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O medo
Não se trata,
como já ouvimos dizer, de pôr em causa a nossa civilização, mas as suas
formações de poder e, com elas, o desenvolvimento de laços sociais cada vez
menos aceitáveis. Esta terrível experiência que estamos a viver constitui
apenas uma antecipação, e um aviso, do que nos espera com as alterações
climáticas
José Gil 15 de Março de 2020, 23:51
O que vem aí,
ninguém sabe. Adivinha-se, teme-se que seja devastador. Em número de mortes, em
sofrimento, em destruição. Mas, como não temos uma ideia clara do que poderá
ser uma tal catástrofe, a ignorância e a confusão amplificam o nosso medo. Será
um desastre planetário e regional, colectivo e individual, já presente e ainda
futuro, conhecido e familiar, mas sempre longínquo e estrangeiro, destinado aos
outros mas cada vez mais perto. Não é o simples medo da morte, é a angústia da
morte absurda, imprevista, brutal e sem razão, violenta e injusta. Rebenta com
o sentido e quebra o nexo do mundo.
As forças que
provocam a pandemia pertencem a uma ordem de causas estranha à ordem humana. E,
no entanto, põem-na radicalmente em questão. Constatamos agora que a sociedade,
as instituições e as leis que criámos para nos protegerem, e nos assegurarem
uma vida justa, falharam redondamente. Não construímos uma vida viável para a
espécie humana. Os extraordinários disfuncionamentos dos serviços de saúde de
tantos países, a falta de coordenação e solidariedade dos estados-membros da
União Europeia quando se tratou de ajudar a Itália, a criminosa e leviana
arrogância de Trump no caso dos testes, a incapacidade de todos os governos de
executar uma política sanitária eficaz sem utilizar meios mais ou menos
autoritários, todo esse desnorte que deixou proliferar o vírus mostra de
sobremaneira que qualquer coisa de profundamente errado infectou, desde o
início, a história dos homens. Emmanuel Macron acaba de descobrir que “a saúde
não é uma mercadoria” que tenha um preço. O coronavírus, pondo em perigo
qualquer um, independentemente da sua riqueza ou estatuto, torna todos iguais –
não perante a morte, mas perante o direito à vida, à saúde e à justiça.
“O coronavírus,
pondo em perigo qualquer um, independentemente da sua riqueza ou estatuto,
torna todos iguais – não perante a morte, mas perante o direito à vida, à saúde
e à justiça.”
Não se trata,
como já ouvimos dizer, de pôr em causa a nossa civilização, mas as suas
formações de poder e, com elas, o desenvolvimento de laços sociais cada vez
menos aceitáveis. Esta terrível experiência que estamos a viver constitui
apenas uma antecipação, e um aviso, do que nos espera com as alterações
climáticas.
O que fazer? Dos
órgãos políticos responsáveis vêm-nos ordens e injunções contraditórias. Por um
lado, dizem-nos que a luta contra a epidemia só terá êxito se juntarmos todos
os nossos esforços individuais, se agirmos solidariamente na consciência da
pertença comum à comunidade. Por outro lado, somos incitados a isolarmo-nos, a
ficar em casa, a manter o distanciamento social requerido, a não beijar,
abraçar, tocar. Cancelam-se os eventos e espaços de lazer, fecham-se as
fronteiras. Reduzir-se-á então o nosso contributo a obedecer passivamente ao
auto-isolamento anti-social?
Está a surgir,
espontaneamente, uma solução “tradicional” de compromisso: a comunidade
reencontrar-se-ia na acção de governação de um líder firme. Giuseppe Conte,
primeiro-ministro italiano, até aqui sem grande popularidade, tem hoje o apoio
da grande maioria do povo. Tomou medidas drásticas, mostrou certezas, acalmou a
ansiedade e o pânico da população. Sem dúvida que idêntica adesão popular
recebeu António Costa, pelas mesmas razões e com a mesma empatia. A energia do
medo é absorvida pelo líder e transformada em adesão. Qualquer que seja a sua
eficácia, esta não pode ser a única e exclusiva “solução”. Que podemos e devemos
fazer, nós que nos fechamos em casa, e que não queremos que o auto-isolamento
se torne apenas uma defesa egoísta da família, numa atitude que reforça,
afinal, o corte com a comunidade?
É preciso,
primeiro, combater o medo da morte. Para tanto, dois requisitos essenciais, a
recusa da passividade e o conhecimento do “inimigo”. Quanto mais activos, mais
aptos, mais fortes para afastar o medo. Se bem que o medo acorde a lucidez, e
neste sentido possa ser benéfico, sabemos que ele encolhe o espaço, suspende o
tempo, paralisa o corpo, limitando o universo a uma bolha minúscula que nos
aprisiona e nos confunde. Comunicar com os outros e com a comunidade é furar a
bolha, alargar os limites do espaço e do tempo, tomar consciência de que o
nosso mundo se estende muito para além dos quartos a que estamos confinados.
