O vírus que está
a matar a globalização
Vale a pena ler, ou reler, A Peste Escarlate de Jack London e reflectir sobre a fragilidade das sociedades humanas que se podem esvair como “a espuma do mar”
José Pedro
Teixeira Fernandes
José Pedro
Teixeira Fernandes 15 de Março de 2020, 21:42
1. “O trabalho do
homem é efémero e esvai-se como a espuma do mar…” Esta é uma das frases mais
marcantes da distopia escrita em 1912 por Jack London, pseudónimo literário de
John Griffith Chaney, A Peste Escarlate (The Scarlet Plague no título original
em língua inglesa). A par do britânico H. G. Wells (Herbert George Wells),
criador de obras como A Máquina do Tempo (1895) ou A Guerra dos Mundos (1898),
Jack London foi um dos pioneiros do género ficção científica e de distopias que
imaginam para a humanidade um futuro pós-apocalíptico.
Na Peste
Escarlate, a narrativa ficcional decorre à volta de uma pandemia (o termo não
era usado na época) originada por uma bactéria extremamente contagiosa e
mortal, que este situou no ano 2013. O enredo tem como personagem central um
octogenário professor de Literatura Inglesa da Universidade da Califórnia, em
Berkley, James Howard Smith, um dos escassos sobreviventes dessa catastrófica
pandemia que destruiu toda a civilização humana. Ao longo do livro, James
Howard Smith relata os extraordinários acontecimentos por si vividos no início
do século XXI, aos seus vários netos. Estes com ouvem-no com um misto de
curiosidade, incredulidade e incompreensão — há muitas palavras e realidades
que desconhecem totalmente. Para eles, a realidade humana normal é o ‘estado de
natureza’ uma vez já nasceram após colapso civilizacional.
2. Há
paralelismos estranhos e algo perturbadores entre o imaginário ficcional de
Jack London de há um século e a realidade social e económica hoje vivida com a
pandemia da covid-19. No início, “ninguém se alarmou excessivamente. Houvera
poucos mortos; as mortes, porém, foram rápidas ao que parece” (A Peste
Escarlate, trad. port., Quasi, 2008, p. 37). Nessa altura, existia uma grande
confiança na ciência médica pelo que “nós, na Califórnia, assim como por toda a
parte, não nos afligíamos em excesso. Todos acreditavam que os bacteriologistas
achariam meio de aniquilar o novo germe, como já tinham feito, no passado,
quanto a outras doenças” (p.38).
Na distopia de
Jack London, a confiança da sociedade na ciência e no progresso da medicina era
muito elevada no início do século XXI. Todavia, essa confiança rapidamente se
desvaneceu, dando lugar pânico e ao descontrolo social, pelo alastrar mortífero
do novo germe, infectando cada vez mais seres humanos. “O que, porém, se
tornava inquietante era a rapidez prodigiosa com que o germe destruía os
homens; […] Podia-se estar uma noite à mesa com uma pessoa de boa saúde, e, no
dia seguinte, levantar-se cedo e chegar à janela… para ver passar o caixão do
nosso comensal da véspera!” (idem). Na distopia, as consequências conjugadas do
falhanço da ciência, dos poderes públicos lidarem adequadamente com a pandemia
e do pânico social instalado foram aterradoras: paralisia nos transportes,
ruptura do abastecimento de bens e serviços, seguida eclosão de pilhagens e
violência generalizadas que levaram ao colapso total.
3. Uma das coisas
mais curiosas da ficção de Jack London é também a localização dos
acontecimentos na Califórnia, na cidade de São Francisco e área envolvente — no
que hoje é usualmente designado por San Francisco Bay Area. Na proximidade está
também Silicon Valley. Como é bem conhecido, esta é uma das áreas económicas e
tecnológicas mais importantes dos EUA e do mundo. Empresas fundamentais para a
actual globalização e sociedade em rede, como a Google, o Twitter, o Facebook,
o eBay ou a Apple, entre outras, têm as suas instalações centrais nessa região
da Califórnia. A Internet e revolução digital que hoje fazem parte das nossas
vidas, impregnando os nossos hábitos sociais e económicos, tiveram
fundamentalmente origem na mesma área onde decorre a distopia de A Peste
Escarlate.
