OPINIÃO
CORONAVÍRUS
Oportunidade única para vencer a crise climática
Se a covid-19 apareceu de rompante, já a crise climática
é conhecida pelo menos desde os anos 80 e reúne um consenso científico e
político possivelmente sem precedentes. Não há desculpas para a inacção – nem
mesmo a covid-19.
Nuno Quental
29 de Março de
2020, 20:00
Vivemos como que
anestesiados pela actual tragédia provocada pela covid-19. Compreensivelmente,
televisões e jornais dedicam-se a cobrir os mais ínfimos detalhes do que se
passa. Da mesma forma que seguimos a Guerra do Iraque em directo, conhecemos a
evolução do vírus em qualquer ponto do mundo e as medidas que governos e
organizações internacionais têm lançado na tentativa de vencer esta guerra sui
generis.
Permito-me, no
entanto, chamar a atenção para o facto de existirem outras batalhas a travar,
batalhas essas perante as quais nem agora podemos esmorecer. O facto de sermos
temporariamente poupados a notícias sobre novos recordes de temperaturas,
degelo polar ou extinção de biodiversidade não significa que não continuem o
seu caminho – mas apenas que estamos, naturalmente, menos atentos.
É certo que a
queda da actividade económica (aponta-se para uma quebra homóloga do PIB
relativamente a 2019 na ordem dos 5-10%) acarreta uma espécie de moratória
auto-imposta nas emissões de carbono ou exploração de recursos naturais. Mas
também é verdade que, no momento em que escrevo, foram já prometidas à economia
ajudas de pelo menos sete biliões de euros um pouco por todo o mundo, o
equivalente a cerca de 5% do PIB mundial – tudo somado entre acréscimo de
despesa pública, emissão de moeda, garantias de empréstimos e perdões fiscais.
Esta reacção célere e peremptória é fulcral para evitar uma depressão
socioeconómica, mas creio haver margem para melhorar tais medidas contracíclicas.
De facto, no
desespero de recuperar actividade económica o mais rapidamente possível,
corremos o risco de afrouxar legislação ambiental e, portanto, de enveredar por
um rumo de desenvolvimento ainda mais insustentável do que o anterior à crise.
Foi esta precisamente a mensagem da Polónia ao pedir que a Comissão Europeia
isentasse o país do regime de comércio de licenças de emissão – que viu o preço
do carbono cair 40% desde Julho de 2019. Não deixa de ser interessante, aliás,
verificar que a fraqueza do mercado do carbono corrobora a existência de uma
desaceleração económica anterior à covid-19. O mercado carbónico corre assim o
risco de se tornar novamente uma inutilidade, à semelhança do que aconteceu
entre 2011 e 2017. Será um teste à eficácia da reforma que sofreu há dois anos.
Mas, por muito
que custe escrever isto, as crises são oportunidades para repensar decisões e
realocar capital, usando-o de forma mais eficiente. Creio estarmos perante
outro desses momentos históricos. A diferença é que, ao contrário de períodos
anteriores de ‘destruição criativa’ que semearam as bases para sociedades mais
prósperas, o actual poderá ser também fulcral para a própria sobrevivência da
nossa civilização a longo prazo.
Neste momento
crítico é preciso tirar partido dos enormes recursos mobilizados e exigir que
os novos investimentos sejam compatíveis com um cenário de aquecimento global
de 1,5°C e com o objectivo comunitário de atingir zero emissões líquidas de
gases com efeito de estufa em 2050 (de notar que, ao contrário do que se possa
pensar, um nível neutro de emissões líquidas não requer zero emissões propriamente
ditas, o que seria impossível, mas apenas que quaisquer emissões seriam
compensadas pelo sequestro de carbono). Simultaneamente, os governos poderiam
usar esses recursos para acelerar decisivamente a construção e adopção de
energias renováveis e de tecnologias limpas. Parece incompreensível, face à
urgência climática que requer uma duplicação do investimento em energias limpas
até 2030, que na Europa este tenha decrescido 7% entre 2018 e 2019. Reptos
semelhantes têm sido lançados por diversas organizações internacionais, por
exemplo pelo director executivo da Agência Internacional de Energia, Fatih
Birol.
É crucial não
baixar a guarda e compreender que a crise ambiental em que já nos encontramos
será ainda mais gravosa do que a da covid-19 caso falhemos as metas climáticas.
Enquanto que a covid-19 será previsivelmente balizada no tempo graças às
medidas em curso de distanciamento social e, esperemos, à invenção de
tratamentos e vacinas, a crise climática assemelhar‑se‑á mais a um fogo lento,
duradoura e inescapável. E se a covid-19
apareceu de rompante, já a crise climática é conhecida pelo menos
desde os anos 80 e reúne um consenso científico e político possivelmente sem
precedentes. Não há desculpas para a inacção – nem mesmo a covid-19.
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