Foi certamente o que sentiram e fizeram os napolitanos que se puseram a cantar
à noite, de varanda para varanda, exorcizando o medo e criando um novo espaço
público comum.
“Esta terrível experiência que estamos a viver constitui
apenas uma antecipação, e um aviso, do que nos espera com as alterações
climáticas.”
Trata-se de
combater este medo da morte. Que não é o medo, digamos, habitual, de morrer,
mas uma espécie de terror miudinho, subterrâneo e permanente, que toma conta da
vida. Não na apreensão do mal final, mas como se a morte, enquanto avesso da
vida, enquanto letargia absoluta, rigidez definitiva, paralisia e abismo,
viesse ocupar o terreno do nosso tempo quotidiano. É contra a tendência a sermos
capturados por um tal sentimento de medo que é preciso lutar – precisamente,
mantendo-nos activos e preocupados com os outros e a vida social de que fazemos
parte.
Este medo é,
sobretudo, o medo dos outros. O contágio vem inopinadamente, violentamente e ao
acaso. Qualquer um, estrangeiro ou familiar, pode infectar-nos. O acaso e o
contacto passam a ser perigo e ocasião de morte possível, e todo o encontro, um
mau encontro. Neste sentido, o outro é o mal radical. A relação com os outros e
a comunidade sobre um abalo profundo. O laço social, que, mais do que na inveja
e no amor-de-si, se enraíza no “amor” ao outro (como afecto gregário da
espécie), encontra-se comprometido, ameaçando romper-se. O outro é o inimigo,
que quer a minha morte: do medo do ataque mortal ao pânico paranóico vai apenas
um passo. A epidemia do novo coronavírus faz também emergir, à tona da
consciência social, o pior das nossas pulsões mais sedimentadas. Mas também o
melhor: aquele afecto, presente desde sempre em certas profissões, como a dos
médicos e enfermeiros, torna-se agora plenamente visível aos olhos do cidadão
planetário.
Um fenómeno
inédito está a surgir: a pandemia transforma a percepção que se tinha da
globalização. Sabíamos que ela existia, conhecíamos os seus efeitos
(financeiros, climáticos, turísticos), mas só raros tinham dela uma experiência
vivida. Graças ao coronavírus, e pelas piores razões, o homem comum tem agora,
ao longo do seu tempo quotidiano, a experiência da globalização. Deixou de ser
abstracta, tornou-se uma globalização existencial. Vivemos todos,
simultaneamente, o mesmo tempo do mundo.
Qual o futuro
desta transformação? Pode-se adivinhar já certos efeitos. A consciência
planetária do perigo de morte traz consigo uma certa percepção, imediata e
concreta da humanidade, como comunidade viva e nua. Para além do que separa os
homens, há o que os faz simplesmente humanos, a vida, a morte, o poderoso
direito a existir, sem condições nem prerrogativas. O que implica um
igualitarismo primário e primeiro, entre os indivíduos e entre os povos. As
peripécias dos proteccionismos xenófobos e racistas de Bolsonaro e de Trump, em
tempo de crise pandémica, parecem patéticas quando confrontadas com este
espírito mundial que se está a formar.
Por outro lado, a
informação veiculada pela comunicação social, a dependência de cada cidadão de
um país relativamente aos cidadãos de outros países, a exigência premente de
coordenação das políticas de saúde (e não só) de diferentes nações, o trabalho
em rede de cientistas por todo o mundo, está a levar à criação progressiva de
poderes transnacionais. São tudo bons sinais que se desenham no horizonte.
Acreditamos que tal evolução das consciências só poderá beneficiar a luta
decisiva, que virá em breve, contra as alterações climáticas.
Mas os bons
sinais não chegam para nos sossegar. Tanto mais que o medo que nos invade não
pára de se avolumar. No momento em que escrevo, chovem de todos os lados, da
Europa, da América, do Médio Oriente e da Ásia, as notícias mais alarmantes. A
pandemia cresce como um tsunami mundial, derruba e mata numa avalanche
incontrolável. O medo não é uma atmosfera, é uma inundação. Como resistir, como
desfazer, ou pelo menos atenuar o medo que nos tolhe? Com mais conhecimento,
sim, e mais informação, e mais entreajuda e racionalidade. Resta-nos sobrepor
ao medo que nos desapropria de nós, o medo desse medo, o de sermos menos do que
nós. Resta-nos, se é possível, escolher, contra o que nos faz tremer de
apreensão e nos instala na instabilidade e no pânico, a forças de vida que nos
ligam (poderosamente, mesmo sem o sabermos,) aos outros e ao mundo.
Filósofo
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