Jack London não antecipou
que São Francisco, cidade onde nasceu e viveu, nem o vizinho Silicon Valley
seriam, em finais do século XX e inícios do século XXI, o maior centro
tecnológico impulsionador da globalização que vivemos. Nem que a pandemia teria
origem na China e rapidamente se espalharia a partir daí dada a sua
centralidade na globalização de hoje. Mas antecipou como a civilização humana,
mesmo a mais elevada, tecnológica e sofisticada, é frágil: “o trabalho do homem
é efémero” e pode esvair-se “como a espuma do mar…”. Para além da ameaça à vida
humana, que pode ser mortal, o novo vírus SARS-CoV-2 (coronavírus), que
originou a pandemia da covid-19, está a matar uma outra criação humana: a
economia globalizada em que vivemos.
4. Em Fevereiro,
no Fórum Económico Mundial um artigo assinado por John Letzing, enunciava
cruamente o problema: “A covid-19 tem implicações potencialmente graves para a
economia global”. As consequências da sua difusão estão a afectar “sectores
económicos em todo o mundo, desde os produtores agrícolas nas Américas até aos
fabricantes de painéis solares na Índia passando pelos trabalhadores de turismo
na Ásia.” Notava-se no mesmo texto que, para além das preocupantes repercussões
na saúde humana da covid-19 “o impacto económico do surto deste vírus tem
também implicações potencialmente desastrosas”. Em inícios de Março tornou-se
ainda mais evidente esse risco e sua real dimensão.
A covid-19 está a
afectar, crescentemente, as cadeias de abastecimento das empresas e a atrasar,
ou interromper, operações de fabrico de produtos um pouco por todo o mundo. As
empresas e organizações mais vulneráveis começaram por ser aquelas que dependem
largamente, ou de forma exclusiva, de fábricas na Ásia, em particular na China,
mas também da Coreia do Sul e Japão. Entretanto, a pandemia alastrou para a
Europa e EUA, dando-lhe uma outra amplitude ainda mais global. Está a levar a
uma semi-paralisação das suas sociedades e economias, com particular gravidade
em países como a Itália. As populações e sectores mais globalizados — do
comércio internacional ao turismo, passando pelos estudantes Erasmus — vistos
até agora como um way of life sofisticado e modelo a seguir, estão as primeiras
vítimas de um vírus que ameaça destruir a globalização.
5. Fronteiras
fechadas, aeroportos quase vazios, circulação de pessoas drasticamente limitada
a nível internacional e no interior das cidades, cadeias de abastecimento desarticuladas e lojas sem clientes ou
encerradas. Estamos a viver uma desglobalização acelerada de consequências
potencialmente desastrosas para a economia e o emprego. Não tenhamos ilusões.
Não é uma questão de termos, ou não termos, simpatia pelas elites
desglobalizadas, nacionais e internacionais, que gravitam à volta do Fórum
Económico Mundial, as quais são os maiores beneficiários do sistema
económico-social-político instituído nas últimas décadas. Mas uma
desglobalização nestas circunstâncias — forçada pelo multiplicar de casos um
vírus potencialmente mortal e no meio do pânico social —, nunca irá corrigir as
muitas assimetrias e injustiças da globalização. Muito pelo contrário,
provavelmente irá acentuá-las, afectando, ainda mais, as partes da população já
mais frágeis e desfavorecidas.
Na realidade, a
nível internacional, está já a desencadear uma espiral de competição ainda mais
predatória do que a já existente, onde cada um tentará minimizar os danos
económicos e sobreviver no mercado à custa dos restantes. A guerra de preços
que se desencadeou nos mercados petrolíferos, numa triangulação que envolve a
Arábia Saudita, a Rússia e indústria de shale oil dos EUA é um primeiro sinal
inequívoco da engrenagem em marcha. Pode arruinar famílias, empresas e países
inteiros que dependem crucialmente de receitas do petróleo. Mas se esta competição
predatória na energia pode favorecer alguns, que a compram a preço mais baixo,
chegará a outros sectores da actividade económica, despertando os piores
instintos do ser humano.
Entre um vírus
potencialmente fatal e medidas para o travar que podem deixar a economia
seriamente danificada, ou mesmo em ruínas, há nos próximos tempos decisões
extraordinariamente difíceis a tomar.
