier this week as a result of the spreading coronavirus.

While much of the world’s attention is rightly focused on the human toll of COVID-19 – including the 1,873 deaths reported as of 18 February – the economic toll of the outbreak also has potentially disastrous implications.

China, home to 99% of confirmed cases so far, has been dubbed the “world’s factory” due to the significant portion of global manufacturing that now typically takes place there. An estimated 5 million jobs in China rely on Apple manufacturing alone, and the company partly blamed slower-than-anticipated activity at its China-based iPhone manufacturing sites for the revenue warning.

Apple also blamed the warning on slowed demand for its products among China’s increasingly affluent consumers, due to store closures and reduced operating hours. And it’s not just Apple that’s been hurt by the sudden constriction of China’s massive consumer market. From South American ranchers to Vietnamese rice exporters and American farmers, a broad range of global economic players are starting to feel related effects. Thailand, where more than one-quarter of all visiting vacationers last year were Chinese, has seen its tourism industry suffer, for example.

While there has been some debate about whether the coronavirus has peaked, the contours of its vast economic toll are still taking shape.

For more context, here are links to more reading, courtesy of the World Economic Forum’s Strategic Intelligence platform:

India’s aiming for 100 gigawatts of operational solar power capacity by 2022. However, China accounts for nearly 80% of the solar cells and modules imported to the country – and COVID-19 means that many of those imports have now been put on hold. (CleanTechnica)
Singapore may view itself as an oasis of calm prosperity in a turbulent region, but all it took was one viral image of a local woman in a face mask hoarding noodle packets to kick off a storm of coronavirus-related anger and recrimination in the city state. (Australian Strategic Policy Institute)
Indonesia once aimed to attract 10 million Chinese tourists per year. Now, it’s poised to lose about $4 billion in tourism related revenue as a result of COVID-19. Already, thousands of Chinese-speaking tour guides have lost their jobs, and tensions between the country and China are running high. (The Diplomat)
On 19 January, Myanmar officially marked the beginning of the “Myanmar-China Bilateral Cultural and Tourism Year,” partly in response to a sharp decline in tourists visiting the country from the US and Europe. Two days later, the World Health Organization published its first COVID-19 situation report, noting 278 confirmed cases in China alone. (The Atlantic)
A clarifying moment: COVID-19 has revealed cracks in Southeast Asia’s widely touted growth models. Many countries in the region have leaned too heavily on external demand from their larger neighbour, and on China-centric supply chains. (Carnegie Endowment for International Peace)
Compared with the SARS era, China’s economy now relies to a much larger extent on consumption and services. According to one government economist, that means the domestic economic impact of COVID-19 could be significantly bigger. (The Diplomat)
One bright spot for everyone sharing a planet with China: lowered electricity demand and industrial output in the world’s second-largest economy related to COVID-19 reduced its typical carbon emissions during the first half of February by one-quarter. (Carbon Brief)
Historical precedents, like the Genovese merchants who brought the Black Death home to Europe from Asia, suggest the spread of COVID-19 should halt trade with China. But in reality, boosting trade with the country may help both China as well as other economies better cope with its impact. (Wharton)

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