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OPINIÃO
Quarentena
climática
A luta pela
justiça climática não pode parar porque os efeitos da crise climática não
param. Esta luta terá de intensificar-se, porque a chantagem dos próximos
tempos será monumental.
João Camargo
16 de Março de
2020, 5:29
Nestes dias é
impossível falar de outro assunto que não seja o coronavírus. Na imprensa, já o
é há mais de um mês, mas nas nossas casas, nas escolas das crianças, locais de
trabalho, nas compras, nos parques, nas redes sociais, fomos engolidos pela
doença. A Organização Mundial da Saúde já declarou que é uma pandemia e, depois
de a Itália fechar o país, Trump proibiu viajantes da Europa de entrarem nos
Estados Unidos durante os próximos 30 dias (depois de sucessivas garantias suas
da pouca importância do vírus, da segurança do país e de várias teorias
conspiratórias, e sabendo-se agora que só não-cidadãos americanos e pessoas sem
visto de residência não serão deixadas entrar). Quando os governos já provaram
que podem agir de forma determinada quando há um perigo relevante, por que é
que as declarações de emergência climática não produziram qualquer efeito no
funcionamento das economias e sociedades?
Os efeitos da
crise climática são incomparáveis em qualquer medida com os do coronavírus: as
mortes associadas somente à poluição pela queima de combustíveis fósseis são na
ordem dos 11.500 por dia (4,2 milhões por ano, segundo a Organização Mundial da
Saúde), a que acrescem todas as vítimas dos eventos climáticos extremos – ondas
de calor, incêndios florestais, cheias, deslizamentos de terras, furacões,
tufões, tempestades tropicais –, as vítimas dos surtos de doenças que se lhes
seguem, os milhões de pessoas que têm de abandonar as suas casas e os seus
territórios porque as secas tornam-nos inviáveis para a produção alimentar, e
todas as vítimas dos conflitos armados que, com outras capas, sejam políticas,
económicas ou religiosas, se seguem a essas catástrofes. Isto não é o futuro, é
o que já está a acontecer. A luta pela justiça climática tenta evitar a entrada
em funcionamento de fenómenos climáticos de grande escala que tornarão largas partes
dos territórios hoje ocupados por populações humanas inabitáveis e outras
partes cada vez mais extremas e degradadas.
As declarações de
emergência climática do ano passado foram inequivocamente uma fraude política
perpetrada por inúmeros governos de todo o mundo, tal como é amplamente uma
fraude a luta contra as alterações climáticas dentro do capitalismo. Este não é
um argumento retórico, esta fraude pode ser medida e aferida por instrumentos
de medição: 2019 foi o ano com mais emissões de dióxido de carbono de sempre,
batendo o recorde de 2018, que bateu o recorde de 2017. O lançamento de
capacidade de produção eléctrica a partir de energias renováveis é inútil
quando não tira do sistema fósseis: as renováveis não tiram dióxido de carbono
da atmosfera. Os seis anos mais quentes desde que há registos foram os últimos
seis: 2016, 2019, 2015, 2017, 2018, 2014. Desde que se reconheceu
cientificamente a existência de alterações climáticas e a sua origem na acção
humana, em particular nas emissões associadas à queima de petróleo, gás e
carvão, a única altura em que se reduziram as ditas emissões foi durante a
crise financeira, em 2008. E agora.
O coronavírus foi
a faísca: a economia mundial, que já estava em queda ligeira (em 2019 a
produção desacelerou na China e na Índia, estagnou na Europa e caiu na Alemanha
e Japão), caiu a pique. Grandes capitalistas que estavam à espera dos sinais
para desinvestir interpretaram o surto de coronavírus e o seu aparecimento fora
da China como os sinais de que ia começar a queda, e venderam acções e activos
financeiros no fim de Fevereiro: na linha da frente, BlackRock, Goldman Sachs,
Citigroup, assim como Google, Apple e Amazon. Simultaneamente esgotaram os
títulos de tesouro americano, apostando uma vez mais no Estado como a fonte
segura do retorno. As quedas nas bolsas mundiais foram gigantescas e a Arábia
Saudita aproveitou a convulsão para aumentar a produção petrolífera e fazer o
preço do petróleo descer a pique (coincidindo com uma queda na procura), com a
Rússia a juntar-se a estes e ameaçar a indústria dos Estados Unidos (e, quem
sabe, as renováveis).