Vale a pena ler, ou reler, Jack London e reflectir sobre a fragilidade
das sociedades humanas que se podem esvair como “a espuma do mar”.
The
economic toll of the coronavirus – from iPhones to solar panels to tourism
The novel
coronavirus COVID-19 is having a long economic reach, in China and beyond.
21 Feb 2020
John
Letzing
Digital
Editor, Strategic Intelligence, World Economic Forum
COVID-19
has potentially serious implications for the global economy.
Apple
revised its revenue guidance, due to a slowdown at manufacturing sites in China
as well as reduced demand by Chinese consumers.
The
spreading coronavirus is taking a toll on economic players around the world,
from farmers and ranchers in the Americas to manufacturers of solar panels in
India to tourism workers across Asia.
For many
people outside of China – not least the sizeable number who have a retirement
account that includes Apple stock – the impact of COVID-19 got a lot more
tangible when the iPhone maker had to revise its revenue guidance earlier this
week as a result of the spreading coronavirus.
While much
of the world’s attention is rightly focused on the human toll of COVID-19 –
including the 1,873 deaths reported as of 18 February – the economic toll of
the outbreak also has potentially disastrous implications.
China, home
to 99% of confirmed cases so far, has been dubbed the “world’s factory” due to
the significant portion of global manufacturing that now typically takes place
there. An estimated 5 million jobs in China rely on Apple manufacturing alone,
and the company partly blamed slower-than-anticipated activity at its
China-based iPhone manufacturing sites for the revenue warning.
Apple also
blamed the warning on slowed demand for its products among China’s increasingly
affluent consumers, due to store closures and reduced operating hours. And it’s
not just Apple that’s been hurt by the sudden constriction of China’s massive
consumer market. From South American ranchers to Vietnamese rice exporters and
American farmers, a broad range of global economic players are starting to feel
related effects. Thailand, where more than one-quarter of all visiting
vacationers last year were Chinese, has seen its tourism industry suffer, for
example.
While there
has been some debate about whether the coronavirus has peaked, the contours of
its vast economic toll are still taking shape.
For more
context, here are links to more reading, courtesy of the World Economic Forum’s
Strategic Intelligence platform:
India’s
aiming for 100 gigawatts of operational solar power capacity by 2022. However,
China accounts for nearly 80% of the solar cells and modules imported to the
country – and COVID-19 means that many of those imports have now been put on
hold. (CleanTechnica)
Singapore
may view itself as an oasis of calm prosperity in a turbulent region, but all
it took was one viral image of a local woman in a face mask hoarding noodle
packets to kick off a storm of coronavirus-related anger and recrimination in
the city state. (Australian Strategic Policy Institute)
Indonesia
once aimed to attract 10 million Chinese tourists per year. Now, it’s poised to
lose about $4 billion in tourism related revenue as a result of COVID-19.
Already, thousands of Chinese-speaking tour guides have lost their jobs, and
tensions between the country and China are running high. (The Diplomat)
On 19
January, Myanmar officially marked the beginning of the “Myanmar-China
Bilateral Cultural and Tourism Year,” partly in response to a sharp decline in
tourists visiting the country from the US and Europe. Two days later, the World
Health Organization published its first COVID-19 situation report, noting 278
confirmed cases in China alone. (The Atlantic)
A
clarifying moment: COVID-19 has revealed cracks in Southeast Asia’s widely
touted growth models. Many countries in the region have leaned too heavily on
external demand from their larger neighbour, and on China-centric supply
chains. (Carnegie Endowment for International Peace)
Compared
with the SARS era, China’s economy now relies to a much larger extent on
consumption and services. According to one government economist, that means the
domestic economic impact of COVID-19 could be significantly bigger. (The
Diplomat)
One bright
spot for everyone sharing a planet with China: lowered electricity demand and
industrial output in the world’s second-largest economy related to COVID-19
reduced its typical carbon emissions during the first half of February by
one-quarter. (Carbon Brief)
Historical
precedents, like the Genovese merchants who brought the Black Death home to
Europe from Asia, suggest the spread of COVID-19 should halt trade with China.
But in reality, boosting trade with the country may help both China as well as
other economies better cope with its impact. (Wharton)
On the
Strategic Intelligence platform, you can find feeds of expert analysis related
to Global Health, Global Trade and hundreds of additional topics. You’ll
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