Ao mesmo tempo,
na economia real, as quarentenas param as fábricas da China, deixando de sair
as peças para as fábricas do ocidente que, poucas semanas depois, deixam de
trabalhar e começam a cancelar encomendas, com todo o sistema de produção just
in time a parar. O comércio e o consumo caem a pique, as viagens também, as
pessoas são aconselhadas a ficar em casa, as importações e exportações abrandam
e todas aquelas economias penduradas nos mantras das escolas de economia
neoliberais do turismo e da internacionalização ficam com as calças na mão (sem
grande esperança de recuperar no curto prazo). Com a vertiginosa queda
económica, as emissões também caem, mas eles querem que seja só soluço. As
grandes empresas já estão de mão esticada para pedir os resgates: em Portugal,
o Governo flexibiliza o lay-off e nos EUA Trump já considera um bailout à
indústria de fracking de petróleo e gás. O mesmo acontecerá com as entidades
financeiras se não houver uma recuperação milagrosa nas próximas semanas (tudo
indica o contrário). Todas as pessoas que viveram e se lembram da crise
financeira de 2008 devem lembrar-se da facilidade com que os governos de todo o
mundo abriram os cordões à bolsa para resgatar o sistema financeiro, para
depois agravarem as duas dívidas públicas, mantendo não só os resgates como os
futuros lucros na mão de privados. Passaram 12 anos e a situação só piorou. Que
não nos lembremos de esquecer que depois de pagarmos a crise da banca, pagámos
a crise do Estado que salvou a banca. A austeridade, que apenas abrandou, é o
mecanismo que neste capitalismo serve para fazer quem trabalha sustentar
directa e indirectamente as castas dirigentes do sistema.
Os governantes
dir-nos-ão que é preciso garantir a estabilidade da economia, mas não é nada
disso, o que eles querem a garantir é a estabilidade dos 1%, que é a
instabilidade da economia, da sociedade e do planeta. Na famosa “ironia do
risco”, terão a tendência para prometer-nos e dar-nos cada vez mais
“garantias”, enquanto nos aproximamos da concretização dos riscos que estavam
identificados há décadas:
a fragilidade dos
sistemas públicos (em especial o de Saúde) depauperados por décadas, o que os
tornou frágeis para lidar com uma pandemia grave, mas bastante controlável;
o vazio das
economias voltadas para uma globalização dominada pelos interesses dos abutres
multinacionais e pelos preços baixos porque não incluem a destruição social nem
a destruição ambiental;
a degradação
climática, acelerada pelo crescimento económico intrinsecamente ligado aos
fósseis e ao colapso.
A luta pela
justiça climática não pode parar porque os efeitos da crise climática não
param. Esta luta terá de intensificar-se, porque a chantagem dos próximos
tempos será monumental: para resgatar as indústrias fósseis que têm de ser
desmanteladas; para ajudar os grandes grupos banqueiros e financeiros a retomar
os seus lucros no crescimento extractivista; para chantagear com desemprego e
austeridade milhões de pessoas que, em boa medida, trabalham horas a mais em
empregos inúteis (ou prejudiciais à sociedade) para produzir coisas
desnecessárias por salários miseráveis. Esta chantagem será orientada para uma
e uma só coisa: travar a revolução produtiva, económica e política de que
precisamos para nos salvarmos enquanto civilização. Usemos este tempo de
quarentena para nos prepararmos. Preparemo-nos para voltar às ruas.
Investigador em
Alterações Climáticas; activista do Climáximo
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